domingo, 20 de setembro de 2015

Inquietações

Memória, que se passa contigo?
Não se passa nada.
Umm...
Ando com medo.
Medo de quê?
Daquele intrometido, maldita a hora...Tanto espaço, logo havia de ir construir a sua casa em frente à minha, "só pode ser por birra," não o posso ver, passa por mim com um sorriso enigmático, "tipo mona lisa," tira-me do sério.
Ignora-o, quanto mais pensares nele, maior tua a mortificação.
Falas bem, ele é como a ferrugem, se a deixamos passar...
Memória, não te mortifiques.
Se não me defender, tu e tantos outros como tu, Amigo, estais sujeitos a perder-me, ocupará meu lugar, não há Pensamento que te valha.
Dou-te razão: quando toma o teu lugar a maior parte de nós já estamos com os pés para a cova.
Que vergonha, deixar-me dominar por um fedelho. Pensamento, Amigo, peço-vos perdão se um dia vos perder. Não tens nada que pedir perdão, é a lei da vida. A união faz a força, quem sabe se juntos não o vencemos!
Às vezes dá-me vontade...
Vê lá o que vais dizer: lançar fogo à casa dele. Não faças isso, estavas a ser pior que ele, havemos de encontrar uma solução. Falaste em fogo, lembrei-me da pouca vergonha que para aí grassa com tantos fogos; à sua passagem, tudo destroem, consumindo milhares de hectares de floresta. Assim que o calor chega, a comunicação social divulga ao bom povo: "começou a época dos fogos".
Ei-lo galopando montes e vales, arrasando tudo, deixando para trás um rasto de miséria: "e não há quem ponha cobro a isto".
Existem muitos interesses.
É verdade, são tantos os milhões que saem do depauperado erário: "gastava-se muito menos, se em vez de remediar se prevenisse".
...A força económica sobrepõe-se.
Estás a ver; os dinheiros deviam servir para limpar as matas, milhares de pessoas ganhariam sua vida limpando-as. Os gastos seriam imensamente menores, se o fogo  tentasse entrar mais facilmente o dominariam; as populações podiam dormir mais descansadas.
Olhem, quem vem além embrulhado na sua capa vermelha.
É ele, e dirige-se para tua casa.
Mau: preparemos as mangueiras: parece que vem em paz.
Posso entrar...
Entra.
Ando triste, melancólico, andais escrevendo coisas a meu respeito que me magoam muito.
Não é nenhuma mentira.
Sim, é verdade; descontrolado sou o diabo em figura de gente; não tenho culpa da malvadez humana, cego quando me descontrolam, o mal que faço às pessoas é indesculpável. Sou um destrambelhado quando me soltam o cabresto, penitencio-me pelo mal que ao longo dos séculos tenho causado: para que é que me soltam?
Tens razão; sabe tão bem quando nos aqueces nas noites frias invernosas, o povo até diz: "o fogo é meio sustento." Com rédea curta sirvo a humanidade como ninguém: cozo vossos alimentos, sou purificador e vosso amigo. Porque não me respeitam.
Quando me transformo em fogo de artifício, estrelinhas cintilantes, pequenos fogos-fátuos, quem não gosta de me ver! Nos arraiais, o povo espera que chegue a minha vez de brilhar. Sou o clarão, o facho dos viandantes, dos marinheiros, na noite escura. Juntamente com o ar, a terra e a água somos quatro elementos fundamentais para a vida.
Não devemos brincar contigo, podemo-nos queimar...
Costumamos dizer que determinado local está a ferro e fogo.
Vejam como sou importante, antigamente os sacrários possuíam uma lamparina de azeite que estava acesa dia e noite para o iluminar: fogo sagrado. Nos nossos dias fui substituído pela lâmpada elétrica; sinais dos tempos. E aquele fogo que arde sem se ver! Nas noites de Santo António, São João e São Pedro, o povo salta a minha fogueira.
Livre-nos Deus do fogo do inferno.
Amigo; esse é diferente do meu, se não tiver combustível não existo, o fogo do inferno nunca se extingue. Costumamos dizer; amanhã é a minha prova de fogo, estou em pulgas para a ultrapassar.
Queres um conselho, Amigo, nunca ponhas as mãos no meu fogo, por mais fraquito que seja queimo sempre. Antes que me perguntem dou já a resposta. Antigamente houve gente que me utilizou para queimar desgraçados inocentes, tudo fazia para que esses atos hediondos não acontecessem; "atrasava a queima da lenha" chegava a uma altura que já não aguentava, a combustão fazia-se: as faúlhas eram as minhas lágrimas. Os católicos no sábado de aleluia benzem o lume novo; a igreja está às escuras, de repente afasto a escuridão e venço as trevas.
Se as pessoas souberem utilizar-me, aproveitar-me, são tantas as minhas aplicações.
(Assim Seja)


J.M.S


José Teodoro Prata, 22/09

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