O
senhor visconde mudou-se para a vila, quando foi nomeado presidente da Câmara.
As propriedades de morgadio ficavam na povoação que lhe dava o título, mas aqui
tinha as terras e as casas herdadas, no início do século, dos irmãos de uma
antepassada sua, três padres e duas tias solteiras. Chegavam bem para um dia a
dia desafogado, embora a maioria dos cabedais lhe viessem da casa-mãe, onde
tinha um feitor a tomar conta.
A
família acompanhara-o, isto é, a mulher. Ainda não lhe dera geração e já perdera
a esperança. Parecia seca por dentro, sem poder gerar vida. Ele não, sabia de
fonte segura, mas não era assunto para partilhar, muito menos com a Dona
Doroteia. Ela era uma senhora digna, que sabia ocupar o seu lugar. Por isso a
respeitava.
Naquela
manhã retornavam à vila, como faziam depois de cada domingo. O coche puxado a
cavalos seguia pelos caminhos térreos, empedrados aqui e ali. Era uma viagem
desagradável, mas felizmente curta. Entraram na povoação, atravessaram a praça
e desceram a rua. A casa dele era a última. Depois estendiam-se as terras,
todas suas, até à ribeira, onde tinha o lagar do azeite e a azenha do pão.
O
coche parou e os senhores apearam-se. Dois criados acorreram a buscar as malas. Depois
o cocheiro deu a volta e entrou no quintal, onde ficava a cocheira e o estábulo
dos cavalos.
A
senhora foi-se refrescar e vestir roupas mais práticas. Depois foi à cozinha
inteirar-se de que tudo estava pronto para o almoço. As criadas estranharam-na,
mais grossa na cintura, quase barriguda. Estranho, ainda não terem dado por
nada. Comentaram entre si, mas com a ela não foram além de olhares meigos e
felizes.
O
senhor visconde soube pelo encarregado que o fim de semana passara sem
novidades e depois dirigiu-se à salinha das refeições, onde a esposa já o
esperava. Jantaram sopa de feijão encarnado com couves e cabrito assado no
forno, regado com um bom tinto das suas terras nas Vinhas. À sobremesa,
trouxeram arroz-doce, mas preferiu uma maçã do pomar nas margens da ribeira.
Saiu
de casa e subiu a rua. Despachou com o escrivão os assuntos pendentes e no fim
da tarde voltou a casa. Ainda desceu ao Barreiro, a inteirar-se das lavras.
Depois do jantar saiu de novo, mas ficou fora pouco tempo. A viagem de coche
maçara-o, já não era novo.
Os
dias foram passando, sempre iguais. No sábado voltaram à casa-mãe e na segunda
a senhora trouxe mais uma mala e vinha ainda mais barriguda. A criadagem
confirmou o que já suspeitava, mas os senhores, nada, nem uma palavra.
Nesse
fim de semana ficaram na vila. Não precisavam de andar sempre para trás e para
a frente, o feitor tratava bem de tudo. A senhora foi-se recolhendo cada dia
mais e já pouco saía do quarto. A barriga crescera muito, comentavam as poucas
criadas que agora privavam com ela.
Numa
manhã, após um serão de jogo de cartas que o senhor visconde passara em casa do
juiz dos órfãos, a Dona Doroteia não saiu da cama. Sentia-se desconfortável,
gemia esporadicamente. As criadas fizeram-lhe chá e a novidade alastrou, ainda
antes de o senhor visconde avisar que a senhora estava de esperanças. Tivessem
a casa preparada, pois o nascimento parecia estar para muito breve.
Ele
próprio foi prevenir a parteira e teve com ela uma conversa a sós. Depois do
almoço, os ais da Dona Doroteia aumentaram e o senhor visconde mandou uma
criada chamar a parteira. Chegara a hora.
A criadagem foi mandada para a casa da cozinha e só ficaram as duas criadas de
dentro. Ao fim da tarde, o senhor visconde saiu e só voltou já noite cerrada,
com um embrulho debaixo do capote. Depois ouviram-se gritos da senhora e o
choro de uma criança. Era um menino!
Viveram-se
dias e semanas de alegria, em casa do senhor visconde. Infelizmente a senhora
não tinha leite, mas falou-se a uma moça que dera à luz um menino morto, poucos
dias antes. Ia lá a casa, a dar de mamar ao bebé, várias vezes ao dia.
O
batizado foi uma semana depois e houve festa de arromba em casa do senhor
visconde. O senhor vigário e restante clero, a vereação camarária, o médico do
partido e demais pessoas importantes, todos tiveram assento na grande sala de
jantar da casa do senhor visconde. À porta, deram-se doces a todo o povo que,
desde a igreja, acompanhou o cortejo. Não era todos os dias que se batizava um
morgado!
José Teodoro
Prata
7 comentários:
Bonito texto. Já tinha saudades de uma prosa assim. Os cronistas Dos Enxidros têm andado salamurdos. Recolheram-se no casulo como a natureza, será?
FBarroso
Tinha que me apressar a fazer um comentário porque isto me toca. E muito! Ainda que só do ponto de vista material. Não afetivo.
Apesar de nenhuma identificação constar do texto, fácil é concluir que o ZT está a falar dos Viscondes de Tinalhas! Que iam e vinham entre Tinalhas e S. Vicente. E a casa que refere no texto não é senão a casa que hoje (devo dizer, pouco comodamente) me pertence, por herança dos meus pais. Digo, pouco comodamente, porque de uma grande casa que muitos de nós ainda conheceram (a dita Casa Grande do tempo do Ti' Albano Jerónimo), se tornou num imóvel que não se adequa às necessidades e comodidades da vida de hoje. E em que vivemos o tempo da família nuclear, não a grande família (ou família-clã) do passado.
Sobre o texto propriamente dito, tenho que dizer que é uma aguarela muito bonita sobre um episódio histórico de fins do séc. XIX que, embora curto, deixa imaginar a vida familiar da época. Que, na nossa época, apenas podemos ver em filme.
Embora eu entenda que a monarquia é uma aberração como forma de governo de um Povo (a que propósito é que um indivíduo nasce Visconde sem nada ter feito para isso!!), o texto vale por si mesmo e termina da melhor forma: o nascimento e o batizado de um jovem que é sempre uma coisa bela!
Abraços.
ZB
Aì está a lenda do sangue azul da minha familia Prata.A minha bisavó Castanheira tratava dos orfãs depositados na roda.Penso que o bébé do Visconde era um orfã da roda e por isso se dizia que avía sangue nobre na familial.Afinal não tinha nada a ver porque a minha bisavó só recolheio o bébé antes de ser dado ó Visconde. Ó Zé vei
lá se confirmas essa historia e desculpa o meu português. Joao Maria Passaraço
História tão bem engendrada (ainda por cima tecida por um historiador) que durante um bom bocado duvidei que fosse ficção. E ainda não estou completamente convencida de que não tivesse sido assim porque, final, aos ricos tudo é possível!
Para além do prazer da leitura, esta história levou-me de volta a publicações mais antigas do Blogue e recordar aspetos interessantes da vida da nossa terra, no tempo em que por cá andava gente cujo nome não cabia numa linha inteira.
Interessante o nome antigo da rua Nicolau Veloso e a importância da casa que agora é do Zé Barroso!
M. L. Ferreira
Esta história foi-me contada pelo tio Joaquim Teodoro. Já tinha mais de 100 anos, mas ainda estava bem lúcido!
Verdade ou mentira? São segredos guardados pelos criados das casas ricas!
Faz lembrar algumas pequenas histórias passadas no Solar dos Ramos Preto em Louriçal do Campo, que apesar de não possuírem nenhum titulo monárquico também eram um família importante na altura, José Ramos Preto que penso que foi o único louriçalense que teve posses estudar no Colégio de S. Fiel.
O sr. José Teodoro Prata tem algum artigo sobre os Ramos Preto ou relacionado?
Penso que o José Ramos Preto merecia a feitura e publicação da sua biografia.
Mas este é um projeto demasiado grande para o meu tempo livre! Já desafiei outros a fazê-lo, mas não sei se alguém lhe vai pegar.
Não sei mais do que aquilo que qualquer pessoa pode encontrar na net ou em livros publicados.
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