Que estranho! Aquela chuva
miudinha e persistente do fim-de-semana convocou ao meu cérebro o Inverno
profundo da Gardunha, quando ficava coberta de névoa densa e cinzenta e os
dias, por vezes semanas, não eram mais que uma língua de terra com um raio de 30 a 50 metros. As noites, lá
fora, mais não eram que um gemido ou uivo do vento nos pinheiros, da fraga das
traseiras, acompanhados, por vezes, pelo fragor das gravanadas nas telhas vãs. E
dentro, nada mais se ouvia que o trabalho persistente do caruncho a roer os
barrotes de mimosa e ripas de pinheiro. E o tempo era vivido numa espécie de bolha
de humidade permanente, que se entranhava por fora, e de solidão, que se
entranhava por dento.
Então,
ali mesmo na janela do terraço comecei a sentir um intenso cheiro ao húmus da
caruma velha do manto profundo e mais próxima da terra molhada, que sentia
quando, após as primeiras chuvas do Outono, me embrenhava na mata do Coronel e
começava a escarafunchar qualquer irregularidade da caruma que sugerisse um
almejado míscaro amarelo.
Depois
deu-me uma saudade imensa de ver o mato e escorrer. As folhas cheias de
pequenas gotículas a juntarem-se umas às outras, a engrossarem… e o peso e a
força da gravidade a fazê-las cair pelas pontas ou escorregar pelo pedúnculo até
ao ramo, até ao troço, até ao chão. As folhas das giestas finas e cilíndricas repletas
de uma sequência perfeita de gotas de água pura e transparente, qual colar de
pérolas, a reflectir aquela luz coada pela névoa, parecendo feitas de uma
substância efémera e mágica que se desintegra ao mais pequeno toque.
Não
consegui resistir à evocação. Meti-me no carro e fui até Monsanto. A chuva que
me acompanhou na viagem continuou a acompanhar-me no passeio a pé por trilhos
isolados que conheço e há muitos anos percorro. É claro que isto da chuva me
acompanhar é uma maneira de dizer, porquanto, pela natureza das coisas, ela só
tem um sentido de movimento, que é de cima para baixo e quando muito de forma
oblíqua, devido à força do vento.
A floresta estava deserta e
envolta em neblina e ali, os meus olhos e o meu olfacto inebriaram-se de
prazer, com a beleza das pérolas nas carumas das ramagens dos pinheiro e o
cheiro da decomposição do manto vegetal. E foi nesta melancolia que me veio à
cabeça, vá-se lá saber por quê, a imagem do ti Chico Antunes. A cara dele, meio
gasta pelos 78 anos de existência, cheia de espanto e curiosidade quando se
dirigia para as escadas da casa e lhe lancei gracejando:
- Ó meu caro Senhor, onde é que aqui
no Ingarnal se pode beber um copo ou vá lá, mesmo que seja uma fresca imperial?
- Para isso, por aqui está mal, mas
se aceitarem uma pinga do meu, não se envergonhem. Disse enquanto se aproximava
da porta do quintal para a franquear, de maneira a que eu e os meus sobrinhos pudéssemos
entrar.
Apresentámo-nos: Francisco,
Bernardo e Daniel. As mulheres preferiram continuar o passeio a pé pelo
casario.
- Donde é que vossemecês vêm?
Indagou.
- De São Vicente, respondi.
Sabe? Gosto muito do Ingarnal, porque quando era pequeno vivia na Serra, entre
a Vila e o Casal da Serra, além em frente e apontei com o braço, e com o
Ingarnal sempre à frente do nariz, aqui deste lado, foi crescendo em mim a
curiosidade de o visitar e a verdade é que já é a terceira vez que cá venho.
- Já agora, como é que o
Senhor se chama?
-
Sou o Chico Antunes. Foi a
resposta.
Isto enquanto nos dirigíamos
para a porta da loja, que servia também para guardar o pipo. Entretanto ia
admirando tomateiros carregados de florinhas amarelas e apelativos frutos
vermelhos. Couves-galegas verdes e tenras, como as de março, em pleno agosto. A
terra fresca da rega, da altitude e da sombra densa da latada. Olho para cima
pasmado…em vez de videiras, uma latada cerrada e enorme de kiwis.
- O ti Chico esteve na
África do Sul, não? Para gostar tanto de kiwis! Atirei.
- Qual quê! Comprei-os em
Castelo Branco vai para 30 anos e dão-se aqui muito bem. Gostaram do sítio.
-
Estou a ver, disse. E uma latada destas dará uma data de caixas.
Respondeu de imediato, com os olhos a
brilhar de orgulho:
- O ano passado foram 2927.
- Como é que sabe o número
certo? Tem para aí alguma máquina de contar kiwis ou quê? Ora mostre lá isso que
nunca vi nenhuma.
-
Qual quê! Contei-os um a um.
- E quem lhe compra tanta fruta,
Vende-a em Castelo
Branco?
- Nada. Como eu e a mulher,
dou umas caixas aos filhos, aos vizinhos e aos amigos... Querem tudo dado,
sabe? Mal dava para apanha.
E lá fomos entrando a provar
o vinho que pouco valor mostrou pelo desequilíbrio entre o rufete, em excesso,
e o bastardo, em falta. Mas o valor estava onde ele é deveras importante: no seu
sentido da partilha, na sua capacidade de se abrir aos outros numa relação fraterna
e no seu sentido de hospitalidade e de humanidade genuína que vai sendo cada
vez mais rara.
De roda do pipo e entre dois
goles contei-lhe que o meu pai também viveu na Serra e que achava, quando era
pequeno, que o mundo terminava aqui mesmo, no horizonte, que vemos no cimo
donde nos encontrávamos. E quando em gaiato teve de ultrapassar aquela enorme
montanha para ir ao Zêzere apanhar umas pedras de afiar e percebeu que quanto
mais andava, mais caminho havia para andar compreendeu, então, que o mundo
seria enorme.
O ti Chico riu-se e
perguntei-lhe se ele não sentiu o mesmo em pequeno, quando olhava em frente
para os lados da vila. Voltou a sorrir e disse que não. Que ainda muito tenro,
subindo o caminho que ali passava e os levava para sudoeste, do cimo da serra avistou
uma imensidão de serras cada vez mais longínquas, parecendo não ter fim e que
talvez fosse por isso, a questão nunca lhe veio à cabeça.
Prometemos voltar para o
visitar. Espero que se mantenha em forma para podermos cumprir a promessa. E na
minha solidão imaginei-o sentado ao lume, não a contar kiwis, que não é tempo
disso, mas a imaginar talvez, a carga que poderão vir a dar por esta inverna
tardia.
E no fundo questiono-me: que
vibração secreta e misteriosa me trouxe este homem à memória? Provavelmente a
vibração das pérolas das agulhas dos pinheiros do Ingarnal a comunicar com as
de Monsanto que eu, na agudeza dos sentidos da minha melancolia, consegui
captar.
E pensando bem, acabo por ter
de dar razão ao Luís Represas quando canta memórias
de um beijo e nos lembra: as memórias são como livros escondidos, no
pó. As lembranças são os sorrisos que queremos rever, devagar…
Francisco B.
3 comentários:
Pois...
Os textos do Chico fazem sempre o pleno do meu gosto literário.
Ele tem o dom de relatar coisas banais como vivências humanas marcantes.
E já foi três vezes ao Ingarnal, eu nenhuma...
Deve ser por estas reminiscências que as memórias mais escondidas me vão revelando que, quando abro a janela de manhã, e não se vê um palmo à frente do nariz, me sinto tão em paz e em segurança. Parece que sinto a presença de todos os anjos da guarda da minha infância a rodear-me e a proteger-me.
E é natural que, nesses momentos de paz, pensemos só em coisas que nos tornaram felizes e acrescentaram um bocadinho à nossa vida, como foi o caso do encontro do Francisco com o ti Chico Antunes. São assim mesmo, as pessoas da serra, e é por isso que também gosto de andar por lá a meter conversa com toda a gente.
É por pérolas como esta que é preciso irmos todos alimentando esta “Praça”.
M. L. Ferreira
Como sempre, um belo texto do Chico! Cheio das cores das flores e da erva; dos frutos vermelhos ou castanhos como os kiwis; das carumas secas; os cheiros a resina e o verde imenso das agulhas dos pinhais do Igarnal; (infelizmente, hoje queimado em muitas áreas); o copo do vinho na sobra fresca da adega. As gotas de água nos caules tenros, herbáceos, como pérolas! O testemunhar da hospitalidade das pessoas simples, de cara sulcada pelos anos (como um dia já tinha acontecido no Vale de Figueira). Uma viagem ao fim do mundo da infância. O desbravar da memória. Tudo a fazer desta aguarela campestre um quadro muito bonito e interessante de ler!
Abraços.
JB
Postar um comentário