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quinta-feira, 22 de agosto de 2024

A frescura do Pisco

 

Barragem do Pisco, ontem, no crepúsculo do anoitecer.

Apetece citar Sérgio Godinho:

«Ai, eu estive quase morto

No deserto

E o porto

Aqui tão perto»

Foto do Francisco Barroso

segunda-feira, 4 de março de 2024

Conta-me histórias: a estreia

O salão da Casa do Povo encheu-se para o almoço da Comissão das Festas de Verão (cerca de 160 pessoas). A feijoada estava boa!

Após o café, cerca de metade das pessoas foram à sua vida, pois não tinham vindo a mais do que partilhar o momento do almoço e apoiar a organização. Por outro lado, o ruído era impróprio para o resto do programa. 

Mas houve boa vontade de todos e soubemos adaptar-nos às circunstâncias. O ruído foi diminuindo até desaparecer e...

...apresentámos o projeto Conta-me histórias: o Pedro Inácio Gama falou-nos sobre a vida do seu pai resineiro e o José Miguel Leitão partilhou a sua experiência na resina (no fim de três dias disse ao pai que preferia que o matasse a voltar lá); O João Prata Candeias falou dos Candeias e daquela que lhes deu o apelido, a candeia de azeite; o Francisco Alves Barroso contou a história da rapadoura e da sua importância no fabrico do pão; já não houve tempo para a Maria de Fátima Jerónimo, nem para mim, mas há mais marés que marinheiros. 

...o Fernando Pereira cantou as suas canções, as de sua autoria, as do cancioneiro reginal e as dos amigos que se foram cruzando com ele ao longo de uma vida de paixão pela música.

Foi bonita a festa, pá!




José Teodoro Prata

Fotografias de Rita Amaro

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Pelas brumas da Gardunha

 

O velho petrus


Ternura entre seres imperfeitos


Ave esculpida no granito


Fotos, legendas e título do Francisco Barroso

José Teodoro Prata

quarta-feira, 28 de março de 2018

O Chico Antunes


Que estranho! Aquela chuva miudinha e persistente do fim-de-semana convocou ao meu cérebro o Inverno profundo da Gardunha, quando ficava coberta de névoa densa e cinzenta e os dias, por vezes semanas, não eram mais que uma língua de terra com um raio de 30 a 50 metros. As noites, lá fora, mais não eram que um gemido ou uivo do vento nos pinheiros, da fraga das traseiras, acompanhados, por vezes, pelo fragor das gravanadas nas telhas vãs. E dentro, nada mais se ouvia que o trabalho persistente do caruncho a roer os barrotes de mimosa e ripas de pinheiro. E o tempo era vivido numa espécie de bolha de humidade permanente, que se entranhava por fora, e de solidão, que se entranhava por dento.
            Então, ali mesmo na janela do terraço comecei a sentir um intenso cheiro ao húmus da caruma velha do manto profundo e mais próxima da terra molhada, que sentia quando, após as primeiras chuvas do Outono, me embrenhava na mata do Coronel e começava a escarafunchar qualquer irregularidade da caruma que sugerisse um almejado míscaro amarelo.
            Depois deu-me uma saudade imensa de ver o mato e escorrer. As folhas cheias de pequenas gotículas a juntarem-se umas às outras, a engrossarem… e o peso e a força da gravidade a fazê-las cair pelas pontas ou escorregar pelo pedúnculo até ao ramo, até ao troço, até ao chão. As folhas das giestas finas e cilíndricas repletas de uma sequência perfeita de gotas de água pura e transparente, qual colar de pérolas, a reflectir aquela luz coada pela névoa, parecendo feitas de uma substância efémera e mágica que se desintegra ao mais pequeno toque.
            Não consegui resistir à evocação. Meti-me no carro e fui até Monsanto. A chuva que me acompanhou na viagem continuou a acompanhar-me no passeio a pé por trilhos isolados que conheço e há muitos anos percorro. É claro que isto da chuva me acompanhar é uma maneira de dizer, porquanto, pela natureza das coisas, ela só tem um sentido de movimento, que é de cima para baixo e quando muito de forma oblíqua, devido à força do vento.
A floresta estava deserta e envolta em neblina e ali, os meus olhos e o meu olfacto inebriaram-se de prazer, com a beleza das pérolas nas carumas das ramagens dos pinheiro e o cheiro da decomposição do manto vegetal. E foi nesta melancolia que me veio à cabeça, vá-se lá saber por quê, a imagem do ti Chico Antunes. A cara dele, meio gasta pelos 78 anos de existência, cheia de espanto e curiosidade quando se dirigia para as escadas da casa e lhe lancei gracejando:
            - Ó meu caro Senhor, onde é que aqui no Ingarnal se pode beber um copo ou vá lá, mesmo que seja uma fresca imperial?
            - Para isso, por aqui está mal, mas se aceitarem uma pinga do meu, não se envergonhem. Disse enquanto se aproximava da porta do quintal para a franquear, de maneira a que eu e os meus sobrinhos pudéssemos entrar.
Apresentámo-nos: Francisco, Bernardo e Daniel. As mulheres preferiram continuar o passeio a pé pelo casario.
- Donde é que vossemecês vêm? Indagou.
- De São Vicente, respondi. Sabe? Gosto muito do Ingarnal, porque quando era pequeno vivia na Serra, entre a Vila e o Casal da Serra, além em frente e apontei com o braço, e com o Ingarnal sempre à frente do nariz, aqui deste lado, foi crescendo em mim a curiosidade de o visitar e a verdade é que já é a terceira vez que cá venho.
- Já agora, como é que o Senhor se chama?
            - Sou o Chico Antunes. Foi a resposta.
Isto enquanto nos dirigíamos para a porta da loja, que servia também para guardar o pipo. Entretanto ia admirando tomateiros carregados de florinhas amarelas e apelativos frutos vermelhos. Couves-galegas verdes e tenras, como as de março, em pleno agosto. A terra fresca da rega, da altitude e da sombra densa da latada. Olho para cima pasmado…em vez de videiras, uma latada cerrada e enorme de kiwis.
- O ti Chico esteve na África do Sul, não? Para gostar tanto de kiwis! Atirei.
- Qual quê! Comprei-os em Castelo Branco vai para 30 anos e dão-se aqui muito bem. Gostaram do sítio.
            - Estou a ver, disse. E uma latada destas dará uma data de caixas.
Respondeu de imediato, com os olhos a brilhar de orgulho:
- O ano passado foram 2927.
- Como é que sabe o número certo? Tem para aí alguma máquina de contar kiwis ou quê? Ora mostre lá isso que nunca vi nenhuma.
            - Qual quê! Contei-os um a um.
- E quem lhe compra tanta fruta, Vende-a em Castelo Branco?
- Nada. Como eu e a mulher, dou umas caixas aos filhos, aos vizinhos e aos amigos... Querem tudo dado, sabe? Mal dava para apanha.
E lá fomos entrando a provar o vinho que pouco valor mostrou pelo desequilíbrio entre o rufete, em excesso, e o bastardo, em falta. Mas o valor estava onde ele é deveras importante: no seu sentido da partilha, na sua capacidade de se abrir aos outros numa relação fraterna e no seu sentido de hospitalidade e de humanidade genuína que vai sendo cada vez mais rara.
De roda do pipo e entre dois goles contei-lhe que o meu pai também viveu na Serra e que achava, quando era pequeno, que o mundo terminava aqui mesmo, no horizonte, que vemos no cimo donde nos encontrávamos. E quando em gaiato teve de ultrapassar aquela enorme montanha para ir ao Zêzere apanhar umas pedras de afiar e percebeu que quanto mais andava, mais caminho havia para andar compreendeu, então, que o mundo seria enorme.
O ti Chico riu-se e perguntei-lhe se ele não sentiu o mesmo em pequeno, quando olhava em frente para os lados da vila. Voltou a sorrir e disse que não. Que ainda muito tenro, subindo o caminho que ali passava e os levava para sudoeste, do cimo da serra avistou uma imensidão de serras cada vez mais longínquas, parecendo não ter fim e que talvez fosse por isso, a questão nunca lhe veio à cabeça.
Prometemos voltar para o visitar. Espero que se mantenha em forma para podermos cumprir a promessa. E na minha solidão imaginei-o sentado ao lume, não a contar kiwis, que não é tempo disso, mas a imaginar talvez, a carga que poderão vir a dar por esta inverna tardia.
E no fundo questiono-me: que vibração secreta e misteriosa me trouxe este homem à memória? Provavelmente a vibração das pérolas das agulhas dos pinheiros do Ingarnal a comunicar com as de Monsanto que eu, na agudeza dos sentidos da minha melancolia, consegui captar.
E pensando bem, acabo por ter de dar razão ao Luís Represas quando canta memórias de um beijo e nos lembra: as memórias são como livros escondidos, no pó. As lembranças são os sorrisos que queremos rever, devagar…

Francisco B.