domingo, 19 de agosto de 2018

Os baldios


No Arquivo Distrital de Castelo Branco existe um processo judicial do século XVIII, em que o governo do Marquês de Pombal manda fiscalizar todo o Vale de Sande, que era terra baldia e por isso o poder central tinha direito a um terço do produto da venda das pastagens.
O Vale de Sande, hoje chamado Vale do Santo, onde corre o ribeiro com o mesmo nome, vai das traseiras do Ninho do Açor até ao fundo do Monte de São Brás. No 3.º quartel do séc. XVIII já muitos particulares se tinham apoderado de parcelas de terras públicas ou ali plantado oliveiras, ficando por isso donos delas. Por exemplo, o Conde de São Vicente vendia as pastagens do fundo do vale, as melhores, como se fossem suas, subtraindo esse rendimento ao concelho do Freixial do Campo (embrião da atual junta de freguesia), e ao poder central. O Marquês de Pombal moveu processos judiciais a todos e a justiça foi reposta.
Pela Memória da Indústria Agrícola, aqui recentemente publicada, podemos concluir que foi sol de pouca dura, pois cerca de 1840 já muitos particulares, os maiores proprietários, se tinham apoderado de muitas parcelas dos baldios.
O documento que abaixo se apresenta vem na mesma linha. João dos Santos Vaz Raposo, meu antepassado direto ou irmão de um meu antepassado, solicitou à Câmara, em 1855, autorização para coutar (fechar) três barrocas contíguas que possuía (Vale Covo, Vale de Castanheira e Barroca dos Negros), legalizando, nesse ato, a posse de maninhos públicos que já ocupara e que se situariam entre as três barrocas a coutar.
A Junta da Paróquia deu-lhe razão, a Câmara dividiu-se e o Governo Civil terá dado resposta favorável, na linha da ideologia liberal que então governava Portugal, a qual valorizava a posse particular de bens em prejuízo do domínio público.
Tudo isto confirma a tradição oral existente na nossa terra de que os ricos ficaram ricos porque fizeram grandes propriedades com as terras que eram de todos.

Notas:
1. Como investigador, não posso dar como totalmente  certa uma conclusão destas, pois falta um estudo sistemático da transferência dos baldios para os particulares, no século XIX e inícios do século XX. «…pero que las hay, las hay!»
2. Não esquecer que o nome deste blogue designa o baldio de toda a encosta da Gardunha, desde a Oles à Senhora da Orada.

Sessão da Câmara de 11 de fevereiro de 1855
Ano de nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1855, aos 11 dias do mês de fevereiro, nesta Vila de São Vicente da Beira e Paços do Concelho, sendo presentes o presidente da Câmara – Brito – e os vereadores – Ribeiro Robles – Garrido – e Magalhães, deixando de comparecer o vereador Neto, com motivo justificado, o dito presidente declarou aberta a sessão.
E foram presentes os informadores nomeados por esta Câmara a fim de declararem o que entendiam sobre o coutamento que pretende fazer João dos Santos Vaz Raposo das barrocas do Vale Covo, Vale de Castanheira e Barroca dos Negros, cuja declaração fazem pela maneira seguinte:
Que avaliaram a sementeira das três barrocas em cento e catorze alqueires, mas declararam que esta sementeira nas duas primeiras se não pode fazer senão de seis a nove anos e a última que nunca se poderá fazer menos de quinze a vinte anos;
Que aquelas ditas barrocas cada uma foi de seu dono que nesse tempo eram separadas umas das outras que por serem hoje do mesmo pretendente João dos Santos Vaz Raposo apenas as separam uns regos de arado, mas que todos os maninhos contíguos às ditas barrocas nunca lhe pertenceram em tempo algum que sempre foram estranhos às mesmas, tidos como baldios desta Vila e freguesia e que desde tempo de que se não lembram os nascidos sempre os ditos povos desta Vila e freguesia os desfrutaram em comum indo ali cortar mato, arrancar torga e pastar com seus gados grosso e miúdo e que os ditos terrenos baldios nunca foram nem podem ser cultivados.

O documento continua informando que a Junta da Paróquia (antepassada da Junta de Freguesia) tinha opinião diferente e mesmo entre os vereadores não havia consenso. A Câmara ia enviar todo o processo para o Governo Civil de Castelo Branco, ao qual caberia decidir.

José Teodoro Prata

2 comentários:

M. L. Ferreira disse...

Quando agora vemos tantas terras abandonadas e grandes casas em ruínas, até nos apetece pensar que foi castigo para a ganância daqueles que se apoderaram do que era de todos, deixando os pobres ainda mais pobres: ficavam sem terras e sem sítio para cortar um molho de lenha ou de mato.
Parece que não foi só por cá…

Anônimo disse...

Caro, a conclusão do investigador não está nada errada. Para confirmar, releia-se o velhinho Le problème agraire portugais au temps des premières Cortès libérales (1821-1823), Paris 1968. Não existe tradução em língua portuguesa deste O problema agrário português no tempo das primeiras cortes liberais, 1821-1822. São Vicente também lá está.
JMT