Quando o meu irmão Zé nasceu era eu ainda muito
pequeno, mas lembro-me como se fosse hoje. Era de verão e acordei com uns
barulhos estranhos dentro de casa. Ainda fiquei um bocado à escuta, mas depois
levantei-me, meio estremunhado, e fui ver o que era. Quando entrei na cozinha
encarei com uma mulher, nossa vizinha, com um menino ao colo. O cachopinho
berrava que nem um desalmado, e ela nem deu logo por mim. Quando me viu
disse-me assim:
- Olha aqui um menino tão lindo que vós cá
tendes. Achei-o ali no meio das batatas e vim a ver se o queríeis, que eu já lá
tenho que chegue.
Nisto entra o meu pai na cozinha com uma
galinha na mão.
- Então não havíamos de querer o cachopinho, bonito
com ele é?! E com os bofes que tem, come pão, não tarda! Anda-me cá a ajudar a despenar esta galinha para a metermos na
panela.
Enquanto depenávamos a galinha, a mulher tratou
do menino, deitou-o na cama da minha mãe e abalou, mas à saída ainda disse para
o meu pai:
- Olha que tu não metas a moela nem os fígados
na canja, que secam o leite às mulheres paridas.
- Esteja descansada, que até já sei quem é que
se vai arregalar com eles.
Depois de meter a galinha na panela, sentou-se
ao pé do lume, puxou umas brasas para o lado, pôs a moela e os fígados em cima
e chamou-me:
- Assenta-te aqui ao pé de mim, que vais comer uma
coisa tão boa que até vais lember os
beiços.
Sentei-me no chão, no meio das pernas dele, e a
água a crescer-me na boca só com o cheiro que vinha do lume. Passado um pouco pegou
na navalha que trazia no bolso, tirou o fígado das brasas e começou a corta-lo.
Cortava um bocadinho, metia-mo na boca e ficava a olhar:
- É bom, filho?
Eu mal podia responder, ansioso por mais.
Depois fez o mesmo com a moela. Quando chegou ao fim ainda era de noite. Mandou-me
mais um bocado para a cama, que ele tinha que ir cortar um molho de milho para
as vacas.
Naquele tempo não nos sentávamos à mesa para
comer. Quando era de verão comíamos por lá, nas hortas, ou no balcão da casa,
sentados no chão ou em cima duma pedra e o prato no colo. No inverno sentava-se
a gente num banco, à roda do lume, e às vezes até comíamos todos do mesmo
caçolo.
A mim, até uma certa idade, nunca me deram um
prato; comia do do meu pai. Ele sentava-se sempre no mesmo canto e chamava-me
logo para o pé dele. Pegava em mim, sentava-me na perna esquerda e punha o
prato em cima da outra. Depois era uma colher para mim e outra para ele. O
comer era quase sempre sopa de couves, batatas ou feijões pequenos, o mais das
vezes estremes, mas, quando havia conduto, andava sempre à procura da lasca do
bacalhau ou dos bocadinhos da morcela ou farinheira para mos dar a mim.
Então trabalhava para um dos homens
mais ricos lá da Senhora da Orada. Ele era agarrado como o diabo, não dava nada
a ninguém, mas a mulher era boa pessoa e tinha sempre um agrado para os
trabalhadores. Quando era à noite, que o meu pai largava, chamava-o e dava-lhe
sempre uma fatia de pão com uma talhada de queijo ou um bocado de chouriça e um
copo de vinho.
O meu pai pegava na fatia de pão e dividia-a em
duas. Uma das partes cortava-a às sopas pequeninas com a navalha e ia comendo,
devagar. No fim bebia o vinho por cima. A outra metade da fatia e o conduto
escondia-os no bolso, enrolados numa folha de couve ou num bocado de papel de
cartuxo que trazia com ele, já de propósito. Quando chegava a casa punha o que
quer que levasse em cima da mesa, e com a navalha cortava-o em três bocadinhos:
um para a minha mãe e os outros para mim e para a minha irmã (naquela altura
ainda éramos só dois a comer pão). Ele ficava a olhar, consolado só de nos ver
a comer aquele mimo como se fosse a melhor coisa do mundo.
Quando entrei para a escola tinha que vir a pé
até a Vila. De verão fazia-se bem, porque éramos uns poucos lá de cima, e às
vezes até vínhamos na brincadeira uns com os outros, mas de inverno é que eram
elas… Muitas vezes chovia água basta e o vento até cortava, e eu, só com uma saca
de serapilheira pela cabeça a servir de capucha, ficava encharcado até aos
ossos. Às vezes ainda nos abrigávamos nalgum telheiro à espera que a chuva
amainasse, mas sempre com medo, que quando chegávamos à escola tínhamos o
professor à nossa espera atrás da porta, e era uma reguada por cada minuto de
atraso. Uma vez cheguei a levar algumas trinta.
De verão andava descalço, mas no inverno tinha
umas botas para trazer para a escola. Eram de borracha, e como não tinha meias
passava o dia com os pés enregelados. Uma vez, ao serão, depois de rezarmos o
terço, o meu pai levantou-se e foi à loja buscar uma mão cheia de feno, daquele
mais fino e começou a entrelaça-lo. Entretanto eu e os meus irmãos fomos para a
cama, que se fazia tarde. Ao outro dia de manhã, quando me calcei, as botas nem
pareciam as mesmas, de quentinhas que estavam. O meu pai tinha feito umas
palmilhas com o feno e, antes de abalar para o trabalho, aqueceu-as no borralho
e meteu-mas dentro das botas. E todos os dias de manhã fazia a mesma coisa.
Quando aquelas se romperam, fez-me outras, tão bem feitas que até pareciam de
compra, e passei o inverno com os pés um pouco mais aconchegados.
Sempre foi muito amigo de ir à Igreja. De verão
ou de inverno não faltava a uma missa. Aos domingos levantávamo-nos cedo e
enquanto eu deitava as cabras um bocado, ele ia a regar ou a ceifar um molho de
erva para acomodar o ganal. Se tinha que ir ao mato, levantava-se ainda de
noite porque dizia que o sol dos domingos fazia mal (mais tarde fiquei a saber
que tinha era medo da Guarda ou dos próprios donos das terras, que se apanhavam
um desgraçado com um molho de mato ou de lenha às costas, multavam-no e obrigavam-no
a leva-lo para casa deles). Quando chegávamos a casa, já a minha mãe tinha o
comer feito e a roupa dos domingos pronta para vestirmos. Depois de comermos vínhamos
todos por ali abaixo, para chegarmos a tempo à missa.
Os meus irmãos mais novos sentavam-se nos
bancos, um de cada lado da minha mãe, mas eu gostava de ficar ao pé do meu pai,
em pé, cá atrás. Ficávamos sempre no mesmo sítio, ao lado da coluna do lado
esquerdo da igreja. Depois da missa os outros voltavam para casa, mas eu ficava
com o meu pai e íamos logo direitos à Fonte Velha. A seguir íamos até ao café
da Tomásia; o meu pai pedia um copo de vinho, levava-o à boca e bebia-o logo
todo duma vez. Mas não bebia até ao fim, deixava sempre coisa de um dedo no
fundo e dava-mo:
- Bebe, que este é do bom.
Eu bebia, todo inchado, como se aquilo fizesse
de mim um homem igual a ele. Depois de um pouco de conversa com algum amigo,
saíamos direitos à Viúva; era a mesma coisa. E andávamos nisto até corrermos as
tabernas todas da Vila, que naquele tempo eram bastantes. Só quando chegávamos
ao fim é que abalávamos por aí a cima, às vezes já a cantar a Senhora da Orada,
o São João ou o Menino Jesus…
Ainda hoje, quando vou à missa, gosto de ficar
no mesmo lugar onde ficava com o meu pai; sinto saudades dele e tenho pena que só
passados muitos anos fosse capaz de avaliar a grandeza daqueles mimos…
M. L. Ferreira
4 comentários:
Linda narrativa; ainda se queixam os pais de agora porque os seus filhos não podem percorrer a pé algumas centenas de metros para irem para a escola
As pessoas que viviam nas Quintas, no Miguel Vicente, na Óles, nas Vinhas... antes de entrarem na escola já tinham um bom par de quilómetros nas pernas, chovesse, nevasse ou fizesse frio. Eram tempos...
À missa ninguém podia faltar; Pereiros, Mourelo, Casal da Serra...
Tempos épicos até para o padre Tomaz que tinha de vencer os muitos quilómetros entre a vila e as anexas, por caminhos escalavrados, veredas, cavalgando na sua égua, com bom ou mau tempo. Dai a missa do meio dia não ser à hora marcada, pudera.
Uma sardinha tinha que dar para três.
Mesmo assim o povo era alegre, agora com a barriga cheia anda macambúzio
A canalha querendo parecer... bebia a pinguita que o pai deixava no fundo do copo; escorropichava-o
À tarde; regressavam às suas casas cantando; o pai já não ia sozinho
Como recordar é viver, bendito povo que não esquece o seu passado e o recorda com saudade, porque o que resta de cada um de nós são as nossas memórias, individuais ou colectivas
As saudades dos nossos pais aumentam à medida que aumenta em nós o peso dos anos. Só depois de partirem para a outra margem é que temos a coragem de dizer
Obrigado.
J.M.S
Tocante. O amor e a ternura daquele Homem. "Ele ficava a olhar, cconsolado só de nos ver a comer aquele mimo como se fosse a melhor coisa do mundo"..."sinto saudades dele". A herança magnifica que este homem deixou ao filho. Talvez mais valiosa que alguma leira de terra. A vida é também feita de interioridade e por vezes esquecemo-nos tanto disso.
FB
Muito bonito! A humanidade daquela gente que nada exigia da vida! Por isso, consolando-se com muito pouco. A humildade de pai e filho, comparada com as nossas exigências dos dias de hoje. Exigências que fazemos aos outros e ao Estado. É certo que cabe ao Estado acautelar o mínimo das condições de vida dos seus cidadãos com o dinheiro de todos. Lá diz o José Mário Branco (salvo erro): "Só quero o que me é devido, por me trazerem aqui / Que eu nem sequer fui ouvido no acto de que nasci." Pudera! Mas, então, era ainda maior a generosidade das nossas gentes daqueles tempos.
Abraços.
JB
Um hino ao amor, de um pai para o filho e do filho para o pai.
De certa forma, é pena não conheceremos os rostos por detrás destas histórias. Em muitos casos ficaríamos surpreendidos: gente tão simples e tão bela!
O poema é do António Gedeão, cantado pelo Adriano Correia de Oliveira: "Fala do homem nascido".
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