quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Santos e santorinhos

Aproximamo-nos dos Santos e dos santoros e por isso vale a pena republicar uma história já aqui apresentada em 2013, que nos recorda dois santos (duas santas) dos muitos que vamos lembrar e ainda nos dá a conhecer as nossas tradições da época.

Aos onze anos fui trabalhar para Castelo Branco, estive lá dois anos e depois vim para a Casa Conde, em 1947 ou 48. O feitor era o senhor José Lourenço que vivia na casa com a mulher, o filho e a nora. Mas ele e a mulher iam dormir à casa do convento, na Cerca.
Como eram duas casas grandes e muito trabalho, havia mais duas criadas, uma criada de voltas e a cozinheira. Numa semana eu lavava a roupa, na semana seguinte limpava as casas. Eu gostava muito de cozinhar e a cozinheira deixava-me. Mas, como ainda era pequena e não chegava ao fogão, punha-me em cima de um meio alqueire para lá conseguir pôr as panelas.
Às vezes estava a passar a ferro e o senhor José Lourenço no escritório. Ele queria que o concelho voltasse e andava a escrever uns versos para eu ir cantar à Fonte Velha.
Vinha ter comigo e dizia-me: “Ó Eulália, canta lá agora esta.”

Querido São Vicente,
Nosso protetor
Para vos ver contente, amor,
Vai novo, vai velho, vai tudo a pedir,
que torne o concelho a vir.

Foi terra muito importante
Lá nos seus tempos de glória.
Ainda tem alguns pregões
Que lhe servem de memória.

Querido São Vicente,
Nosso protetor
Para vos ver contente, amor,
Vai novo, vai velho, vai tudo a pedir,
Que torne o concelho a vir.

Se nós trabalharmos
Todos de amor e vontade
O concelho virá já, já.

Se não trabalharmos,
De amor e vontade,
O concelho virá mais tarde.

Não sei se havia alguma cerimónia, mas não cheguei a ir lá.
Ele tinha uma caderneta para cada mercearia. Fazia compras em todas, para todos andarem contentes: Chico Tavares, Manuel da Silva, Aurélio e Francisco Matias. Quando uma criada ia às compras, levava a caderneta e o merceeiro apontava tudo. No fim do mês, faziam-se os pagamentos.
Onde agora mora a ti Janja, era o forno deles. A Luz Jerónimo é que trabalhava como forneira, mais o marido, o Albertino Henriques. Todos os dias cozia o forno, menos ao domingo. Quem lá ia deixava a poia: um pão por cada tabuleiro e dois ou três bolos por cada lata. Como coziam várias pessoas ao mesmo tempo, cada uma punha um sinal nos seus pães, para os conhecer. À noite, a forneira pegava no cesto do pão da poia e ia à Casa Conde fazer a divisão, metade para cada um. Como nós não conseguíamos comer o pão todo, nas quartas-feiras de manhã dava-se o pão aos pobres. Cortava-se cada pão em dois ou três pedaços e oferecia-se a quem viesse à porta.
Pelo São Martinho, a malta nova juntava-se em grupo e ia cantar e pedir o vinho novo aos ricos. No ano em que eu lá trabalhei, vieram à Casa Conde. No fim de cantarem, o Sr. José Lourenço veio à porta e respondeu-lhes:

Cantam muito bem e muito lindo
Mas este ano o vinho já está findo

Os rapazes insistiram e, como não lhes davam nada, cantaram o trinta martelos:

Trinca martelos
E torna a trincar
Este barba de farelos
Não tem nada para nos dar

O Sr. José Lourenço e a Dona Palmira foram dormir para a casa do convento, mas os rapazes não largaram a porta. Então a Menina Belinha e o Menino Antoninho regaram-nos com um regador, da varanda, e eles abalaram a fugir, todos molhados.
Nos Santos, as crianças vinham pedir um santorinho. Havia um cesto cheio de nozes e cada um só podia meter uma vez a mão e levar as que conseguisse tirar. Alguns ficavam muito tempo com a mão lá dentro, a esticar os dedos para apanharem mais nozes.
Os diospiros vendiam-se a um tostão cada um. No fim da escola, as crianças vinham comprá-los. Aliás, toda a fruta era para vender, o pessoal da casa só podia comer a fruta caída.
Uma noite, o Sr. José Lourenço estava em casa e viu pela janela os ramos do diospireiro a abanar. Mandou um sobrinho ver o que era, porque a viúva do irmão dele trabalhava lá com os dois filhos. O rapaz voltou e disse que era o irmão dele. “E quem mais, não era só uma pessoa!” O rapaz respondeu a custo: “Mais o Mudo.” O senhor José Lourenço chamou a cunhada e disse-lhe que o filho estava despedido e só ficava se ele lhe pedisse perdão de joelhos. A senhora chorava, pois não tinha para onde ir, mas o filho não queria pedir perdão. Andaram nisto quinze dias, mas nesse tempo havia poucos trabalhos e o rapaz acabou por vergar. Foi uma coisa que me fez muita impressão. Na vereda, com a mãe e o filho a chorarem muito, o rapaz pôs-se de joelhos no chão, em frente ao tio José Lourenço, e pediu-lhe perdão.
Ele era muito rigoroso, mas também era bom homem. Dava trabalho a muita gente, sobretudo aos mais velhos que já não podiam andar ao dia. Devia pagar-lhes um pouco menos, mas para eles era bom.
Eu vim-me embora por causa de uma coisa que se passou com a Dona Palmira. No fim de servirmos as refeições, se a comida que sobrava era para guardar para outra refeição, ela mandava-me guardá-la num certo armário e dizia-nos o que devíamos comer. Um dia, a comida foram lulas e no fim a Dona Palmira não me mandou guardar o resto. Eu trouxe para a cozinha e foi dividido pelas três criadas: uma colher para cada uma. À hora de preparar o jantar, a Dona Palmira destinou a comida para cada um e disse que o senhor José comia o resto das lulas. A cozinheira respondeu-lhe que já as tínhamos comido, porque ela não mas tinha mandado guardar. A Dona Palmira ficou muito exaltada e ralhou comigo aos gritos, porque eu é que as tinha trazido para a cozinha.
Nos dias seguintes, ela ficou na casa do convento e eu mandei dizer à minha mãe que me despedia. A minha mãe veio à Casa Conde e disseram-lhe que eu podia ficar se fosse pedir desculpa à Dona Palmira. A minha mãe disse que eu é que decidia, mas que a colher que eu tinha deixado em casa ainda lá estava, por isso a decisão era minha. E eu não quis ficar, pois não ia pedir desculpa por uma coisa que não era só eu que tinha feito.
 José Teodoro Prata
com colaboração de Luzita Candeias

José Teodoro Prata

Um comentário:

M. L. Ferreira disse...


De facto, duas santas (cada uma à sua maneira) que acrescentaram as nossas vidas. E nem é preciso o cheiro a pão acabado de cozer, ou duas andorinhas poisadas no fio do telefone, para as recordarmos.
Quanto à história, cada vez que me lembro dela ou doutras parecidas, falta-me o ar.