Era no tempo
em que se vendia a alma ao diabo por uma leira de terra. Há até quem se lembre
ainda de, por causa duns marcos, dois vizinhos se terem matado ou, por uma
passagem, irmãos passarem a vida desavindos. Não admirava, por isso, que se
arranjassem casamentos entre parentes chegados, mesmo temendo que lhes
nascessem os filhos poucochinhos do juízo. Bastava uma dispensa canónica ou,
quantas vezes, que se levasse ao padre uma galinha das mais gordas. Não
admirava também ver homens velhos a casar com mulheres que podiam ser filhas,
ou ao lado de mulheres que mais pareciam as próprias mães. Tudo para não
partirem as terras herdadas dos pais, ou aquelas de que, por artes e manhas, se
assenhoravam, chamando suas às que sempre tinham sido do povo.
Por essa
altura chegou à Vila um mancebo, pouca barba ainda, mas já com modos de senhor.
Vinha montado numa égua branca, luzidia, e seguiu direito à casa do Pároco,
onde se hospedou. O povo, pouco avezado a grandes generosidades clericais,
estranhou. Não havia casa nem taberna em que não se comentasse o caso e
fizessem suposições: Seria algum fidalgo fugido à justiça de Lisboa? Um irmão,
nascido fora de tempo? Algum filho encoberto, como havia tantos? Que ele lhe
dava parecenças, lá isso dava, pelo menos nos modos. O mistério não durou
muitos dias porque a criada, sempre à escuta atrás das portas e amiga de levar
e trazer, depressa esclareceu o mistério: o menino era parente chegado do
senhor vigário e tinha vindo para se casar com a Dona Maria José.
A Dona Maria José
era uma senhora respeitável, também aparentada com padres. Viera de fora, já
mulher feita, para se casar com um dos grandes proprietários da Vila, com idade
para ser pai dela. O casamento não durou muito porque ele entregou a alma ao
Criador ao fim de poucos anos de casados. Talvez por isso, e apesar de se dizer
que “Homem velho e mulher nova, filhos até à cova”, o ditado não se cumpriu.
Num tempo em que os pobres tinham ninhadas tão grandes, era um mistério gente
tão rica não ter ao menos um filho, com tanta terra para lhe deixar. Parecia
castigo de Deus.
Dona Maria
José já passara há muito dos quarenta, mas na Vila ninguém estranhou a notícia
daquele noivado. Viúva, sem filhos, precisava de quem a ajudasse a tomar conta
das fazendas, dos rebanhos, das juntas de bois e dos lagares que herdara do
marido enterrado há pouco tempo. Poderia era ter escolhido homem com outra
idade, mas já diziam as más-línguas que teria ali andado a mão do confessor,
que ela levava tão a peito que nem a de Deus Nosso Senhor.
Feito o
casamento, o morgado meteu mãos à obra e, não tardou, mostrou que trazia a
lição bem aprendida da casa paterna, também senhora de grandes teres espalhados
entre a Estrela, o Açor e a Gardunha. E o que não sabia, depressa aprendeu com
os outros proprietários da Vila, que, receosos que viesse criar maus costumes
aos que, todos os dias, mendigavam por uma jorna, lhe foram enchendo os ouvidos
de bons conselhos. Logo pela manhã atravessava a Praça a cavalo, todo
empertigado na cela, agarrado às rédeas como se fosse o imperador romano de
quem usava também o nome. E ai de quem não tirasse o chapéu e curvasse a cabeça
à sua passagem: era certo e sabido que não tornava a ganhar uma jorna nas
terras que eram dele.
Pareciam
entender-se bem, Dona Maria José e o morgado. Já diz o povo, “ Casal unido,
mulher mais velha que o marido”. Enquanto ele andava por lá a dar volta às
terras e a inteirar-se dos alqueires de cereais, dos almudes de vinho ou da
fundição da azeitona, ela ficava em casa, a dar ordens às criadas. Tinha uma de
dentro, já antiga, que era quem punha e dispunha em quase tudo o que houvesse
para decidir; a outra, mais nova, era quase só para os recados, ir à fonte,
esfregar o chão e arear os tachos. Também era ela que tratava da criação miúda,
nas capoeiras do quintal.
Durante a
semana Dona Maria José só saía para ir à missa da manhã e, de caminho,
aproveitava para mudar a água e compor as flores do altar do santo da sua
devoção. Se alguma coisa lhe roía a consciência ou atormentava a alma, passava pela
sacristia e pedia para ser ouvida em confissão ou apenas desabafar. Tinha um
dia certo para dar esmola aos pobres que se acotovelavam à porta das traseiras
todas as primeiras sextas-feiras do mês. A troco de um padre-nosso pelas almas
de quem lá tinha, dava uma malga de azeitonas, uma fatia de pão ou uma medida
de azeite velho, que o novo era para os gastos de casa, para a igreja, e para
vender ou dar a quem bem entendiam. Dizia-se que todos os anos mandavam cinco
almudes para as Necessidades, mas depois que mataram o rei (e amigo que ele era
do povo, que ainda por aqui passou mais que uma vez, quando vinha à caça) e os
republicanos tomaram conta do poder, nunca mais; que não estavam para alimentar
aquela corja de assassinos e ladrões, que era o que eles eram.
Também era a
dona Maria José que ensinava o catecismo às crianças para a Primeira Comunhão;
tinha até uma sala, com oratório e tudo, de propósito para a doutrina e para
fazer as suas orações antes de ir para a cama. Pelo menos um rosário à Nossa
Senhora para agradecer as graças e pedir perdão pelas próprias faltas e pelos
pecados do marido, que sabia serem muitos; alguns por culpa dela, a quem o
tempo ia esmorecendo os atrativos de mulher e diminuindo as possibilidades de
lhe dar ao menos um filho. Era por isso que, sabendo o que sabia (e não sabia
da missa a metade…), fechava os olhos; às vezes, com a bênção do confessor, até
lhe facilitava os tresmalhos.
Aos domingos o
casal saía de casa juntos para irem à missa do meio dia. Ela tinha uma cadeira
com genuflexório almofadado a veludo, mesmo à frente, junto das senhoras mais
virtuosas da Vila, que não gostavam de se misturar com o povo; ele ficava nos
bancos ao lado do altar-mor, onde só tinha lugar a fina-flor dos machos da
terra. Depois da missa, Dona Maria José ia a correr para casa a ver se estava
tudo em ordem para receber o senhor Vigário, convidado habitual para o almoço
de domingo. Ele ficava a saber das novidades, na Praça, enquanto o padre se
desparamentava. A seguir ao almoço, geralmente canja e galinha com arroz
tostado ou cabrito assado no forno com batatas coradas (a sobremesa era quase
sempre arroz doce, que o padre pelava-se pelo arroz doce da criada), Dona Maria
José retirava-se para a sua sesta ou ficava a dormitar no canapé da sala. Os
homens ficavam a jogar às cartas, mordiscando biscoitos e a provar os licores
caseiros, do melhor que já lhes tinha passado pela goela.
Era nestas
alturas, quando ficavam a sós depois do almoço, e já com a língua mais solta,
que o pároco e o parente faziam um ao outro as confidências mais íntimas, quase
sempre relativas à quebra dos votos eclesiásticos ou matrimoniais. E teriam
muito que contar, que, do padre, constavam-se belas coisas! Do morgado,
sabia-se bem que nem todas as crianças que apadrinhava, eram só afilhadas;
bastava olhar-lhes para as caras, mesmo encardidas, para encontrar
parecenças.
Foi numa
destas tardes de domingo que o assunto veio à baila: Tratava-se da filha mais
velha do pastor das cabras, já antigo na casa. Por acaso até afilhada de Dona
Maria José, ainda do tempo do defunto marido. Andaria aí dos quinze para os
dezasseis, pouco mais ou menos, e já há muito que andava de olho nela, se a via
nas mondas, curvada sobre o milho ou o trigo, nas vindimas ou na apanha da
azeitona, nas terras que eram dele. Cachopa desenxovalhada, com os olhos sempre
a rir; a cantar, nem um lírio:
Loureiro verde loureiro
Loureiro assim, assim
Enganaste uma donzela
Casa com ela, ó Joaquim.
Casar com ela não caso
Que ela de mim não faz conta
Loureiro verde loureiro
Seco no meio verde na ponta.
Era tão
despachada para o trabalho que até parecia que tinha quatro braços, em vez de
dois. Já tinha até falado à mulher que a metesse de criada, mas ela não tinha
querido, que não precisava. Poderia o vigário dar-lhe uma palavrinha? O vigário
demorou um pouco a responder, que a rapariga era filha de gente honesta, mas
como uma mão lava a outra, lá se resolveu: «Deixa estar, que vou ver…». E a
verdade é que, passado pouco tempo, a rapariga largou o trabalho no campo e
passou a criada de servir. Sempre era melhor do que andar à torreira do sol, de
verão, ou debaixo de água todo o dia, no inverno.
Não tardou
muito, um dia, já à boca da noite, chegou a casa debulhada em lágrimas. Por
mais que a mãe lhe perguntasse as razões de tanto pranto, ela não as disse. Só
que não tornava para casa da madrinha; antes morta. Não foi difícil à mãe
descortinar o que se andaria a passar, mas, acomodada ao domínio dos ricos
sobre os pobres como se o destino dela tivesse que se perpetuar no destino dos
filhos (sempre assim fora), sabe Deus com que mágoa, não encontrou outros
argumentos: «Tens que voltar, filha. Se te vieres embora eles põem o teu pai
também na rua, e o que é que vai ser de nós, que mais ninguém lhe torna a dar
trabalho? Com os teus irmãos ainda tão pequenos, só se formos todos estender a
mão à caridade». E a rapariga voltou, mas a partir daquele dia nunca mais se
lhe viu um sorriso na cara. Não tardou, começou a ver-se-lhe a barriga a
medrar. Era um menino, mas dizem que morreu ao nascer. A mãe, quase uma criança
ainda, ia morrendo também, de tristeza.
Passados
alguns anos encontrou um homem bom que quis casar com ela. Tiveram muitos
filhos, e depois muitos netos e bisnetos, mas as lembranças daqueles tempos,
tão cheios de penas, apagaram para sempre o brilho dos seus olhos.
É assim que me
lembro dela.
M. L. Ferreira
3 comentários:
Uma bela história e, como sempre (isso já não é novidade!), muito bem escrita! Desta vez com recurso, muito a propósito, a alguns provérbios populares. Depois, uma agudeza de olhar em certos pormenores; como, por exemplo, aqueles, após o suculento manjar, em que a dona da casa adormece no canapé enquanto os homens ficam a jogar às cartas, debicando biscoitos e bebericando licores...!
Mas, claro, para além disso, temos a questão de fundo que era a situação das classes sociais, com o reflexo que isso tinha nas suas vidas concretas. Por esta simples mas significativa história (que penso que é verdadeira), se compreende o mundo das pessoas! E dessa gente do poder que, deitando mão às armas que tinha na escala social, extirpava e desumanizava totalmente a alma daqueles que apenas queria ser pessoas com dignidade. E se soubermos, como de facto sabemos, que isto era a regra e não a excepção, ainda mais se nos acirra o ânimo perante tanta safadeza. Para mais, quando, à época, tudo era acolitado pelo poder da hierarquia da Igreja.
Ainda conheci alguma dessa gente que queria que nos levantássemos se estivéssemos sentados (ou que os homens tirassem o chapéu) quando passava, só porque eram ... ricos!
Bem sei que em qualquer sociedade, onde haja escalas sociais (e isso haverá sempre), estas coisas podem acontecer, quer, pois, nas formas de governo com república, quer com monarquia. Mas, seguramente, que é nas democracias modernas que desenvolvem uma classe média forte, baseada na lei, que estas histórias têm tendência a desaparecer, pelo menos com contornos como estes.
Por isso, já aqui tenho manifestado a repugnância que nutro pela forma de governo das monarquias; não que nas monarquias modernas estas coisas se passem da mesma forma. Até porque, valha-nos isso, nessas democracias, o rei e os nobres já não mandam nada! A própria queda da monarquia (portuguesa) teve lugar na época em que teve lugar esta história; mas era nela que a sociedade ainda tinha a suas raízes. Vejamos: na verdade, é ainda nas monarquias de hoje que se vê a desigualdade formal (legal, ostensiva e pretendida) entre os cidadãos como pessoas! Alguém por acaso descortina por que carga de água se diz (por exemplo) que os ingleses são "súbditos de sua majestade" ? Mais: com efeito, e, embora tal realidade seja mais simbólica do que concreta, continuamos a ver nascer crianças nessas monarquias que recebem, assim que são paridas, um título de conde ou de marquês! Pessoalmente, não conheço coisa mais aberrante que isto!
Abraço, hã.
JB
Pois...
Tempos difíceis para se ser pessoa, os do passado recente e também do longínquo.
Felizmente, um abismo separa esses tempos do oásis que é hoje a Europa.
Ando a ler um livro sobre Roma (SPQR - Uma História de Roma Antiga) onde aprendi que o que se passava com as crianças frágeis, doentes e deficientes, em Esparta (estes recém-nascidos eram abandonados, atirando-os de um penhasco), era ultrapassado em Roma: um bebé acabado de nascer só era considerado uma pessoa após a família decidir se ficava com ele. Em caso negativo, os bebés, sobretudo meninas, eram deixados nas lixeiras, sendo uma abundante fonte de recrutamento de escravos (pessoas apanhavam-nos, criavam-nos e depois vendiam-nos ou ficavam com eles como escravos).
Alguns expostos das nossas casas da roda não tiveram muita melhor sorte, embora alguns tenham sido criados por famílias carinhosas que lhes permitiram uma vida feliz.
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