quarta-feira, 22 de abril de 2020

Remoer pecados velhos


Os meus padrinhos resolveram pôr-me o nome de Idalino Justo.
Fruto dos anos que Nosso Senhor me deixou acumular até hoje, a lista de memórias enche já uma arca grande das antigas e dou comigo a vasculhar lembranças e a remoer pecados velhos.  
Ora, existiu em tempos um rapaz — não haveria entre as nossas idades uma diferença de metro — que, de seu próprio nome, se chamava António e nascera de família Assunção.
Se não podemos escolher os nossos vizinhos ou os camaradas de trabalho, logramos, pelo menos, eleger os nossos amigos. Porque nascêramos na mesma terra, éramos genuinamente afeiçoados, mas um poucochinho mariolas. Um poucochinho é favor, embora — creio eu, que sou suspeito — não tivéssemos, propriamente, um ruim caráter. Enfim, possuiríamos aquilo a que um outro companheiro nosso costumava chamar “velhacaria boa”.
Coisas da idade!
Aos domingos à tarde, no verão, sendo propício, aventurávamo-nos à marouva, mas deitávamos os olhos por largo, não fossem os donos estar de vigia; ou podíamos optar por nos divertir a esconder as fatiotas dos que nadavam, em pelote, no açude do Plome. O pior era se a roupa pertencia a alguns dos mais taludos que já exibiam no púbis excrescências filiformes porque, nesse caso, corríamos o risco de pagar o atrevimento com um bom caldo no pescoço. E bico calado!    
Muitos chamavam ao moço António, o “Picado”, por mor de algumas marcas no rosto deixadas pelas bexigas negras. Aquelas a que os estudiosos das moléstias chamavam varíola.  
Chegaram-lhe em pequeno. Esteve às portas da morte e, por isso, muito perto dos pórticos dourados do paraíso. Um lugar que ninguém quer antes de tempo, por mais idílico que no-lo pintem! Escapou!
Propalava sua mãe que o pequeno se livrara da terrível doença, por intervenção miraculosa de S. Sebastião. O santo e valoroso militar sacrificado a mãos ímpias que, no coro dos eleitos, tem o particular crédito de afastar as pragas.
Pelo menos ela assim acreditava, no fundo do seu coração de mãe. Pois que, muitos foram os infetados por aquela enfermidade que acabaram por perecer, mas mais ainda foram os que sobreviveram. Bem precisávamos agora do santo. É uma questão de o invocarmos, porque lá diz o Mestre nos Evangelhos: “Pedi e dar-se-vos-á.”   

As nossas famílias eram oriundas de um maciço granítico com penhascos nos pontos mais elevados, próximo dos lugares onde acabava a cordilheira central da Meseta Ibérica. Se se olhasse a montanha lá de baixo das fitas das estradas que serpenteavam na planura, podia destrinçar-se na bruma azulada e leitosa dos serros, o alvejar das casas dispersas pelas clareiras, como peças de roupa branca a corar na relva das margens do Açude das Passadouras.  
No chão hostil se fixaram gerações de camponeses. Muito sangue celta e lusitano haveria por ali! Não conheciam outra forma de sobreviver que não fosse o cultivo da terra. Arrostar com as dificuldades dos trabalhos do campo na paisagem inóspita serrana, requeria homens e mulheres de grande têmpera, endurecidos aos sóis dos séculos.   
Neles, certamente, se terá inspirado o poeta:
“Eu nasci na Beira,
Sou homem pequeno,
Sou como granito,
Bem rijo e moreno.” (a)
Gente que foi capaz de colocar em alerta a própria Roma invasora, que pagou caro o seu atrevimento; e que só por meio da vil traição levou a cabo os seus intentos de conquista. Para submeter os bravos monteses, foi necessário que se desonrassem os Césares!  
António era o mais serôdio — terá mesmo vindo a destempo — com relação aos outros irmãos, cinco rapazes e duas raparigas, todos sãos e perfeitos, que os benzera Deus. Compunham a prole de Maria José e Manuel Assunção.
Chegada que foi a idade, António iniciou a frequência escolar. Poder aprender, era um sinal dos tempos. Não passou, porém, essa época sem que houvesse grandes inquietações para o pai, dadas as exigências que estavam a nascer, que vinham ao invés dos costumes que sempre vigoraram naquelas regiões. Entre filho de lavrador e filho de peixe há apenas a diferença do meio. Tudo apontava, portanto, para que o pequeno seguisse as pisadas do pai. Não era fácil modificar as costumeiras regras de séculos. Mas com a alteração da política no país, sentiam-se ventos de mudança. Valha a verdade — que deve estar sempre nos espíritos bem intencionados — o rapaz começou a achar-se descontente.
Andava farto de guardar cabras, lavrar a terra e carregar molhos de mato. E competia às gerações mais novas mudar alguma coisa. Da cidade capital, os ecos eram de que o país deveria progredir; queriam a mocidade nas escolas. Dantes, as leis nem chegavam à serra. Todavia, algo parecia estar a mudar e já não era como no tempo da Patuleia — rolara entretanto uma rima de anos — em que cada um fazia o que queria. Passou a ser um caso sério não acatar as ordens de quem mandava.
Então, o moço principiou a ler os livros e a cursar as aulas, em alguns dias da semana, mas de forma, por enquanto, muito pouco regular. Tinha que trabalhar nas terras do pai, uma fazenda que ainda era coisa que se visse!
Mesmo nos dias em que dava um salto à escola, o progenitor não o dispensava de ter que ajudar. Assim que regressava a casa, o pequeno pegureiro via-se obrigado a atirar a bolsa dos livros para um canto e toca de ir guardar o rebanho ou auxiliar os irmãos mais velhos na lavoura. Não podia fazer os deveres nem estudar a lição.
Manuel ainda não tinha assimilado os novos tempos e fora a mulher, a Maria José, quem primeiro trouxera a novidade. Tinha sido chamada por causa do filho e o recado que lhe dera a Zita, a contínua da escola, era que o garoto mais novo, o António, ainda em idade escolar, andava a dar muitas faltas e isso não podia continuar!  
— O governo quer que os catraios vão à escola todos os dias, Manuel. Há ordens! — dizia ela para o marido, à noite, quando todos estavam reunidos a cear. Contando as mulheres dos filhos mais velhos e os netos, ainda pequeninos, ao todo, eram doze à volta da enorme mesa de carvalho da ampla cozinha.
Estava visto que o Manuel não podia andar com tibiezas em relação ao filho mais novo que, uns dias ia à escola, outros não. Não podia fazer o que fizera com os outros que nunca aprenderam a ler que prestasse. Aquilo agora era a sério!
— Por modos — continuou a mulher — querem dar algumas letras aos mais novos para o país avançar! Sendo assim, por mais que te custe, homem, agora não é como dantes. O nosso António tem que ir à escola todos os dias. Tens que meter isso na cabeça de uma vez por todas! Não vão eles meter-nos por aí em trabalhos! 
Eles, eram os do governo.
Foi só então que o Manuel tomou verdadeira consciência do caso. As palavras da mulher, ditas daquela forma tão clara e aberta em frente de toda a família, estouraram que nem um foguete de tiro em casa do Assunção.  
E não era tudo. A professora mandava mesmo avisar, pela boca da Zita que, caso as ordens não fossem cumpridas, se preciso fosse, a Guarda Republicana se encarregaria de passar lá por casa e depois logo se veria...! O mais certo era o Manuel ter que pagar a multa de oitenta mil e quinhentos.
— Isso pode lá ser! Quase três semanas de trabalho de um homem! — vociferava, tonto de todo.
— Atreve-te, Manuel, e verás! — insistia a mulher. — Pagas a multa e, no fim, sempre tens que abrir mão do António.  
— Ir todos os dias para à escola! Ora essa! — contestava o agricultor num misto de irritação e lamento.
— Não há dúvida! Isso é para os ricos! Que rendimento é que dá a escola? Ná! Quem pode trabalhar, tem que trabalhar…! Na fazenda há que fazer para todos! E na minha casa não há lugar para figurões!
O caso não era de morte, mas parecia. Em tantos anos, nunca houvera razão para que se visse o homem tão altercado! Ele que até tinha fechado os olhos naqueles raros dias em que o rapaz fora à escola. Mas, quererem impor-lhe um preceito como se põe um barbilho a um chibo, deixava-o das avessas!
— Ora uma destas! Quererem pôr-me o rapaz todos os dias à boa vida, sentado num banco! Se já se viu isto! Tenho um rebanho de mais de oitenta cabeças de gado para guardar! Quem é que me resolve a minha vida? O governo sabe lá o que anda a fazer! — bradava o Manuel Assunção; e retornava:
— Homessa! Levarem-me o moço para a calhandrice, a aprender coisas que não fazem falta nenhuma…! Letras são tretas! — lastimava o velho lavrador.

Mas, lei, é lei e pronto! O Manuel nada podia fazer. Por jeitos, até lhe soara que o homem que governava em Lisboa não era lá muito bom de assoar! E não teve outro remédio senão deixar ir o filho diariamente à escola como mandavam as normas. Bem lhe custou!
Então o António lá ia todos dias de manhã, a pé, da fazenda até à escola — e se aquilo era um esticão! — aprender as letras, os números e a história de Portugal. A sua vida foi andando desta forma durante alguns anos. Quando chegou a altura, foi à cidade, com os outros, fazer o exame. Em simultâneo com a escola, fizera também a catequese e a comunhão. Para o pai terminara o pesadelo. Precisava do filho e este, finalmente, estava liberto. No entanto, não era tudo. Este filho mais novo reservava aos progenitores outras surpresas.      
O pequeno medrou, fez-se rapazote e trepou a mocetão desempenado. Na idade própria foi às sortes e calhou a livrar-se da vida de soldado. Subiu a homem casadoiro. Porém, desde que espigara, crescera nele a curiosidade. A escola ajudara-o a espertar. A vontade de saber coisas novas e perscrutar outros horizontes estava bem viva no seu pensamento. 
Cedo principiara a ouvir falar os irmãos mais velhos do tempo da tropa passado em Lisboa e a vida na grande cidade. Onde as ruas fervilhavam apinhadas e as turbas se contorciam; os elétricos e os automóveis faziam elevar no ar a troada dos seus motores e os estrépitos das buzinas. Ansiava caminhar nas largas avenidas de traçado retilíneo, com áleas de árvores intermináveis! O mar a entrar pelo Tejo, os grandes edifícios a ladear as alamedas, lojas, teatros, cinemas, restaurantes e monumentos históricos. Os homens sempre engravatados e as mulheres a passear-se pela rua ostentando belos vestidos da moda, lavados e bem cheirosos.
Até então, ele sabia apenas o que era andar com cabras e ovelhas e com a burra pela trela, a picar os bois presos ao carro ou ao arado; jornadear descuidado, a olhar o horizonte, o sol e os fragmentos de nuvens brancas no azul claro do céu; admirar as copas verdes das árvores, a floração variada e as cores dos frutos maduros; ouvir os sons campestres dos pássaros a gorjear desde manhã cedo, compondo uma sinfonia inimitável; chapinhar nas mansas e claras águas da ribeira onde os peixes lhe fugiam por entre os dedos ou desafiar, no inverno, as fortes correntes que desciam da serra e saltavam das cascatas, desfazendo-se em espuma; apanhar chuvadas e escutar o vento nas ramadas, a sibilar nos telhados ou a assobiar nas frestas das portas!
Tinha afeto às coisas, pessoas e lugares da sua infância, o que o fazia agarrar fortemente ao pedaço de terra que o vira nascer. Conhecia cada bloco de granito do muro da praça e do pelourinho, a musicalidade lamurienta da fonte antiga, velha de séculos, de bicas a correr incessantemente, onde bebia água ainda que não tivesse sede. Sabia de cada pedra da calçada, onde passara mil vezes a caminho da escola, gravando numa delas, a riscos de tijolo, o termo mais custoso da tabuada 8x7=56, para o decorar!

Mas a curiosidade espicaçava-o! Num certo dia, o mano mais velho que conhecia a sua ansiedade, puxou-o para um canto da casa.
— Olha lá, moço — disse-lhe, pondo-lhe amigavelmente a mão no ombro — já sabes como é isto aqui. Se queres fugir a esta existência de canseiras, tens que te botar a Lisboa. As terras não dão para a côdea. Se tencionas governar melhor a vida, tens que te abalançar a outros voos. À espera da herança, não chegas a chambaril. Somos muitos irmãos e caberá tuta e meia a cada um. Nós somos mais velhos, arrumámos casa, possuímos as nossas próprias famílias e ligámo-nos à terra; cá havemos de nos arranjar. Mas nunca poupámos dois réis. — lamentava-se o mais velho dos irmãos.
— Tu vieste noutra época; foste à escola e encarrilhaste com as letras. O pai podia bem ter-te mandado ao latim do seminário. Sei que ele quer o bem dos filhos e da mulher, mas é de outra época e não muda. Quando casou com a mãe deu-lhe a entender que era um às de ouros; que, com os bocados que tinha, lhe proporcionava uma vida regalada: fidalga de casa, chinelinha no pé branco e criada grave! Mas qual?! Trouxe-a sempre vergada à terra! Talvez um dia, com os pés para a cova, caia nele e bata na cabeça com os nós dos dedos e não sinta dor! — dizia com tristeza. 
— Mas pode ser que ainda não se tenha perdido tudo. Vê se arranjas emprego na Carris ou nalgum grande armazém comercial. Pudéramos nós concretizar o que tu ainda estás a tempo de fazer. Assim, terás com que comer, andas sempre lavado e limpo e cai-te nas mãos um ordenado certo todos os meses sem te queimares ao sol. É melhor tratares de meter os pés a caminho. A tua parte da herança cá te ficará guardada — asseverava.
Nos olhos de António crescia um brilho límpido, diamantino. Se o irmão lhe dizia aquilo, ele que tinha andado na tropa, conhecia o mundo e tinha tantos calos nas mãos, era porque devia ser verdade.
— É melhor escreveres ao tio Liberato que anda por lá há muito tempo e verás o que ele pode fazer por ti.

Passou um bom par semanas. Ao cabo, o correio trouxe a resposta do tio ao pedido do sobrinho. Que sim, que se arranjava lá uma vaga no armazém. Depois de estar encaixado e receber a sua paga, podia depois o moço espreitar o furo e deitar os olhos por largo. Com as letras que tinha, em terra de oportunidades, sempre podia tirar as cartas e subir na vida; ou entrar para o Estado onde ganhava menos, mas era sempre certo. Que tratasse das coisas, que se preparasse e que fosse procurá-lo na morada que enviava. Até receber a primeira féria, podia ficar lá em casa; depois, que remédio, teria que se orientar e tratar de vida!
Tinha o jovem o destino traçado. Sonhava havia muito tempo com a ida para a grande cidade e tinha agora o apoio do tio.
Felizmente, tudo correou como planeado. Chegou à cidade, iniciou o seu trabalho e acomodou-se. Passado algum tempo voltou à terra e concertou o namoro com uma rapariga desenxovalhada e trabalhadeira. Muitos o viram, tão grave que parecia um doutor, de fato e gravata, barba feita, bem penteado, brilhantina e água de cheiro! Mais tarde regressou para casar e levou a Arnaldina — assim se chamava a moça — e tiveram vários filhos. Os tempos de andar de safões e de botas de pneu já lá iam. Assentaram e por lá andaram mais de 50 anos!  
António foi conhecendo o encanto dos lugares por onde andava; e o facto de já ter família própria, fê-lo pegar de estaca por outras paragens. Voltava à vila só nos verões, com a prole, a matar saudades. E quando soou a hora, teve que acompanhar, primeiro o pai e, mais tarde, a mãe, à sua última morada, nos tristes e sombrios dias das suas mortes.

Aquela tormenta de anos em Lisboa passou por António como uma brisa a dar na erva tenra dos lameiros à beira da ribeira; tão suave e ligeira que não se dava por ela a agitar as folhas de mansinho. O tempo fugiu-lhe debaixo dos pés, mais veloz que um raio a riscar o horizonte. Pouco a pouco tornou-se num homem maduro, o cabelo foi mudando paulatinamente para grisalho e os anos fizeram-no aproximar-se da idade de Manuel, o pai, quando se despedira da família para rumar a Lisboa, ao seu destino. Nunca quis ser rico porque o dinheiro ficava cá todo e na vida havia coisas mais importantes. E isso, pensando bem, era verdade, não era só retórica.
Tinha apenas o amparo da reforma, fruto de anos e anos de trabalho. Fora conseguida com o sacrifício da família de origem, longe do sol estuporado e quente, mas também afastado das frescas nascentes, a brotar da terra, onde bebia água de bruços; e distante da sombra fresca e reconfortante de uma árvore de grande copa.    
 Neste entrementes, sem o trabalho diário a que estava habituado e que lhe ocupava o espírito, António passou a refletir mais na vida do que até ali. O tempo continuava a passar por ele, impiedosamente, aos poucos, com pés de lã, a furtar-lhe a vida, o ladrão!  
E sucedeu que, não sabia muito bem porquê, parecia que lhe viera de novo a vontade de se sentar nos bancos da praça da sua vila. O apelo derradeiro de querer acabar os dias na terra que o vira crescer, a saudade ou o que quer que fosse, começaram a falar-lhe ao coração. Confessou-o à mulher que não se opôs; ela própria suportara tudo de idêntica forma. Lentamente, António foi-se habituando a aceitar a ideia de que, quando chegasse a hora, desejava, no mais íntimo de si, descansar o sono eterno no chão que lhe estava no âmago.
Os filhos achavam-se criados e arrumados. António e Arnaldina até já tinham os primeiros netos. E o mais difícil era separarem-se dos pequenos. Mas tudo se havia de arranjar. Os filhos se encarregariam de os levar de voltar à aldeia durante as férias escolares, coincidentes com as festas assinaladas.
Quando mal se precatou, estava a fazer as malas para rumar definitivamente aos velhos serros da infância. Aproveitou a época da primavera para o regresso e, em determinado dia de sol, ainda com alguns rudimentos da sua própria incredulidade, encontrou-se a descer da camioneta na paragem da vila, que em tempos o vira partir rumo ao futuro.
Tratou de se instalar com a mulher numa parte da casa do pai, Manuel, que lhe coubera por herança. E não passou muito tempo sem que também se surpreendesse a semear uns canteiros de alfaces, tomates e cebolas. Depois, viria a poda das árvores, de tesoura na mão, aos estalidos a cortas os talos e, a seguir, a plantação das batatas e das couves. Não lhe tinha perdido, de todo, o jeito! A vida era saudável, longe do bulício irritante da cidade, sem andar nas avenidas a inalar o fumo do trânsito que, entretanto, tinha multiplicado dez vezes! Fora essa agitação que um dia tanto o atraíra…!

Os anos, na vila, porém, mudaram a aparência das pessoas, das coisas e dos lugares. Desaparecera o corrupio das mulheres ao domingo, pelas ruas, de lenço na cabeça, filhos pequenos pela mão, a caminhar apressadas para a igreja, depois de tocar a última. Já não havia na praça os costumados magotes de rapazes feros, vigorosos, a falar com voz forte e timbrada. As tabernas, onde à saída da missa os homens se costumavam juntar a beber uns tintos e a falar de negócios, tinham fechado. A vila desertificara-se.  
Alguns idosos que sobravam, podiam ser encontrados à conversa, sentados como era hábito, nos bancos da praça, desnovelando reminiscências e revisitando o passado, porque quase nada mais lhes restava.        

Um dia, um filho do meu rapaz do meio, o meu neto, cruzou-se — ele próprio me relatou o episódio — com esse grupo de velhos, onde se encontrava o António, de quem venho dando relação.  
A mocidade escasseava. Os jovens, pela própria diferença etária, era evidente que tinham nascido muito antes do regresso do António, ainda recente. Diz-se que na aldeia todos se conhecem, mas a realidade da vila, desmentia esse saber popular. Pese embora não se assinalassem conflitos era, todavia, notório — ao invés de outro tempo — o desapego geracional, mormente devido ao êxodo do mundo rural. Era o que sucedia entre o meu neto e o António Assunção.
Era, porém, compreensível a carência e necessidade do contacto humano. Por isso, aqueles homens de aspeto outoniço, ávidos de conversa, ao verem passar um moço novo — e porque isso não era assaz frequente — procuravam entabular conversa, que era uma forma de matar o tempo, mas, sobretudo, de reanimar o ego e, por vezes, até, ocasião para algumas pilhérias.
Então, o António vendo o moço aproximar-se e, pensando interpretar a vontade coletiva, adiantou-se ao grupo e, com a curiosidade que lhe era peculiar, auscultou-o de alto abaixo. Pareceu-lhe, por momentos, poder entrever quem seriam os seus parentes; mas, não podendo afirmar, com certeza, de que família se tratava, pôs-se a tirá-lo à casta.  
— Olha lá, meu rapaz, diz-me cá, tu não és filho lá de cima do Idalino Justo das Quintas?!
O moço estacou perto daqueles homens de gaivas no rosto e cabelo branco e raro.
— Não senhor, não sou filho.  
— Não?! Então a quem pertences tu cá na vila?
— Sou da família do senhor Idalino Justo, mas não sou filho, sou neto! O meu pai, sim, é filho dele.
— Ah…! Não fazia ideia… Sim, eu às vezes...! Enfim, que diabo… pois… já passaram estes anos…! Com que então, neto!  
— Sim, senhor…
— Não hei de eu estar velho! Pelo teu ar, bem me parecia que pertencias à família. Conheci bem o teu avô. Éramos amigos, tínhamos o sangue na guelra e ainda fizemos por aí umas patifarias.  
— Já ouvi o meu avô falar de si. O senhor não é o António Picado?
— Eu mesmo! Então o teu avô já não quer descer cá abaixo para, ao menos, vir à missa?!  
— Não senhor. Por enquanto não vem, até ver se melhora. Vamos lá ver… Anda um bocado mal das pernas e cansa-se muito; vai-se entretendo por lá e segue a missa pela telefonia.
— Mal das pernas, hã! — ruminou António — Ora vão vendo! Rapazes mexidos e escorreitos como nós éramos! Tenho que passar lá por riba, por casa, para o ver.
— Pois, sim, senhor. Quando quiser.  
Algo se terá passado na cabeça daquele homem, porque os seus olhos cavos pareciam ter adquirido repentinamente um brilho mais cintilante. Depois, pareceu ter reprimido um suspiro, mas recompôs-se e volveu ao rapaz:
— Vai, moço, vai à tua vida! Estimei ver-te e dá um abraço ao teu avô.
— Sim senhor. Fique descansado.
O rapaz seguiu o seu caminho e os velhos, que tinham escutado a conversa, ficaram a vê-lo afastar-se, sem proferirem palavra, até que dobrou o cunhal de granito da Casa da Câmara e desapareceu. 

No entretanto, António continuava a tratar do bocadito da fazenda que tinha na vila. À tarde, aproveitava para fazer as suas digressões pela estrada e pelos caminhos de terreno direito, para desentorpecer as penas. Dava normalmente uma volta em redondo, sozinho, enquanto a mulher, principiava a migar as couves para cozinhar a sopa para a ceia.
Nesses passeios, por vezes, visitava o cemitério. Na sepultura simples de seus pais que fora adquirida pela família, constava uma singela lápide que ele e os irmãos, em tempos, mandaram lá colocar. Dizia apenas:   
“Aqui jaz Manuel Assunção e Maria José. Eterna saudade de seus filhos, noras e netos.”
Ali ficou sentado por uns instantes, murmurando algo não percetível. Depois, levantou-se para ir à sua vida. Tinha ainda que ir à horta, regar umas couves, antes do sol descer no horizonte.

            POST SCRIPTUM

Passados uns dias o meu amigo António Assunção, conhecido por Picado, sofreu uma macacoa qualquer que o pôs quase incapaz de se deslocar. Ficou ainda pior que eu. Coisas de velhos! Não chegou a ir visitar-me como prometera ao meu neto na conversa da praça. Em breve, o seu nome veio a ser acrescentado ao epitáfio daquela campa. E foi para que a sua história não se perdesse e caísse no esquecimento que eu, Idalino Justo, vim hoje aqui desfiar recordações e remoer pecados velhos.


(a) Arlindo de Carvalho, “Castelo Branco”.
Nota: História ficcionada, baseada em vivências de pessoas diversas; podem ter sido utilizados termos ou expressões regionais ou locais, não oficiais.

JOSÉ BARROSO

4 comentários:

M. L. Ferreira disse...

O José Barroso parece ser um bom exemplo de como, mesmo confinado fisicamente, se consegue manter inalterada a capacidade criativa. Não é que, para escrever esta história, fosse precisa muita imaginação; basta uma grande capacidade de memória e observação, o que também não é tarefa fácil.
A história que aqui nos conta é o retrato perfeito da vida da nossa terra (da maior parte das aldeias portuguesas, há pouco mais de meio século), esmiuçada nos aspetos essenciais. Refiro apenas alguns: a ruralidade e dureza da vida da maior parte da população; as doenças que matavam tantas crianças e adultos; famílias numerosas, onde os filhos eram considerados uma bênção pela contribuição que, desde muito cedo, davam para a economia doméstica; a pouca valorização da educação escolar, pelas baixas expetativas relativamente ao futuro e à crença na fatalidade da vida dos pobres; o sonho de Lisboa (interessante a referência à Carris onde trabalharam muitos dos nossos conterrâneos), para muitos dos que conseguiam completar a escola primária e sabiam que era a única forma de fugirem à dureza do trabalho do campo. Ainda assim, voltavam sempre nas datas assinaladas, e muitos regressaram de todo, quando chegou a reforma, porque, como conclui a cantiga do Arlindo de Carvalho:
«Quem nasceu na serra
Não ama a cidade,
Só na sua terra
Se sente à-vontade».

É uma história enorme no tamanho, mas sobretudo no reavivar de tantas memórias.

Anônimo disse...

A forma como escreve a vossa geração é divinal, já não se aprende a escrever assim... coisas de outros tempos... Gostei tanto deste conto, que nos leva numa travessia tão grande...
Gratidão S. Sebastião, por nos livrares da pandemia de covid 19 e nos permitires envelhecer e conversar sentados nos bancos das nossa praças.
;)

Margarida

José Teodoro Prata disse...

Mais uma vez, o Zé Barroso tira-nos o retrato com uma boa prosa, que abrange várias décadas e gerações.
Está a ter um enorme sucesso entre os leitores do blogue, nesta época de confinamento em que as pessoas têm mais disponibilidade.

Anônimo disse...

A Libania fez já a análise sociológia da narrativa e a Margarida sinalizou perfeitamente a travessia dos mundos de que a nossa geração foi protagonista.
Eu, sendo assim, só tenho que agradecer o prazer que tive de a ler... Lá no fundo o geração nascida nos idos de 50/60 acaba por se rever no espelho desembaciado que é esta história.
Muito obrigado José.
FB