quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Epidemias do passado (e do presente)

As epidemias, causadas principalmente por bactérias e vírus, atingiram a humanidade desde a antiguidade, e foram responsáveis por mais mortes que todas as guerras e cataclismos juntos.

Alguns números:

A peste bubónica, também conhecida por peste negra por ter sido a mais mortífera que atingiu a Europa e a Ásia, teve o primeiro grande surto no século XIV. Teve depois outras vagas, a pior no século XVII, quando atingiu dramaticamente as cidades de Londres, Amesterdão e outras capitais. Sem capacidade de acorrer a todos, muitos doentes eram abandonados nas ruas e deixados durante vários dias até morrerem. Estima-se que tenha feito para cima de 50 milhões de mortos.

A cólera, que teve a primeira epidemia global em 1817, causou centenas de milhares de mortes em todo o mundo. Na Europa existem atualmente apenas alguns surtos pontuais, mas continua a matar muita gente, sobretudo crianças, nos países mais pobres de África, Ásia e até da América Latina.

A tuberculose foi uma das doenças mais mortíferas em todo o mundo. Estima-se que tenha matado mais de 100 milhões de pessoas. O combate através da vacinação quase a eliminou de grande parte dos países desenvolvidos, mas continua presente em muitas regiões do globo, principalmente em África e alguns países asiáticos.

A varíola, conhecida entre nós por bexigas, atingiu a humanidade durante mais de três mil anos. Só entre 1896 e 1980, altura em que foi erradicada do planeta por efeito da vacinação, terão morrido em todo o mundo mais de 300 milhões de pessoas.

Os registos de óbito raramente referem o motivo da morte, mas entre dezembro de 1874 e dezembro de 1875 morreram em São Vicente 85 pessoas com bexigas, quase todas crianças até aos 10 anos, mas também alguns adultos jovens.

A pneumónica, também chamada gripe espanhola, que afetou o mundo entre os anos de 1918 e 1919, foi uma da mais mortíferas de todos os tempos. Infetou cerca de um quarto da população mundial e deixou um rasto entre os 50 e os 100 milhões de mortes. Só em Portugal morreram para cima de 60 mil pessoas e o distrito da Castelo Branco foi um dos mais atingidos (12 659 pessoas, tantas como no Porto). Em São Vicente também terá matado muita gente. Ainda hoje se ouvem contar histórias desses tempos, em que os mortos eram tantos que não davam vazão a enterrá-los.

O tifo, que afetou o exército de Napoleão aquando da invasão da Rússia e também os militares durante a Grande Guerra, matou para cima de três milhões de pessoas entre 1918 e 1922.

A febre-amarela é uma doença viral transmitida pela picada de um mosquito. A vacinação erradicou-a da maior parte dos países, mas continua a matar nas zonas mais pobres do mundo. Só entre 1960 e 1962 fez cerca de trinta mil mortes na Etiópia.

O sarampo, que muitos de nós ainda apanhámos na infância obrigando-nos a ficar fechados no quarto quase às escuras, fez para cima de seis milhões de mortes em todo o mundo, até 1963. A par da varicela e da varíola, levadas pelos colonos da América, foi responsável pela morte de muitos povos indígenas daquele continente. Com a vacinação foi quase erradicado na maior parte dos países, mas continua a ameaçar e a matar ainda atualmente.

A malária, a pior doença parasitária da atualidade, encontra-se disseminada ainda por muitos países de clima quente e húmido, condições ideais, a par da pobreza, para o desenvolvimento das larvas do mosquito que a provoca. Só em África mata mais de três milhões de pessoas todos os anos.

O HIV, a doença que mais fez tremer o mundo quando surgiu nos anos 80 do século XX, já fez cerca de 22 milhões de mortes. O tratamento que está disponível no mercado é tão caro que o vírus continua a infetar e matar muita gente, principalmente nos países mais pobres de África, Ásia e América.

E algumas curiosidades:

Ligados às epidemias surgiram termos, crenças, práticas e conceitos que ainda hoje se mantém. Aqui ficam alguns:

Quarentena: É o período em que um indivíduo ou uma mercadoria têm que ficar isolados para evitar a propagação de uma doença. Dura normalmente o tempo de incubação do vírus ou da bactéria, que não é, normalmente, de quarenta dias. O termo surgiu por associação aos quarenta dias e quarenta noites em que Jesus se isolou no deserto da Judeia e, resistindo às tentações do demónio, saiu purificado.

Distância Social: É o espaço que é recomendado manter entre as pessoas ou os grupos para evitar o contágio de uma doença. No caso da atual pandemia a distância é de dois metros, mas a recomendação dessa medida já vem de longe. Diz-se que antigamente os médicos usavam um bastão com esse comprimento e colocavam-no entre eles e o paciente, durante a consulta, para evitarem o contacto físico.

Lazaretos: Eram os edifícios construídos para isolar e desinfetar os doentes ou mercadorias vindas de locais contaminados e evitar o contágio no seio da população. Na foz do rio Tejo existiu um lazareto, na zona de Porto Brandão, onde eram colocados em quarentena os barcos e viajantes vindos de longe, já no início das viagens marítimas.

Provavelmente relacionado com esse local, existe no concelho de Almada uma localidade chamada Lazarim. Em Coimbra e Lisboa existiram também os hospitais de São Lázaro, destinados ao acolhimento e cuidado dos leprosos.

O nome tem a ver com Lázaro, um homem que terá morrido de lepra e Jesus ressuscitou.

Os santos protetores: As doenças, principalmente as contagiosas, eram consideradas castigos de Deus pelos pecados dos homens. Para apaziguar a ira divina as populações arranjavam intermediários (os santos) a quem recorriam para pedir proteção. Existem na Igreja 875 santos protetores, para 223 doenças diferentes. Cinquenta e três são “especializados” na proteção contra a peste; São Sebastião e São Roque são os mais conhecidos e venerados. São Sebastião porque, tendo sido martirizado com lanças que lhe deixaram o corpo coberto de feridas abertas, conseguiu sobreviver. Acreditava-se que quem se “apegasse” com ele também se salvaria. São Roque terá ajudado a tratar muitos contaminados pela peste. Ele próprio terá contraído a doença, como prova a chaga que mostra numa das pernas.

Acreditava-se também que a peste “recolhia” aos santos, aliviando as pessoas, porque, quando saíam nas procissões, as imagens enegreciam. De facto ficariam mais escuras, mas era por efeito das fogueiras e defumações com enxofre que se faziam por todo o lado para purificar os objetos, as casas, as ruas e mesmo as pessoas. Há tempos, numa reportagem da televisão passada no Alentejo, alguém lembrava que no tempo da pneumónica soltavam as vacas pela aldeia porque se acreditava que a doença “recolhia” a elas. Estariam agora a pensar fazer o mesmo.

Sobre a construção de capelas dedicadas a muitos destes santos protetores nas entradas das localidades, o José Teodoro acrescentou uma nota na publicação do dia 24 de março (São Roque e Lisboa) que ajuda a compreender essa prática. Em São Vicente houve várias capelas que, há uns cem ou duzentos anos, estariam mesmo no limite da Vila; algumas deixámo-las cair, talvez porque se pensasse que não íamos voltar a necessitar da proteção dos seus santos. Enganámo-nos…

M. L. Ferreira

Nota: O título deste artigo é também o de uma emissão do programa Encontros com o Património, da TSF, de onde retirei muita da informação que aqui deixei.

3 comentários:

José Teodoro Prata disse...

Quarentena vem de 40, os dias que os chineses, na China Antiga, descobriram ser o período em que o vírus da varíola estava ativo nas pústulas provocadas pela doença. Por isso estabeleceram que seria de 40 dias o tempo de quarentena para as pessoas que tivessem estado em contacto com doentes e que durante 40 dias poderiam manifestar sintomas da doença.
Mais tarde descobriu-se que outros vírus têm um período de incubação diferente (o do covid 19 é de 15 dias), mas a palavra quarentena ficou a ser usada para qualquer período de incubação de um vírus.
Não se tem a certeza de quando é que a palavra quarentena começou a ser usada. Mas certamente durante centenas e até milhares de anos fizeram-se quarentenas sem lhe chamar isso.
Encontrei várias explicações e a dos 40 dias que Jesus passou no deserto é apenas mais uma.
Os chineses, e mais tarde todos os asiáticos, "vacinavam-se" contra a varíola da seguinte forma: tiravam pústulas secas dos doentes, moíam-nas e depois fricionavam, com os dedos, esse pó nas mucosas do nariz; os vírus existentes nesse pó eram fracos e por isso não provocavam uma doença fatal no "vacinado", mas despertavam-lhe o sistema imunitário e em futura epidemia já tinham defesas contra a doença.

José Barroso disse...

É curiosa essa forma de vacina com o pó das pústulas. Na verdade, todas as vacinas obedecem ao princípio da inoculação do mesmo vírus fraco ou atenuado nos indivíduos sãos, que vão ativar o seu sistema imunitário por forma a que, perante nova epidemia, eles possam resistir porque criaram anticorpos.
Sobre a questão da quarentena ela vem, de facto, de quarenta; mas, com efeito, trata-se de um número simbólico, visto que as quarentenas são diferentes de caso para caso. Essa dos chineses não sabia; mas sabia que também vem dos quarenta dias que Jesus passou no deserto. No entanto, esse número nos textos bíblicos é, como outros, apenas simbólico.
Quarenta dias e quarenta noites foi também o tempo durante o qual choveu incessantemente, salvando-se apenas Noé, a sua família e os animais que ele tinha recolhido na arca. Segundo a Bíblia, portanto, a humanidade terá começado (com Adão e Eva) e recomeçado (com Noé). Mas a história de Noé, é descrita em textos não bíblicos, como referem os cientistas.
Outros números simbólicos da Bíblia são, por exemplo, o 7 (6 dias da Criação e no 7º. Deus descansou), o 3 (Santíssima Trindade; ou o 3º. dia da Ressureição de Jesus); e acho que há outros.
Ainda sobre quarentena, lembro-me que quando os primeiros astronautas foram à lua (em 1969 na Apolo XI, salvo erro), quando regressaram, ficaram vários dias em quarentena (não sei quantos), enquanto as suas famílias, em lágrimas, os viam através de um grande vidro, a caminhar para o isolamento; só mais tarde os puderam abraçar!
Bem, muitas destas coisas (refiro-me ao que concerne à Bíblia), têm que ser entendidas como simbólicas e não como factuais.
Abraços, hã!
JB.

M. L. Ferreira disse...

A propósito das defumações que, noutros tempos, se faziam para purificar o ar, é possível que as fogueiras de rosmaninho do São João e São Pedro, que no nosso tempo tinham quase só a função de convívio e divertimento, tivessem origem nessas práticas mais antigas. Há uns anos, no Cimo de Vila, havia um grupo de moradores que ainda teimavam em confraternizar à volta da fogueira. Agora até essa deixou de se fazer, penso...