Viajar pelos registos paroquiais da freguesia tornou-se um hábito/prazer quase diário, principalmente pela quantidade de informação que nos dão sobre as gentes que fizeram estas terras que nós pisamos agora como se sempre tivessem sido assim.
Por estes dias tenho andado
nos anos 20 do século XVII e uma das coisas que me despertou alguma curiosidade
nos registos de batismo, foi a referência a Manuel António Falcão, referido como
médico do partido, padrinho da criança batizada. No Google, num fórum de
genealogia encontrei o seguinte:
«Caros,
Meu heptavô Manuel Antonio Falcão (nascido na
Guarda) foi médico do partido de São Vicente da Beira. Seu filho, meu hexavô
José de Mena Falcão, conforme indicado no "Inventário dos Documentos
Relativos ao Brasil Existentes no Arquivo da Marinha de Ultramar",
desistiu da sua pretensão ao partido da Praça da Colónia do Sacramento em carta
datada de 21 de setembro de 1734.
Cordiais saudações
Marcello Borges»
Encontrei depois registos de batismo
de vários filhos deste médico e de Joana Barata, natural de São Vicente, com
quem se tinha casado em 1721. Na altura Manuel António Falcão já era viúvo de
Brites Gonçalves, natural de Tinalhas, de quem tivera outros filhos, entre os
quais o referido José de Mena Falcão.
Este registo do filho António,
nascido em 20 de fevereiro de 1722, dá-nos informação importante sobre este
médico. A mais interessante será talvez a de que era filho de Manuel Falcão,
Prior duma igreja do Fundão, e mais tarde Deão da Sé da Guarda. A mãe era Maria
Francisca, solteira, também natural do lugar do Fundão. E é interessante esta
informação porque vem confirmar que a paternidade dos padres, na altura, era frequente
e encarada e assumida com alguma naturalidade. Confirma também a ideia que
temos de que os filhos dos padres eram pessoas que adquiriam um grau de
instrução e estatuto social mais elevado do que o resto da população.
Sobre o papel destes médicos,
um outro participante no referido fórum diz o seguinte:
«…antigamente, os cuidados de
saúde eram assegurados pelos médicos municipais, também denominados
facultativos do partido.
Constituíam competências dos facultativos, nos
termos do disposto no artigo 125º do Código Administrativo, entre outras as
seguintes:
- tratar gratuitamente os pobres, expostos,
crianças desvalidas e abandonadas, presos;
- proceder à vacinação e revacinação sem
distinção de classes;
- inspeccionar as meretrizes nos dispensários.
Os médicos municipais (facultativos do
partido, ou simplesmente médicos do partido) eram providos em concurso público
e estavam dependentes, em termos administrativos, do Administrador do Concelho.
Esta designação dos médicos municipais
perdurou até à revisão do Código Administrativo (1936-1940).
O termo Partido, neste caso, assume um
significado muito próximo de público. Isto porque também existia medicina
privada e, tais médicos, eram designados por facultativos particulares.
Cumprimentos.
Júlio Sousa»
Pela descrição do trabalho
realizado por estes médicos, parece que, de certa forma, foram os antecessores
do atual SNS, pelo menos para os pobres. Os mais ricos recorriam aos médicos privados,
que recebiam os clientes nos seus próprios consultórios.
Para além destes médicos,
havia ainda os sangradores, que eram uma espécie de cirurgiões que não tinham
qualquer tipo de formação, mas acreditavam que tinham um dom que podiam passar
de pais para filhos. Em meados do século XIX, um dos sangradores identificados
em São Vicente chamava-se José Patrício Leitão. Era de Alijó mas casou por cá
em 1862. Mais tarde, o filho Luís Maria do Patrocínio herdou-lhe a profissão.
E quantos de nós não tivemos
por primeiro dentista o barbeiro da terra? Lembro-me bem do Senhor Zé Fiambre …
E os endireitas da Paradanta e do Casal da Serra que, como a água da Senhora da
Orada, faziam autênticos milagres nos corpos de quem os procurava?
M.L. Ferreira
3 comentários:
Várias vezes se vê referido na Literatura Portuguesa (talvez um pouco mais antiga) o facultativo como sendo o médico. Normalmente, a narrativa é simples e é fácil estabelecer a relação entre os dois termos. Mas a palavra "facultativo" caiu em tal desuso que, na linguagem corrente, quase só se usa o termo "médico". No entanto, o dicionário continua a tratá-los como sinónimos. Atendendo aos outros sentidos de "facultativo" (v.g., opcional), fico sem saber o que é que isso tem a ver com medicina! Adiante.
No que toca ao facultativo do partido (médico municipal, portanto, público), também não é fácil de entender porque hoje temos uma noção de "partido" que nada tem a ver com a noção de "público". Mas, enfim, estamos sempre a aprender.
Quanto aos filhos de padre, diz o Aquilino que são "danados para a vida". Ele próprio era filho de padre, portanto, não podia dizer mal de si mesmo. Percebe-se a tolerância quase aberta para com os filhos nascidos de padre e rapariga solteira. Fora os "afilhados" de padre nascidos das casadas! Há uma certa incongruência entre a rigidez dos costumes da época e, por outro lado, a aceitação destas relações. Isso mostra que as pessoas rústicas não são tão parvas como parecem. Compreendiam a "situação difícil" dos padres. Na cidade seriam menos tolerantes (conf. "O Crime do Padre Amaro", Eça).
No que respeita aos sangradores: se havia coisas horripilantes que se faziam em medicina, eram, certamente, os "sangramentos", já que neles não havia o mínimo de fundamento científico! Não conheço a história da medicina, mas acho estranho terem-se mantido tais práticas creio que até ao séc. XIX!
Os endireitas eram quem desenrascava as pessoas na parte ortopédica. Ainda hoje um médico não faz o que faz um endireita. Uma coisa é tirar um Raio-X e pôr umas talas e gesso no osso partido; outra, é colocar o osso no lugar. Felizmente, nunca precisei, mas há quem diga que um endireita pode fazer "milagres".
Quanto aos dentistas, passei por tudo. Há muito poucos anos que chegámos às novas tecnologias de reconstituição e de implantes. E digo há pouco anos porque, quando cheguei a Coimbra tinha um dentista muito conceituado (a especialidade era de Estomatologista), mas de quem não tenho boas recordações.
Chau, hã!
JB.
A Libânia e o Zé Barroso já disseram tudo. Estamos sempre a aprender!
Que pena que não se tenha aproveitado a quase normalidade com que foi encarada a paternidade dos clérigos até há relativamente pouco tempo, para se avançar para o fim do celibato dos padres! Tinha-se evitado muito sofrimento a muita gente e bastante descrédito à instituição Igreja.
Postar um comentário