Viriato Soromenho Marques, professor universitário, in Diário de Notícias
O filósofo Schopenhauer (1788-1860)
considerava a compaixão (Mitleid) como o sentimento moral por excelência, e por
isso uma das características fundamentais da nossa condição humana. Ser capaz
de sentir o sofrimento dos outros, sejam eles humanos ou animais, tinha, para o
pensador alemão, uma raiz ontológica fundamental. A dor dos outros, despertava
em nós uma espécie de compreensão intuitiva de que todos os seres partilham uma
vontade de viver original. Isso é válido para a mãe que corre risco de se
afogar para arrancar o seu filho das ondas, ou para o homem que se deixa imolar
pelo fogo na tentativa de salvar o seu cão. A comunhão do sofrimento rompe com
a ilusão do egoísmo, mesmo antes da nossa mortalidade o provar definitivamente.
Lembrei-me de Schopenhauer ao
perceber o crescente estado de morte ética do Ocidente. Bem sei que a política
e a ética estão muitas vezes em rota de colisão. E que o moralismo na política
internacional é usado, frequentemente, para esconder a face horrenda de
interesses inconfessáveis. Contudo, tudo tem limites. Refiro-me concretamente à
maneira inqualificável como uma série de países ocidentais reagiram a um
“relatório” de 6 páginas apresentado por Israel aos países doadores da UNRWA, a
Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina, que neste
momento é o único suporte de vida de dois milhões de sobreviventes nas ruínas
de Gaza, onde a violência das tropas de Telavive se transformou num horrendo
“novo normal”.
Israel acusou 12 funcionários da
UNRWA de terem participado nos ataques do Hamas de 7 de outubro. Mais tarde, o
número caiu para metade, dando razão ao chefe da Agência, Philippe Lazzarini,
que considerou inconsistente esse documento acusatório. Apesar de a Agência ter
13.000 funcionários, e de as acusações terem sido apontadas pelo Estado
agressor, que tem a correr contra si no ICJ, em Haia, uma séria acusação de
genocídio, a verdade é que, logo após a divulgação do texto acusatório, uma
constelação de países ocidentais decidiu - antes de qualquer investigação
independente se debruçar sobre a acusação - suspender o financiamento à UNRWA.
Escrevo aqui os nomes mais sonantes desses países que resolveram juntar-se aos
algozes do povo de Gaza: EUA, Austrália, Canadá, Reino Unido, Alemanha, França,
Itália, Países Baixos, Finlândia, Japão.
Portugal recusou integrar essa
tribo de indignidade. Escrevo-o com a alegria rara de saudar alguma medida
acertada do Governo. Pelo contrário, Lisboa aumentou o seu contributo, para
compensar a perda de financiamento provocada pelos desertores. António Guterres
nomeou uma Comissão de Investigação Independente, liderada por Catherine
Colonna, ex-ministra francesa dos Negócios Estrangeiros, suportada por 3
reputados institutos escandinavos. O relatório só estará finalizado em abril.
Isso significa que corremos o risco de muitos milhares de vidas serem perdidas,
vítimas da fome e da doença, se até lá a Agência continuar subfinanciada.
Atrevo-me a dizer que o que está em causa não são os 6 funcionários acusados,
mas a hipócrita desumanidade de Estados, saturados de uma retórica de valores e
direitos, convertidos agora à lógica de extermínio praticada por Israel.
Quem pune um povo inteiro, é quem não reconhece dignidade pessoal aos seus membros. Sem compaixão, a vida humana ficará cada vez mais descartável. Pressinto que estes são apenas os primeiros sinais de uma imensa e crescente barbárie. Intensa e sem santuários.
2 comentários:
É nestas alturas que nos sentimos bem em ser portugueses: apesar de pequeninos em tamanho, somos maiores em humanidade. A frustração é que atitudes destas são uma gota de água nas necessidades de tanta gente que está a morrer à míngua de tudo, em nome já nem se sabe de quê, para além da irracionalidade de gente (?) que nem quero nomear.
Como Viriato Soromenho Marques, também penso muitas vezes que estes são apenas os primeiros sinais de uma imensa e crescente barbárie. Intensa e sem santuários.
E nós a pensarmos que a única ameaça à vida na terra eram as alterações climáticas, de que também somos responsáveis, é verdade…
Não diria tanto. A verdade é que Israel sempre fez o que lhe apeteceu, sempre com apoio do Ocidente, em que nos incluímos. Começou logo por romper o acordo da sua fundação, que previa a coabitação entre palestinianos e judeus, no mesmo território, depois foi periodicamente destruindo tudo à sua passagem, cada vez que entrava nos territórios palestinianos e lá estava o Ocidente para pagar sempre a reconstrução, a saúde, a educação...
Agora não é muito diferente: Israel pode fazer mais ou menos o que quiser e para os palestinianos reservamos a caridade e mesmo essa, se não fosse o Guterres ser português... Quantas vezes é que o João Cravinho foi à Ucrânia desde o 7 de outubro? E ao Médico Oriente?
A verdade é que o Ocidente está habituado a usar e apoiar a violência extrema sobre os povos não europeus, desde que os marinheiros do Infante D. Henrique trouxeram os primeiros escravos africanos e os venderam em Lagos, há quase 600 anos.
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