A
minha Praça não é a dos tempos idos da História, atravessada por presidentes,
juízes, tabeliães, condes e viscondes; nem a dos vigários e outros vultos
negros a caminho da igreja; ou a da gente presa na enxovia, açoitada no
pelourinho ou levada para a forca; nem sequer a dos gabões que invadiram a
câmara, queimaram os papéis e acabaram com o concelho.
A
minha Praça é a das olaias floridas, mal chegava a primavera; a dos bancos todos
com gente; a dos sinos a tocar as Ave-marias, para a missa, por ser festa,
haver fogo ou ir alguém a enterrar.
É a
Praça das tendas, nos dias de feira, onde os olhos nos ficavam presos a tanta
coisa linda a que mal podíamos chegar.
É a
Praça das tabernas a toda a roda, que aos domingos, depois da missa, se enchiam
de homens na conversa e a beber em sociedade; que quando o vinho falava mais
alto e qualquer questão de lana-caprina dava azo a zaragatas, era ver as
mulheres aflitas e as crianças curiosas, todas a correr, não fosse algum
parente chegado andar metido na bulha.
É a
Praça das procissões, dos foguetes, da banda a tocar no coreto, das cantigas de
Natal, à roda da fogueira, à saída da Missa do Galo.
É a
Praça onde ríamos à gargalhada, sentados no chão ou em bancos levados de casa,
quando vinham as comédias; ou quando, nas noites de circo, de coração aos
pulos, até fechávamos os olhos quando os acrobatas davam voltas no trapézio ou tentavam
equilibrar-se em cima do arame.
É a
Praça dos ceguinhos que apareciam aos domingos e nos dias de feira, e cantavam
histórias fabulosas de amor e tragédia que alimentavam um imaginário sem
limites.
É a
Praça onde, nas vésperas da Senhora da Orada e das Festas de Verão, chegavam as
excursões vindas de Lisboa: uma camioneta grande, cheia de gente, e era uma
alegria se vinha algum parente próximo, que, quase de certeza, havia de nos
trazer uma prenda.
É a
Praça da escola: horas sem fim a dizer a tabuada, as serras, os rios e
caminhos-de-ferro, na ânsia do recreio. E o tempo era pouco para as rodas, o
paspelho, a linda falua, os jogos da pela, da corda, do anel, do espeta ou das
conchinhas; às vezes só a partilha de segredos íntimos, inocentes, com a melhor
amiga.
É a
Praça onde ia à fonte e ficava horas esquecida na brincadeira ou na conversa,
enquanto esperava a vez para encher o cântaro; e a minha mãe à espera da água,
às vezes já com o chinelo à mão…
É a
Praça onde, aos domingos à tarde, paravam carros com senhoras bem vestidas ao
lado de homens engravatado, que vinham à procura de raparigas sérias e
despachadas para criadas de servir; uma vez quiseram levar-me e tive de fugir
para casa. Passei o resto da tarde encolhida debaixo da cama, com medo que a
minha mãe desse comigo e me obrigasse a ir para a Covilhã.
É a Praça
onde esperava sempre, no dia certo, a carrinha da Gulbenkian; às vezes tinha
que me esconder para ler os livros que levava para casa; talvez por isso me
davam tanto prazer.
É a
Praça dos primeiros bailes de domingo, no balanço das músicas da moda, tocadas
num gira-discos manhoso. Foi num desses bailes que dancei o primeiro slow e
quis o primeiro beijo.
Passaram muitos anos, e o mundo deu tantas voltas, que a minha Praça já é quase só memórias…
ML
Ferreira