Enxidros era a antiga designação do espaço baldio da encosta da Gardunha acima da vila de São Vicente da Beira. A viver aqui ou lá longe, todos continuamos presos a este chão pelo cordão umbilical. Dos Enxidros é um espaço de divulgação das coisas da nossa freguesia. Visitem-nos e enviem a vossa colaboração para teodoroprata@gmail.com
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sábado, 20 de outubro de 2018
terça-feira, 21 de fevereiro de 2017
O tocador de realejo
Nasci e vivi no Casal da
Fraga até aos 20 anos. Só de lá saí para ir para a tropa. Era muito amigo do
teu tio João e do que toca reco-reco no rancho. Andávamos sempre juntos!
Nos anos 50 e 60, a malta da
Vila ia toda para o Casal, ao bailarico. Era na taberna do Marcelino e adivinha
quem era o tocador? Eu, a tocar realejo. Tudo a dançar, menos eu, que nem
cheguei a aprender. E jogávamos à malha, naquele chão de terra em frente à
taberna.
Depois fui para a tropa e
tirei a especialidade de condutor. Já sabia que me mandavam para o Ultramar. Em
Santa Margarida até esperavam que nós acabássemos a formação em Coimbra para
depois irmos para a guerra.
No dia em que abalei, subi o
caminho da ribeira e parei lá no alto. Virei-me e olhei para o Casal e depois
passei os olhos por todo o vale até à Senhora da Orada. Não sabia se voltava a
ver aquilo tudo.
A viagem para Angola demorou
12 dias. À chegada não nos deram de comer e fui mais um da Soalheira a um bar do
porto comer umas sandes e comprar tabaco. Depois fomos de comboio para um
quartel nos arredores de Luanda. Era tudo tão feio! Durante uns dias ainda
senti o corpo para cima e para baixo, como se continuasse no baloiço do mar.
Ao segundo dia, o capitão
avisou-nos: amanhã estão no mato, a qualquer
momento podem ter o inimigo à vossa frente! Não largávamos a arma e o cinto
com 100 balas, nem para comer! Aquilo pesava, mas depressa nos habituámos.
Nunca dei um tiro em combate,
só alguns num campo de tiro, para a experimentar. A certa altura começámos a
ouvir tiros e viemos embora, pois os inimigos estavam lá no alto a ver-nos. Mas
nunca nos atacaram. Talvez por causa do Alferes Coelho. Na altura não sabia
nada, ele era um como os outros, mas tinha de certeza um pequeno grupo de
amigos com quem conversava.
Muitos anos depois de
voltar, procurei o pessoal do meu batalhão na internet e encontrei logo o
Alferes Coelho. Eu só o conhecia por esse nome, mas fiquei a saber que se
chamava Mário Brochado Coelho e que tinha tido muitos problemas com a Pide, logo
na Universidade. Aliás, foi mandado para o Ultramar de castigo e lá a Pide
fazia um relatório dele todos os quinze dias. Ele nunca escreveu nenhum
aerograma, pois sabia que lhos abriam logo. Mandava cartas para Luanda, pelos
motoristas brancos que lá iam. Ele era advogado e defendeu muitos presos
políticos. Escreveu isto tudo num livro que já estava esgotado, mas eu andei,
andei e consegui comprá-lo. Quem mo trouxe do Porto foi um rapaz de Vila das
Aves que estuda cá informática.
Ele fala de mim no livro. A
certa altura escreve que está sentado na secretária a olhar pela janela para a palmeira.
E que está guardado por dois soldados, o Espanhol e o Russo. Ele chamava-me
Espanhol e ao outro chamavam Russo, não sei porquê. Escreveu que éramos um
batalhão muito internacional, até lá tínhamos tido um Americano (tinha a mania
de falar inglês), mas que já tinha sido mandado para outro lado.
O nosso quartel ficava a 120
quilómetros e a melhor coisa que fazíamos era ir a Luanda buscar cerveja. Na
floresta aquilo era perigoso. Conduzia uma viatura enorme com para-choques largo
de ferro carregado com sacos de areia. E a toda a volta a mesma coisa. Até
debaixo dos pés tinha sacos de areia, para não irmos pelos ares se
rebentássemos uma mina. Por duas vezes não morri por pouco, valeu-me Nossa
Senhora.
Depois estive bastante tempo
em Nova Lisboa, mas lá não havia guerra. Era tudo normal, uma cidade como aqui.
Curioso, nunca me lembro dos tempos que lá passei, só dos que vivi no mato.
José Teodoro Prata
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quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017
O frete da farmácia
Todos
os vicentinos do meu tempo e mais velhos quando lerem esta historieta vão
recordá-la certamente, fez parte da nossa geração.
A
vila naqueles tempos era uma pacata povoação rural. Havia meia dúzia de casas
ricas que dominavam, os homens eram contratados à jorna. Se por ventura o tempo
não estivesse capaz e não pudessem trabalhar não ganhavam nada e alguns ainda
gastavam o pouco pecúlio que havia emborcando copos de vinho nas tabernas. Se
por um acaso jornaleiro tivesse o azar de adoecer, não havia nada que o
protegesse durante a doença; não trabalhava, não ganhava.
Tempos
duros, difíceis; alguns pela manhã iam para a praça na esperança que alguém os
contratasse para o duro trabalho diário
A
vida quotidiana regia-se pelo badalar das horas e pelo toque do sino que
chamava os fiéis à igreja. Todos os dias antes de o sol nascer, o vigário celebrava
uma missa, o templo na penumbra; bruxuleando somente as velas do altar
sacrificial, a igreja acolhia muitas dezenas de jornaleiros, artesãos, criadas,
proprietários… assistiam à missa antes de começarem as tarefas diárias
Apesar
da pacatez rural, as pessoas viviam felizes, naquele tempo não havia nenhuma
habitação pobre ou rica que não estivesse habitada, as ruas fervilhavam de
gente, a natalidade superava os óbitos. Na Rua do Beco existiam: um artesão, senhor
Fernando latoeiro; uma barbearia, senhor José Craveiro; uma padaria, senhor José
Matias; uma farmácia, senhor Segurado; um café, senhora Eulália; mais tarde da
tia Tomásia; uma mercearia, senhor Joaquim “boas noites”, atualmente o
proprietário é o Rui Pedro; duas tabernas, a do senhor João “arrebotes” e a da
senhora Maria “viúva”.
Para
termos uma ideia da população residente, no ano de 1950, segundo os censos,
residiam na freguesia 4.185 habitantes. A partir desse ano, a curva inverteu-se
de tal maneira que, no último censo de 2011, os moradores em toda a freguesia
eram 1.259 almas. Em 61 anos a freguesia perdeu 2.926 habitantes.
Se
dividirmos este número por 61 anos, faleceram ou demandaram outras paragens 48
pessoas por ano. A manter-se esta tendência, daqui por vinte e seis anos não
mora ninguém na freguesia. “O diabo seja cego, surdo e mudo”.
Se
não existirem leis que estanquem esta hemorragia e invertam este estado de coisas,
o interior transformar-se-á num enorme deserto e teremos outra vez de volta os
senhores “condes”.
Deus
permita que nunca aconteça uma coisa dessas, para que as nossas aldeias e vilas
não desapareçam do mapa. Oxalá!
Não
vou dar continuidade a este pensamento, porque não era nem é o cerne do meu
escrito, foi somente uma bucha que meti no texto.
Assim,
a estrada nova que hoje faz parte do perímetro urbano da vila, naqueles tempos
ficava nos arrabaldes; existia somente uma casa junto à paragem das camionetas
e que há muitos anos pertence à família do senhor João Ventura.
Naquela
época a malta ia para a paragem esperar a camioneta da carreira da Auto
Transportes do Fundão. Lourenço era o motorista, a carreira chegava às cinco
horas da tarde à vila. Este autocarro todos os dias partia do Fundão, passava
cerca das sete horas da manhã na vila e terminava o seu percurso em Castelo
Branco. À tarde saía às quatro horas de Castelo Branco para terminar no Fundão,
por volta das seis horas.
À
farmácia chegavam pessoas de toda a freguesia, a fim de adquirirem os remédios
que o doutor Alves receitava, para a cura dos seus males, alguns medicamentos certamente
esgotavam ou havia necessidade de se repor o stock. Todos os dias a carreira
trazia uma encomenda.
Um
pouco antes das cinco horas, na paragem, começavam a aparecer cachopos na
esperança de poderem apanhar o frete e entregá-lo na farmácia. Os mais pequenos
raramente conseguiam tal intento, o que valia era o senhor Lourenço de vez em
quando dar a encomenda a quem entendia. Só assim alguns de nós conseguíamos entregá-la
na farmácia.
À
força, aos grandes bastava darem-nos um encontrão e era uma vez o frete da
farmácia.
Era
assim que chamávamos à encomenda e sabem o porquê de tanta sofreguidão para a
conseguir apanhar? O farmacêutico dava dez tostões a quem a entregasse.
J.M.S
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