Nasci e vivi no Casal da
Fraga até aos 20 anos. Só de lá saí para ir para a tropa. Era muito amigo do
teu tio João e do que toca reco-reco no rancho. Andávamos sempre juntos!
Nos anos 50 e 60, a malta da
Vila ia toda para o Casal, ao bailarico. Era na taberna do Marcelino e adivinha
quem era o tocador? Eu, a tocar realejo. Tudo a dançar, menos eu, que nem
cheguei a aprender. E jogávamos à malha, naquele chão de terra em frente à
taberna.
Depois fui para a tropa e
tirei a especialidade de condutor. Já sabia que me mandavam para o Ultramar. Em
Santa Margarida até esperavam que nós acabássemos a formação em Coimbra para
depois irmos para a guerra.
No dia em que abalei, subi o
caminho da ribeira e parei lá no alto. Virei-me e olhei para o Casal e depois
passei os olhos por todo o vale até à Senhora da Orada. Não sabia se voltava a
ver aquilo tudo.
A viagem para Angola demorou
12 dias. À chegada não nos deram de comer e fui mais um da Soalheira a um bar do
porto comer umas sandes e comprar tabaco. Depois fomos de comboio para um
quartel nos arredores de Luanda. Era tudo tão feio! Durante uns dias ainda
senti o corpo para cima e para baixo, como se continuasse no baloiço do mar.
Ao segundo dia, o capitão
avisou-nos: amanhã estão no mato, a qualquer
momento podem ter o inimigo à vossa frente! Não largávamos a arma e o cinto
com 100 balas, nem para comer! Aquilo pesava, mas depressa nos habituámos.
Nunca dei um tiro em combate,
só alguns num campo de tiro, para a experimentar. A certa altura começámos a
ouvir tiros e viemos embora, pois os inimigos estavam lá no alto a ver-nos. Mas
nunca nos atacaram. Talvez por causa do Alferes Coelho. Na altura não sabia
nada, ele era um como os outros, mas tinha de certeza um pequeno grupo de
amigos com quem conversava.
Muitos anos depois de
voltar, procurei o pessoal do meu batalhão na internet e encontrei logo o
Alferes Coelho. Eu só o conhecia por esse nome, mas fiquei a saber que se
chamava Mário Brochado Coelho e que tinha tido muitos problemas com a Pide, logo
na Universidade. Aliás, foi mandado para o Ultramar de castigo e lá a Pide
fazia um relatório dele todos os quinze dias. Ele nunca escreveu nenhum
aerograma, pois sabia que lhos abriam logo. Mandava cartas para Luanda, pelos
motoristas brancos que lá iam. Ele era advogado e defendeu muitos presos
políticos. Escreveu isto tudo num livro que já estava esgotado, mas eu andei,
andei e consegui comprá-lo. Quem mo trouxe do Porto foi um rapaz de Vila das
Aves que estuda cá informática.
Ele fala de mim no livro. A
certa altura escreve que está sentado na secretária a olhar pela janela para a palmeira.
E que está guardado por dois soldados, o Espanhol e o Russo. Ele chamava-me
Espanhol e ao outro chamavam Russo, não sei porquê. Escreveu que éramos um
batalhão muito internacional, até lá tínhamos tido um Americano (tinha a mania
de falar inglês), mas que já tinha sido mandado para outro lado.
O nosso quartel ficava a 120
quilómetros e a melhor coisa que fazíamos era ir a Luanda buscar cerveja. Na
floresta aquilo era perigoso. Conduzia uma viatura enorme com para-choques largo
de ferro carregado com sacos de areia. E a toda a volta a mesma coisa. Até
debaixo dos pés tinha sacos de areia, para não irmos pelos ares se
rebentássemos uma mina. Por duas vezes não morri por pouco, valeu-me Nossa
Senhora.
Depois estive bastante tempo
em Nova Lisboa, mas lá não havia guerra. Era tudo normal, uma cidade como aqui.
Curioso, nunca me lembro dos tempos que lá passei, só dos que vivi no mato.
José Teodoro Prata