Este discurso de um candidato a deputado às Cortes é ficção, mas o retrato nos sugere do Portugal de há quase duzentos anos, comparando-o também com outros países da Europa de então, não andará longe da realidade:
«Meus
amigos. Aconteceu no penúltimo Verão percorrer, na comitiva de Sua Mercê o
senhor visconde de Santarém, uma grande parte de França e Áustria, países de
hereges, hoje limpos desse escorbuto. E eu vos digo o que vi e que gostaria de
ver na nossa terra. De norte a sul há estradas, riscadas a cordel e a
teodolito, de brita formando concreto com a terra à força de cilindrada. Por
semelhantes estradas novas, a que dão o nome de reais, onde não empoça a água
das chuvas e se não perde tempo em desvios e rodeios, passam magníficas seges e
malas-postas. Nas aldeias há um mestre que ensina a ler gratuitamente quem
queira e um maire que administra a
comuna com vara firme e segura. A água vem encanada das nascentes e cai por uma
bica para tanques e lavadoiros. Fontes de chafurdo, não há. É falso que tenham
posto fogo às igrejas e assado os padres nos espetos. Conversei com um e outro
e, gordos e prósperos, louvam a Deus e aos paroquianos, e estes os respeitam e
estipendiam. Outrossim, vi belas casas a servir de paços do concelho, tribunais
e outros edifícios de interesse público, cheios de imponência e da melhor
ordem. Nada vos digo sobre os costumes, mas creio que neste capítulo nós
ganhamos aos Franceses. Não que amemos a Deus melhor do que eles, mas em
matéria de guardar o dia do Senhor, eles lá só não trabalham ao domingo e não
observam mais nenhum dia santo, desdenhosos dos preceitos da Santa Madre
Igreja. Trabalham como moiros, por isso estão ricos. É Verdade! Mas como o
trabalho não é recomendação perante o Senhor e, sim, a prece, eu quero que
continuem a guardar-se no Reino todos os dias santos que marca a folhinha, e vêm
a ser uns quarenta na roda do ano, permitindo deste modo que o bom povo ouça a
missa e a homilia, sempre que se comemora um grande santo ou fasto religioso.
Não vos falo da superioridade dos Portugueses sobre os Franceses em matéria de
outros preceitos do Decálogo. Se não fosse o abuso que os frades mendicantes
fazem das casas mal guardadas de homens, dir-vos-ia que a nossa terra é na
cristandade um dos baluartes do sexto mandamento.
«Mas,
fora do domínio espiritual, eu sou pelos caminhos limpos e rectos, onde possam
passar reses, carros de lavoira e seges, e onde vacas e burras não enterrem os
jarretes e partam o pernil. Sou pela água a cair duma bica em cada aldeia,
embora ouça dizer que é mais saborosa e fresca essa que repousa nos limos da
madre e entre merugens, e tirada por um cantarinho de mergulho. Pelo menos, a
dos canos é mais limpa. Não entram para a fonte cobras nem lagartos, nem moscas
que gostam no pino do Verão de se acolher à frescura que lhes oferece o
sobrecéu de pedra das fontes cobertas com uma laja ou abobadadas. Sou por um
mestre, já não digo em cada terra, que seria ciência supérflua e perigosa, porquanto
os livros se propagam o bem também propagam o mal, mas ao menos uma escola em
cada vila onde os senhores morgados, os fidalgos e mesmo aqueles que dispõem de
alguns teres, vão aprender a ler, escrever e a fazer as contas dos gastos e
receitas de suas casas. Gostaria mais de ver malas-postas para cá e para lá,
cruzando a nossa terra, carregando abades, fidalgos e senhoras, já que a boa
gente pobre do povo não pode nem deve usar de tais luxos. E, como Sua Senhoria
o doutor Cabeça Ancha, entendo que hereges, franchutes, constitucionais devem
ser banidos do Reino para as Pedras Negras e expropriados os seus bens em
benefício de quem os der à dica e desmascarar. E, sobretudo, porque hão-de as
alçadas reais vir cá tão longe fazer soldados para a guerra? Não, três vezes
não. Têm muita soma de gente, de braços a abanar, lá pelo Sul, a quem custará
menos, depois, a voltar para suas casas, porque estão perto. Deixem-nos, que
nas nossas igrejas rezemos pala paz do rei e a vitória das suas armas, e
trabalhemos dobrado pelo engrandecimento da Nação.
«Agora,
eu vos digo – e tenham-no em vista para que não sofram decepções – representar
o Braço do Povo da nossa comarca não é legislar. Isso virá em seguida à
assembleia magna da coroação e proposição do nosso dilecto monarca D. Manuel I,
em que vos representarei, se me derdes a honra de me designar. Para essa
conjectura é que elaboro a lista das aspirações da comarca que irei levar à
Secretaria do Reino a fim de que sejam ponderadas e atendidas, na medida em que
o nosso real amo assim o julgar e o favor que lhe merecer a minha instância,
que vos prometo aturada e infatigável. Viva a monarquia absoluta! Viva D.
Miguel, rei e arcanjo!»
Retirado do livro “Casa do Escorpião” de
Aquilino Ribeiro
M. L.
Ferreira