Dos livros que li do Aquilino Ribeiro, este será o maior. É um romance que conta a história de várias gerações de uma família aristocrática do Minho, com os seus altos e baixos, e muitos pecados, relacionando-a, em vários momentos, com a História de Portugal no período entre os finais da Dinastia Filipina e a guerra civil que opôs D. Pedro a D. Miguel.
O
excerto que deixo conta-nos o desespero de Luis de Azevedo, já a família ia na 6.ª
geração, que, sem herdeiros legítimos vivos, se encontra na iminência de o
morgadio cair nas mãos de um sobrinho por quem não morria de amores. Tenta, por
isso, recuperar um dos filhos que tivera com a governanta e enjeitara na roda.
Depois
de descobrir quem o tinha recolhido (um cirieiro de Braga), começa a rondar-lhe
a porta. Não foi fácil ganhar confiança, principalmente a do menino, quatro
anos ariscos, pouco dado a mimos de estranhos.
Um
dia apresentou-se na loja do cirieiro com um embrulho onde levava um carapucinho de lã de camelo, uma corneta de
barro de Barcelos e dois burrinhos também de loiça para lhe oferecer. Assim
que vê, vindo do interior da casa, agarra-o pelo bibe, mas a criança tenta
fugir-lhe e dá um trambolhão:
«- Deixe o menino, olhe que lhe pode arrancar o bracinho… - murmurou o cirieiro para Luís de Azevedo que lhe metia os bonitos à cara com a mão livre.
O
menino, ou porque a mão de Luís de Azevedo lhe pesasse, ou porque não lhe fosse
simpática aquela preensão, desdenhando da oferta, rompeu a fazer beicinho. Dali
a pouco estava num berreiro pegado que, sacudindo a senhora Felismina da
oficina, a projectou ali em pé-de-vento (….).
-
Então, meu filho, então, ninguém te faz mal! – exclamou ela estendendo-lhe os braços.
– Este senhor não é a côca. Olha, olha, este senhor traz-te aqui uns burrinhos…
O
pequeno continuava a berrar desalmadamente e o cirieiro disse para a mulher:
-
Tira-o lá para dentro.
-
Não. Não tire o menino lá para dentro. Deixe-o aqui…
Pronunciou
estas palavras com voz a tal ponto alterada que o cirieiro retorquiu:
-
Deixe-o aqui…Para quê, se não queda mal o perguntar!?
-
O menino é meu. É meu e quero levá-lo comigo.
(……)
-
O menino é seu?! Ah! ah!, deixa-me rir. O menino é nosso, meu e da minha
mulher. Trinta vezes nosso. Quem o salvou de morrer naquela manhã de geada,
porque afinal na roda poucos são os que escapam?! Quem Foi?! Quem o acalentou?!
Quem o vestiu?! Quem o traz medrado e limpo?! Olhe que até uma cabra comprámos
para lhe dar leite. Queria então tirar-nos o menino, hem? Não queria mais
nada?! Com que direito, seu homem?!
-
O menino é meu e vou-lhe dar os sinais com que foi depositado na roda. Trazia
ao pescoço uma bolsinha de seda azul com o nome: Telmo, escrito num pedaço de
pergaminho. Diga lá: não é assim que se chama?
-
Chama-se Telmo, chama, e que prova lá isso? Vossa Mercê está farto de mo ouvir
nomear…
-
Na mesma bolsinha trazia também um dobrão de oiro embrulhado num papel. O papel
dizia. Para as primeiras despesas. O mais
virá depois. É assim ou não é assim?
-
Não encontrámos lá nada. Assim Deus nos salve. O que lá trazia era um dente de
alho e cinco pedras de sal. Sim senhor, trazem-no todos os enjeitadinhos –
exclamou de lá a mulher, em voz traindo reticente surpresa, entremeada de notas
altas de indignação…
-
Os cueirinhos eram de cambraia com debrum azul…
-
Qual cambraia nem meio cambraia! Vinha embrulhado em estopa, uma toalha grossa
de estopa, que ainda para aí anda.
-
Então é porque na roda roubaram o exposto.
-
Roubaram quê, não roubaram nada! As freirinhas eram incapazes dessa má acção.
Ainda mais com aquela que era então a madre-rodeira, e ainda é, no Convento de
N.ª S.ª da Conceição! Toda a gente diz que em Braga não há mais santa
-
E quem me garante que a madre-rodeira estava no acto? Pode ser que fossem as
criadas que roubassem o exposto.
-
Roubar-nos queria agora o senhor, mas engana-se. Nem que viesse o alcaide-mor
com os quadrilheiros todos que há em Braga. Então não queria lá ver, uma pessoa
toma-se de amizade por uma criaturinha destas, apaparica-a, tudo é meu
santo-antoninho onde te porei, e às duas por três rompe um figurão e diz: Dê-me
o menino que é meu! Dou-lhe mas é uma grande cachaporra! Com que direito? Diga
lá?!
- Senhor Aniceto do Bento Lado e mais senhora, estou disposto a pagar-lhes, sem regatear as despesas que fizeram com o menino e a recompensá-los ainda, com a maior largueza, pela ternura e amor que lhes mereceu. Mas tenho de o levar, custe o que custar. O processo está em andamento no Juiz dos Órfãos. Vale mais darem-mo a bem…».
Este relato diz-nos bem como Aquilino Ribeiro conhecia o processo e todas as vicissitudes que envolviam a exposição de crianças naqueles tempos. A forma simples, por vezes subtil e com muito humor, como é hábito nele, engrandece e torna ainda mais verosímil a história.
M.L.
Ferreira
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