I
Naqueles invernos negros, de pouco ou
nenhum sol, os dias eram pequenos e as noites enormes! A partir do mês de
novembro, tinham lugar, em casa de Garrancho, os grandes serões de família. O
que sucedia à volta da colossal lareira, na cozinha, à telha vã!
— Boa casa, boa brasa! — dizia ele, em
voz forte e sonora, para a ti’ Maria, a mulher, com a espontaneidade e
confiança de quem está em sua casa!
Invariavelmente, estavam ao pé um do
outro! Unidos, como unha e carne! Caminhavam ligados na vida, havia décadas! Por
regra, no tempo do frio, achavam-se na cozinha àquela hora! A hora em que o dia
caía e a noite se aproximava.
À luz da candeia de azeite, ela, sempre
a remexer e a saraçar, lá andava nos seus afazeres domésticos.
Ao ouvi-lo, atirou-lhe, sem desviar os
olhos da faca com que migava, em pedaços grandes, o punhado de couves galegas
para a ceia:
— Não fales tão alto, homem, que aborreces
os vizinhos! O que é que há de dizer o nosso compadre e a mulher, que são,
mesmo aqui, parede com parede, connosco?!
— Homessa! Se um homem não está à
vontade para botar palavra entre as suas quatro paredes, então onde diabo vai
dar soltura àquilo que quer deitar do peito para fora?! Na taberna? Na adega? Ora,
adeus! Aí, muitas vezes, já não é ele a falar! É o briol a falar por ele! Olha
que a casa de um homem é como se fosse o seu castelo!
A mulher calou-se e aquiesceu. Entretanto,
Garrancho ia pondo, no lume, mais uma boa cavaca de lenha de castanho velho,
que tinha trazido da serra.
Era um homem alto de corpo! O mesmo de
estatura moral! Contratos onde entrasse, não necessitavam papel! A sua palavra
era lei! Tinha uma boa disposição duradoura e um coração imenso!
Às vezes, calhava vir à conversa, um caso
de amor juvenil, vivido pela filha, que ele bem amava. Razões do coração de custosa
compreensão para a esposa! Bem o viram, então, com o âmago lacerado e repartido,
sentado à roda do lume, de lágrimas a esbagoarem-se-lhe pela cara!
A diferença é que Pedro era pescador e
Garrancho lavrador! Se o primeiro, andava no mar a pescar e a molhar os pés na
água, o segundo andava a cavar, a semear e a engolir o pó da terra! Mas foi aquele
apóstolo, rude como Garrancho, rijo como uma rocha de granito, que Cristo
escolhera para nele edificar a sua Igreja!
O casamento com Garrancho não podia se
não ser uma bênção para a ti’ Maria! Ouvia-a, ouvia-a! Que ela — sabia-o ele muito
bem — era também moldada por uma grande alma, mas um poucochinho mais dura!
Porém, entre eles, a vida prosseguia! Não era preciso que as suas almas fossem gémeas.
Bastava que fossem, como a dele, suficientemente tolerantes. Escutava-a,
escutava-a! E a boca dele não se abria! A não ser para tentar compreender as
suas razões, procurando suavizar-lhe a rigidez na forma de ver o mundo, as
coisas e as pessoas.
No início de novembro, ainda se estava
quase a dois meses de terminar o outono, a que se seguiria o inverno. Contudo,
o frio e a chuva eram de molde a que não se sabia quando acabava um e começava
o outro! E quase com toda a certeza, que já tinha nevado na Estrela e, quiçá,
também na Gardunha. Se o tempo era mau, logo pelos Santos, era contar que, afora
o verão de S. Martinho, assim iria até lá para o fim de fevereiro! Com o sol de
março é que se começava já a sentir a terra a aquecer e a vida a querer
despertar do torpor da hibernação.
No entretanto, o fumo e o calor curtiam
as morcelas e os chouriços dispostos em fila, nas varas, por cima da lareira. Ao
mesmo tempo que secavam as castanhas, no caniço, ao lado do fumeiro. À época, as
castanhas eram já poucas. A maior parte dos castanheiros tinha sido substituída
por oliveiras, que davam o rico fio doirado do azeite, produto bem mais
rentável!
Garrancho e Maria contavam para cima de
sessenta. Sempre foram velhos! Ou assim parecia aos olhos dos netos, moços e
moças a transbordar mocidade!
Tinham tido uma vasta progenitura de dez
filhos! Agora restavam eles. Sós, naquela casa enorme! Carregada de memórias!
Por entre a crueldade dos males e doenças,
tinham vingado, até à idade madura, oito deles! Seis rapazes e duas raparigas. Uma
menina falecera em criança. Outra, pouco passaria dos 18 anos! E os que eram vivos,
todos estavam casados e apartados em suas casas. Salvo um deles e a mulher que morreram
pouco depois do casamento.
Foi esse infortúnio que levou o filho
destes, o neto Juvenal, ainda criança, a ir viver com os avós, ajudando-os nas
lides da terra. O que, ao menos, lhes suavizava um pouco o sofrimento naqueles
anos da velhice.
Era ele que, agora, mais enfrentava as
intempéries. Era ele que, no inverno, se demorava na serra, até mais tarde, a
trabalhar. À chuva e ao frio! A tratar das cabras. A ordenhá-las. A fechá-las
convenientemente, na corte, à noite. Para impedir algum ataque de animal feroz
que, conforme o porte — raposa ou gato toirão — podia, se não mais, pelo menos,
pôr em perigo as crias do rebanho!
Todas as noites, os velhos esperavam
que o neto chegasse da serra, de labutar. Bastas vezes encharcado. E a
chegar-se ao lume para enxugar a roupa!
Depois, os três, comiam, na paz do
Senhor, a ceia que a avó preparava com sábias mãos!
II
A cozinha situava-se em cima, na “casa
velha”, numa espécie de primeiro andar. Para se lá chegar, passava-se em baixo,
pelo corredor da “casa nova”, situada do lado direito, à entrada da porta
principal.
No tempo, havia um grande respeito e
confiança entre as pessoas da vila. Razão por que esta porta estava sempre
aberta! Aberta, é um modo de dizer. Porque, na realidade, estava presa no trinco,
mas em singelo. Sem a fechadura corrida. Bastava premir a peça de balanço com o
polegar e levantar a tranqueta interior, para entrar.
Tinha um pormenor que, porventura, a
distinguia de todas as outras portas. Atrás, fora pregada, por uma das pontas, uma
tira de metal flexível. Mas suficientemente forte para, na outra extremidade,
ter suspensa, balançando, uma campainha. De modo que, se alguém abria a porta,
ao mínimo movimento, a campainha tocava, ouvindo-se por toda a casa! E reconhecia-se
de imediato a voz da dona:
— Quem é que lá vem?!
— Eh! ti’ Maria, sou eu…! Hoje precisa
de sardinha ou chicharro?! — gritava lá de baixo a Mira Sardinheira.
— Lá vai, lá vai!...
Descia as escadas. A conversa
prosseguia entre as duas mulheres, sobre saber se precisava ou se lhe agradava
algum peixe para aquele dia!
Franqueavam-se, assim, as portas a quem
quisesse entrar. Todos estavam por bem! Desde logo, bem entendido, os vizinhos
e a família. Se os pais moravam ao cimo da rua, os filhos moravam, quase sempre,
por essa rua abaixo. Ou, mesmo, noutras ruas da vila! Em todo caso, perto uns
dos outros. Prontos a ajudar se houvesse qualquer aflição. As gerações
sucediam-se e a vila achava-se cheia de gente! Não se tinha dado, ainda, a
emigração em massa para França e para o litoral!
Era nessa conjuntura de vizinhança que,
o Lopo, a bem dizer, porta com porta com Garrancho, frequentava com
regularidade, a casa deste, havia longos anos! As mulheres até se chamavam mutuamente
por “comadres”. Embora não se soubesse bem a razão e o porquê! Talvez porque
entendiam que a amizade, o conhecimento e o traço de união entre as famílias, mereceria
mais que o simples tratamento por “vizinhas”!
Como local de sociedade e encontro, Lopo
e Garrancho privilegiavam, quase sempre, a adega, onde se encontrava o pipo do
vinho, a salgadeira com o presunto, os queijos a fazer a cura e a talha das
azeitonas. E, onde nunca faltava uma bolsa com pão dessa semana. Cozido no
forno da serra ou no da viúva do Mesquitela - homem de muitas posses - na rua
Velha. Estava guardado dentro de uma caixa de madeira, robusta, para evitar ser
roído pelos ratos.
Como os dois gostavam de estar sempre muito
próximo do espicho do barril do vinho, chegavam a ficar, às vezes, bastante entradotes.
Não, somente, pelo odor que lhes atravessava a pituitária, mas, sobretudo, pelo
gosto frutado e tanino do tintol que lhes passava nas gustativas! Davam-lhe
forte e bem! Quando Garrancho se preparava para encher o primeiro copo, o Lopo
punha-se logo a dizer, com receio de desperdícios e a deixar supor que estaria
pronto a beber o segundo, se lho dessem:
— Ó amigo, não enchas o copo demais, que
o vinho não faz cogulo! Olha que podes estragar a pomada! Sempre ouvi dizer que
o que se estraga, nem as galinhas o aproveitam! E antes dois copos que entornar…!
— alegava.
— Ora o damonho do homem! Sim, senhor!
Ai o alma de cântaro! Hã! — ria-se, sarcástico, Garrancho, não diretamente para
o Lopo, mas como se imaginasse ali presente uma terceira pessoa.
Depois, para ele:
— Onde aprendeste semelhante ladainha,
ó Lopo? Na taberna do Arrebotes ou na do Coxo?!
— Ná! Nem numa nem noutra. Esta já ma
contava o meu pai, que no céu esteja!
— Pois! Muito me contas, mas não são
notas de conto!
E a conversa prosseguia. Garrancho esforçava-se
por pôr os copos bem cheios de vinho tinto rematados por uma coroa de espuma
vermelha, em cima da mesa improvisada. Armada com uma tábua larga sobre o fundo
de um barril de cinquenta litros, vazio, colocado, na vertical, sobre o chão
térreo. Uma vez e outra vez! Mais um pedaço de presunto no prato! Mais um naco
de pão centeio ou de broa esnocado a esmo! Mais um bocado de queijo e uma mão
cheia de azeitonas! E mais uma rodada!
Assim corriam as suas pândegas e
comezainas, até o vizinho regressar a casa, do outro lado da mesma rua, duas portas
acima. E, ou era dos olhos de Garrancho, ou o Lopo já ia um pouco entornadote.
Depois da função, um tanto para o
tarde, era quando Garrancho ia ver da ti’ Maria que estava já deitada, apenas a
dormitar! Não serenava enquanto não sentia o homem a abrir as mantas e a
aconchegar-se ao pé dela.
Mas, antes, na despedida, os dois
homens, ainda tinham tido tempo de emborcar mais um copo de tinto, para a
sossega. Era quando o Lopo dizia para Garrancho, com a voz entrecortada pelo
efeito dormente da pinga:
— Ó amigo, na tua casa mando eu! E na
minha casa mandas tu! Hã?!...
Garrancho bem o compreendia! Com a
tirada, o Lopo parecia querer assenhorear-se de carta-branca para acesso ao
barril do vinho de Garrancho!
Nunca se soube se este aceitou tal proposta
de reciprocidade. Ou se cada um continuou a mandar na sua própria casa!
III
Tinha chegado, entretanto, a hora da
ceia! Juvenal estaria a chegar da serra, de acomodar o gado. As couves com
batatas, a morcela de cozer e os ovos, para os três, estavam quase cozinhados.
Muitas vezes, porém, sobretudo nos
sábados, aconteciam as magnas reuniões da família. Vinham à casa paterna alguns
dos filhos. Se fossem todos, seriam mais que as mães. É um modo de dizer! Quase
todos moravam na vila! Levavam as mulheres e a prole! Que compunha um bom
rancho de netos dos venerandos avós. Jovens ou ainda crianças. Num momento,
enchia-se a casa! De pessoas e de ruído! Repentinamente, a algazarra das
crianças elevava-se ao teto! Ouviam-se-lhes os estrepitosos gritos das
brincadeiras. Eram a riqueza da família! Mas, eh!, malta dum raio!
— Estejam quietos e calados meninos!
Não façam barulho que me dói a cabeça! — ralhava a avó Maria. Ao mesmo tempo
que produzia com a língua, por obra de artes orais, um estalido de impaciência.
Som difícil de imitar e impossível de transcrever! Tudo quedava por um momento.
Mas qual quê?! Eram como ferrabrases. E o rebuliço retornava pouco despois!
Com a chegada dos filhos, noras e
netos, colocavam-se na panela mais couves, batatas, morcelas de cozer e ovos. A
ti’ Maria se encarregaria de fazer os acrescentos. Ou colocava mesmo outra
panela ao lume com as quantidades que bastassem para satisfação de todas as
bocas presentes.
Couves e batas cozidas, grandes rodelas
de morcelas de cozer. Ovos cozidos. Tudo bem regado com azeite e vinagre. Pão
de centeio ou broa. Vinho para os homens e chá ou água para as mulheres e as
crianças! Fruta, azeitonas ou queijo. Tudo deste quilate! E com abundância! Alguém
que estivesse de fora a observar, concluiria: “Uma família em ordem! E que beja
ceia!”.
Às vezes, a refeição era comum! Ou
seja, em vez de cada um ter o seu prato individual, deitava-se tudo já devidamente
cortado numa descomunal caçoila de barro. Cada um, munido apenas de um garfo e
de uma fatia de pão, comia do recipiente o que entendia. A partilha era por
estimativa. E ninguém se empanturrava. As mães tinham o especial cuidado de se certificarem
que os filhos mais pequenos tinham comido o suficiente. Matava-se a fome. Havia
muita fartura de tudo o que a terra dava! Graças à Divina Providência!
Garrancho e Maria nunca sabiam quando
contavam com tanta gente! É certo que os filhos, as noras e os netos nem sempre
estavam todos. A não ser nas festas mais marcantes ou nas matações. Mas era
sempre bastante gente! E vinham sem aviso. Mas não era necessário qualquer
planeamento. Arranjava-se sempre alguma coisa para quem chegava!
Durante o repasto, Garrancho não raras
vezes tinha que se deslocar à adega, a encher mais um ou dois canjirões de
vinho! Ele sabia melhor que ninguém como manobrar o espicho do barril! Levantava-se
do banco, uma espécie de “trono”! Desaparecia nos degraus de madeira que davam
para o piso de baixo. Atravessava a “casa nova” e descia por uma escada
amovível até à cave do pipo. Os netos continuavam os seus divertimentos. Se, no
auge dos folguedos, algum se sentava, mesmo por momentos, no banco deixado
vago, a avó clamava:
— Sai daí, menino! Não quero ninguém aí
sentado! Já vos avisei muita vez! Ora com fêto! Hã! — dizia abespinhada.
O “trono” era um cilindro, serrado do
tronco de um velho sobreiro, assente numa das bases. Fora cortado para servir
de banco e colocado à roda da lareira. E ninguém se podia sentar nele, por
respeito. Estivesse o dono presente ou não! Era norma da casa! E as normas eram
para se cumprir!
Mas nesses grandes serões, à ceia,
muito se cavaqueava! Recordavam-se outras épocas. As épocas dos tempos difíceis
de antigamente!
— Isto agora é um luxo! Há a fartura
que não havia noutras ocasiões! Hoje é diferente! Está melhor! Temos para
comer! — pregava Garrancho, com a comunidade familiar a ouvir. — Nessas alturas,
comiam-se couves! Couves e apenas couves! Coziam-se com sal, temperavam-se com um
fio muito fino de azeite, se o houvesse, e uma gota de vinagre!
— Couves! Só couves! — rematava a avó
Maria, voltando-se para os netos, que entrementes tinham quedado, pasmados, com
o teor da conversa! — Couves, sem nada a acompanhar! Chamávamos-lhe as couves extremas!
Foi nos terríveis anos das guerras, pestes e fomes… Vocês não sabem nada da
vida! — concluiu, ciente da experiência que lhe conferia a idade. Relembrando-se
de um tempo mau, que coincidira com o da sua juventude, pôde-se-lhe, todavia, entrever,
na face enrugada pelos anos, uma réstia de nostalgia!...
Com o andar da noite, os ouvidos iam
perdendo a acuidade e a capacidade auditiva. Os mais novos adormeciam. Em
breve, o João-pestana os transportava para o imaginário mundo dos sonhos!
Já era tarde quando se encerrava a
assembleia de família. Quentes como estavam do calor da lareira, agasalhavam-se!
Em especial os mais pequenos. Para enfrentar o ar gélido da rua. Onde não havia
luz pública! E regressavam a suas casas por entre as sombras da escuridão!
Nota:
neste texto foi utilizada lexicologia de cariz local ou regional que não consta
da ortografia e dicionários oficiais.
JOSÉ BARROSO