Não se sabe ao certo a data da
criação nem o local onde terá funcionado a Casa da Roda (dos enjeitados, como
era designada na maior parte dos registos de batismo da época) de São Vicente
da Beira, mas é provável que tenha sido nesta casa, ao cimo da rua da Cruz.
Pela data inscrita na pedra por cima da janela (1785), ela já existiria na altura
em que Pina Manique, em 1783, ordenou o alargamento destas instituições a todas
as sedes de concelho. Por outro lado, situando-se na periferia da Vila,
facilitava o acesso às pessoas que vinham deixar as crianças, sempre pela
calada da noite, garantindo o máximo de privacidade e sigilo, como era
recomendado.
Quanto à data de sua criação, tanto
quanto percebi, os primeiros registos de batismo que referem crianças expostas
na roda da Vila datam de 1787. Foram dois meninos, o Francisco e o António,
batizados no dia 11 de fevereiro, que teriam dois dias de vida quando foram
deixados na roda. O primeiro foi dado a criar a Inês Leitoa, solteira, dos
Pereiros. O segundo foi entregue a Maria Gonçalves, mulher de Manuel Leitão, da
Partida.
Os expostos eram, quase sempre, crianças de
famílias muito pobres que não podiam sustentá-las e as abandonavam na esperança
de que alguém pudesse criá-las em melhores condições. Vinham quase sempre mal
agasalhadas e alimentadas, e muitas acabavam por morrer passado pouco tempo. Mas
havia também um número significativo de crianças abandonadas que eram o
resultado de relações ilícitas ou moral e socialmente condenáveis; o abandono
era a melhor forma de esconder o “pecado”.
Quando as crianças eram expostas,
raramente traziam com elas alguma coisa que pudesse identificá-las, mas, por
vezes, tinham a indicação do nome e a informação de já terem sido batizadas em
casa. Mesmo assim eram novamente batizadas “sob
conditione”, como é referido em alguns registos. Por vezes traziam também
algum objeto ou sinal que permitiria, no futuro, reconhecê-las. Isto acontecia
quando, da parte dos progenitores havia intenção de recuperar a criança mais
tarde. De acordo com os regulamentos das casas dos expostos, esta recuperação
estava sempre garantida, pois em qualquer momento os pais podiam requerer a
guarda dos filhos sem se sujeitarem a qualquer penalização ou julgamento.
Alberto, exposto em outubro de
1870, é um bom exemplo desta situação: filho de Joaquim Urbano das Neves e
Castro, que na altura desempenhava o cargo de Presidente da Comissão
Administrativa da Misericórdia de São Vicente da Beira, e de Maria da Piedade e
Castro, nasceu antes do casamento dos pais. Foi entregue na roda e dado a criar
a uma ama dos Pereiros. Não se sabe por quanto tempo, mas terá sido mais tarde
entregue aos progenitores, que, após o casamento, declararam ser filho deles.
Alberto Carlos das Neves e Castro
teve depois uma carreira de sucesso como militar. Foi um dos sanvicentinos que
participaram na Grande Guerra.
A rodeira era a pessoa responsável pelo
acolhimento das crianças expostas. Era normalmente uma mulher casada, que habitava
na casa, e estava disponível, de dia e de noite, para responder prontamente ao
toque da sineta e prestar os primeiros cuidados ao recém-chegado. Tinha depois
que informar as autoridades.Era ela também a responsável por tomar nota de
todas as informações relevantes sobre cada uma das crianças: dia e hora de
exposição, estado de saúde, idade aproximada, o que trazia vestido, se trazia
ou não qualquer objeto que a identificasse, data e local do batismo, a que ama
tinha sido entregue, etc. Para além disto tinha a obrigação de verificar
periodicamente as condições em que as crianças eram tratadas nas famílias que
as acolhiam.
Por vezes era a rodeira que ficava
responsável pela criação de alguma das crianças expostas. Foi o caso de Ana
Henriques que, de acordo com os registos de óbito da altura, alimentou várias
crianças ao longo dos anos em que foi responsável pela Casa da Roda de São
Vicente. Ludovina e Iria foram apenas duas delas:
Maria Castanheira terá sido também
uma das rodeiras da Vila, a seguir a Ana Henriques, e terá criado algumas das
crianças expostas. Foi o caso de Alfredo João, que morreu com cinco anos de
idade, de bexigas, uma epidemia que matou a maior parte das crianças e
adolescentes nascidos nesses anos.
As amas eram um elemento muito importante da casa da Roda. Deveriam ser
escolhidas entre as mulheres mais capacitadas do concelho, normalmente casadas,
com idoneidade comprovada, de boa saúde e que tivessem sido mães há pouco tempo.
Infelizmente nem sempre era possível observar todos estes requisitos, uma vez
que era difícil encontrar mulheres disponíveis e capazes para acolherem estes
filhos de ninguém. Muitas só se disponibilizavam pela necessidade que tinham de
obter algum rendimento, mas as condições para desempenharem o papel de ama eram
poucas, sobretudo pela miséria em que, por vezes, também viviam. A maior parte eram
casada, mas também havia viúvas e solteiras, recrutadas em quase todas as
localidades do concelho, principalmente na Partida, Paradanta, Casal da Serra e
São Vicente. Mas também havia amas dos Pereiros, Vale de Figueiras e Rochas de
Cima.
De acordo com as regras das Casas
da Roda, as crianças eram entregues a uma ama nos dias imediatos a terem sido
expostas, a qual ficaria responsável pelo seu sustento, cuidados de saúde e
alimentação, vestuário, etc. Por este encargo a ama recebia um salário que era
pago pela Comarca. Se tudo corresse bem, a criança ficaria à guarda dessa ama
até aos sete anos, altura em que seria entregue a uma família onde pudesse começar
a trabalhar ou aprender um ofício.
Mas a maior parte das vezes nem
tudo corria bem: as amas revelavam-se incapazes e tinham que ser substituídas;
outras vezes eram as próprias que desistiam de cuidar das crianças. Pior que
tudo isto, era o alto índice de mortalidade entre os expostos, em idades ainda
muito precoces. É verdade que a mortalidade infantil era muito elevada naquele
tempo, mesmo entre os filhos legítimos criados pelos pais biológicos, mas as
condições de grande debilidade que muitas crianças apresentavam quando eram
acolhidas, aliado ao desinvestimento afetivo durante os primeiros anos de vida,
potenciavam todos os outros fatores. Poucas chegavam à idade adulta. A prová-lo está o elevado número de expostos
nos registos de batismo, e tão poucos os que constam nos registos de casamento.
As Casas da Roda foram extintas
por volta de 1870; a de São Vicente terá funcionado até 1874, altura em que
ainda há registo de uma criança ali exposta. Chamava-se Policarpo. A partir
dessa data o fenómeno do abandono continuou, mas, de acordo com os registos de
batismo, as crianças eram deixadas à porta das casas, das azenhas, das capelas
(a Senhora da Orada é referida várias vezes) ou em qualquer local onde houvesse
alguém que as acolhesse.
Maria Libânia Ferrreira