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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Os Sanvincentinos na Grande Guerra

 João Prata

João Prata nasceu em outubro de 1893. Foi criado por Maria Castanheira, moradora na Casa da Roda de São Vicente e a quem eram confiadas algumas das crianças expostas neste concelho. Na altura, Maria Castanheira era casada com António Prata, de quem João terá herdado o apelido.

Assentou praça no dia 9 de julho de 1913 e foi incorporado no Regimento de Artilharia de Montanha, em Castelo Branco, a 13 de janeiro de 1914. Segundo a sua folha de matrícula, na altura em que assentou praça era analfabeto, não tinha profissão certa e foi vacinado.

Pronto da instrução em 4 de julho, passou ao quadro permanente em virtude de sorteio. Foi destacado para a província de Angola e seguiu viagem no dia 11 de setembro, como soldado condutor, integrando a 1.ª Expedição enviada para aquela província ultramarina. Desembarcou em Moçâmedes, a 1 de outubro de 1914, e terá seguido depois a pé, para sul, para a fronteira com a Namíbia.

Participou na ação do dia 18 de dezembro de 1914, contra os alemães, fazendo parte das tropas que ocuparam o vau de Calueque. Pertencia ao Destacamento que reconquistou e ocupou o Cuamato, de 12 a 27 de agosto, tendo tomado parte também na ação do Ancongo, em 13 de agosto de 1915, e no combate da Inhoca, em 15 do mesmo mês, dia em que o Destacamento entrou no Forte de Cuamato. Em 20 de agosto, avançou com o mesmo Destacamento sobre Cunhamano, a fim de restabelecerem as comunicações que haviam sido cortadas pelo inimigo. No dia 24 participou também no combate da Chana da Mula.

Embarcou de regresso à Metrópole, no dia 16 de novembro de 1915, e chegou a Lisboa a 5 de dezembro.

Licenciado em 15 de março de 1916, voltou a apresentar-se no dia 27 de abril. Foi novamente licenciado em 21 de agosto, por exceder o quadro da bateria expedicionária. Apresentou-se de novo em 18 de fevereiro, por ter sido convocado para serviço extraordinário, e foi destacado para a província de Moçambique, para onde embarcou no dia 2 de julho de 1917, para reforçar o efetivo da 3.ª Expedição que se encontrava muito debilitado devido às baixas e às doenças de que muitos militares sofriam. Regressou à Metrópole em 10 de maio de 1918. Licenciado em 30 de julho, domiciliou-se na freguesia de São Vicente da Beira.

Passou ao 2.º Escalão do Exército e ao 7.º Grupo de Baterias de Reserva, em 31 de dezembro de 1923, e ao Depósito de Licenciados do R. A. 4, em 1 de outubro de 1926. A 9 de setembro de 1930, passou à Companhia de Trem Hipomóvel e à reserva ativa em 31 de dezembro de 1934.

Condecorações:

  • Medalha comemorativa das Operações no sul da província de Angola 1914-1915;
  • Medalha comemorativa das Operações em Moçambique 1914-1918;
  • Medalha da Vitória.

Família:

Após o regresso de Moçambique, João Prata casou com Maria Catarina na Conservatória do Registo Civil de São Vicente da Beira, a 16 de fevereiro de 1920. O casal terá ido residir para a Torre, Louriçal do Campo, de onde a esposa era natural. Tiveram 4 filhos: Conceição Prata, Maria Prata, José Prata e João Prata.



Residência de Maria Castanheira e António Prata, que funcionava como casa da roda, por Maria Castanheira ser a rodeira, nos últimos anos do século XIX.
A casa situa-se no alto da Rua da Cruz, à esquerda, fazendo esquina com a Corredoura.

Casa da Torre, residência familiar de João Prata.

João Prata toda a vida trabalhou na agricultura, como jornaleiro, e também teve uma taberna que se situava por baixo da casa onde morava. É provável que também tivesse sido moleiro, que era a ocupação da família de Maria Catarina.

Ainda há quem se lembre de ouvir falar dele e contam que era um homem simples, trabalhador e de fácil relacionamento com toda a gente.

Teve uma vida muito modesta e nunca terá conseguido que lhe fosse atribuída a pensão a que tinha direito pela sua participação na Guerra, apesar de, em 1915, durante as manobras para se deslocarem para Cunhama, ter tido um acidente que o deixou a coxear para o resto da vida. Ainda apelou para que lhe fosse atribuída uma compensação por essa deficiência e a incapacidade lhe fosse considerado para efeitos de reforma, mas a pretensão foi-lhe negada. O parecer final, assinado pelo Major Fabião, datado de 27 de Junho de 1927, considerava que a deficiência era resultado da queda de um carro de bois, ocorrida uns anos após o seu regresso de África, e não do acidente em Angola.

João Prata faleceu no dia quinze de dezembro de 1943. Tinha 50 anos de idade.

(Pesquisa feita com a colaboração de alguns habitantes da Torre)

Maria Libânia Ferreira

Publicado no livro "Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra"


segunda-feira, 13 de maio de 2019

O Juiz dos Órfãos


Aqui no blogue já se fez referência, algumas vezes, ao Juiz dos Órfãos, figura que existiu, durante vários séculos, em muitas vilas e lugares, incluindo São Vicente da Beira. Deixo algumas achegas que penso serem interessantes:
A proteção dos bens e interesses dos órfãos foi, desde há muito tempo, uma preocupação do Estado. Até ao início do século XVI, na maior parte das localidades, essa proteção era assegurada pelo Juiz Ordinário, mas havia comarcas onde já existiam juízes cujas competências eram, exclusivamente, os assuntos relativos aos órfãos menores de idade.
Em 1521, as Ordenações Manuelinas decretaram a criação da figura do Juiz dos Órfãos em todas as vilas e lugares que, com os respetivos termos, tivessem mais de 400 vizinhos; nas localidades mais pequenas, essas funções eram asseguradas pelo Juiz Ordinário. Mais tarde, as Ordenações Filipinas confirmaram estas determinações.
O Juiz de Órfãos não tinha obrigatoriamente que ter formação jurídica, ou pelo menos não tinha que ter terminado essa formação. A sua escolha era fundamentada sobretudo na integridade moral e no reconhecimento social. Era, por isso, um cargo de grande prestígio e responsabilidade para quem o ocupava.
A função destes juízes era assegurar a salvaguarda dos bens dos menores órfãos de pai, uma vez que à mulher viúva não era reconhecido o papel de administradora do património da família.
Assim, quando o chefe da família falecia, se deixasse filhos solteiros menores de 25 anos, competia ao Juiz de Órfãos ordenar a elaboração de um inventário de todos os bens, e o depósito de dinheiro ou objetos de valor numa espécie de cofre do qual seria depositária uma pessoa de reconhecida idoneidade. Nesse cofre estavam também dois livros, um de receitas e outro de despesas, onde eram registados todos os movimentos de entrada e saída de dinheiro relacionado com proventos ou despesas do menor. O controlo destes movimentos era feito regularmente pelo Juiz.
Era a ele que competia também autorizar o arrendamento, venda ou aforo de terras de que o menor fosse proprietário. Por último, competia-lhe ainda autorizar o casamento do órfão, caso este não tivesse completado 25 anos de idade. 

Registo de casamento de Joaquim Lourenço e Theresa Antunes. Por ser órfã de pai e menor de idade (tinha 24 anos), a noiva necessitou da autorização do Juiz dos Órfãos.

Para além dos órfãos menores, o Juiz dos Órfãos era também responsável pelos expostos quando estes tivessem completado os sete anos de idade, altura em que deixavam de estar sob a tutela das instituições responsáveis pela sua criação (autarquias, hospitais, misericórdias ou hospícios).
No caso dos expostos, que para o efeito eram considerados também órfãos, como não possuíam bens de família para administrar, o papel do Juiz resumia-se quase exclusivamente à sua inserção no mercado de trabalho: arranjar quem quisesse empregá-los ou acolhê-los, e cuidar que lhes fossem pagos os respetivos salários. Esta responsabilidade terminava quando o indivíduo em causa atingisse a maioridade, que, paradoxalmente, era aos vinte anos, cinco anos mais cedo que os restantes cidadãos.
Nos Registos Paroquiais que consultei aparece várias vezes a referência ao Juiz dos Órfão, mas nunca, claramente, o nome dele. É possível que, em determinada altura tivesse sido José Ribeiro Robles, como sugeriu o José Teodoro. Foi escrivão da Câmara de São Vicente da Beira, uma pessoa notável e prestigiada, que é referido muitas vezes como padrinho ou testemunha nos registos de batismo de crianças expostas.

M. L. Ferreira

Nota: Para saber mais sobre este assunto, basta ir ao Google e procurar em: Livro 1 Tit. 88: Dos Juízes dos Órfãos. É interessante perceber a preocupação que, há tanto anos, já havia com os órfãos, ao ponto de se legislar, com grande minúcia, sobre a salvaguarda dos seus direitos e interesses patrimoniais.

terça-feira, 7 de maio de 2019

A Casa da Roda de São Vicente da Beira


Não se sabe ao certo a data da criação nem o local onde terá funcionado a Casa da Roda (dos enjeitados, como era designada na maior parte dos registos de batismo da época) de São Vicente da Beira, mas é provável que tenha sido nesta casa, ao cimo da rua da Cruz. Pela data inscrita na pedra por cima da janela (1785), ela já existiria na altura em que Pina Manique, em 1783, ordenou o alargamento destas instituições a todas as sedes de concelho. Por outro lado, situando-se na periferia da Vila, facilitava o acesso às pessoas que vinham deixar as crianças, sempre pela calada da noite, garantindo o máximo de privacidade e sigilo, como era recomendado. 
Quanto à data de sua criação, tanto quanto percebi, os primeiros registos de batismo que referem crianças expostas na roda da Vila datam de 1787. Foram dois meninos, o Francisco e o António, batizados no dia 11 de fevereiro, que teriam dois dias de vida quando foram deixados na roda. O primeiro foi dado a criar a Inês Leitoa, solteira, dos Pereiros. O segundo foi entregue a Maria Gonçalves, mulher de Manuel Leitão, da Partida.  


Os expostos eram, quase sempre, crianças de famílias muito pobres que não podiam sustentá-las e as abandonavam na esperança de que alguém pudesse criá-las em melhores condições. Vinham quase sempre mal agasalhadas e alimentadas, e muitas acabavam por morrer passado pouco tempo. Mas havia também um número significativo de crianças abandonadas que eram o resultado de relações ilícitas ou moral e socialmente condenáveis; o abandono era a melhor forma de esconder o “pecado”.
Quando as crianças eram expostas, raramente traziam com elas alguma coisa que pudesse identificá-las, mas, por vezes, tinham a indicação do nome e a informação de já terem sido batizadas em casa. Mesmo assim eram novamente batizadas “sob conditione”, como é referido em alguns registos. Por vezes traziam também algum objeto ou sinal que permitiria, no futuro, reconhecê-las. Isto acontecia quando, da parte dos progenitores havia intenção de recuperar a criança mais tarde. De acordo com os regulamentos das casas dos expostos, esta recuperação estava sempre garantida, pois em qualquer momento os pais podiam requerer a guarda dos filhos sem se sujeitarem a qualquer penalização ou julgamento.
Alberto, exposto em outubro de 1870, é um bom exemplo desta situação: filho de Joaquim Urbano das Neves e Castro, que na altura desempenhava o cargo de Presidente da Comissão Administrativa da Misericórdia de São Vicente da Beira, e de Maria da Piedade e Castro, nasceu antes do casamento dos pais. Foi entregue na roda e dado a criar a uma ama dos Pereiros. Não se sabe por quanto tempo, mas terá sido mais tarde entregue aos progenitores, que, após o casamento, declararam ser filho deles.


Alberto Carlos das Neves e Castro teve depois uma carreira de sucesso como militar. Foi um dos sanvicentinos que participaram na Grande Guerra.

A rodeira era a pessoa responsável pelo acolhimento das crianças expostas. Era normalmente uma mulher casada, que habitava na casa, e estava disponível, de dia e de noite, para responder prontamente ao toque da sineta e prestar os primeiros cuidados ao recém-chegado. Tinha depois que informar as autoridades.Era ela também a responsável por tomar nota de todas as informações relevantes sobre cada uma das crianças: dia e hora de exposição, estado de saúde, idade aproximada, o que trazia vestido, se trazia ou não qualquer objeto que a identificasse, data e local do batismo, a que ama tinha sido entregue, etc. Para além disto tinha a obrigação de verificar periodicamente as condições em que as crianças eram tratadas nas famílias que as acolhiam.
Por vezes era a rodeira que ficava responsável pela criação de alguma das crianças expostas. Foi o caso de Ana Henriques que, de acordo com os registos de óbito da altura, alimentou várias crianças ao longo dos anos em que foi responsável pela Casa da Roda de São Vicente. Ludovina e Iria foram apenas duas delas:

 
Maria Castanheira terá sido também uma das rodeiras da Vila, a seguir a Ana Henriques, e terá criado algumas das crianças expostas. Foi o caso de Alfredo João, que morreu com cinco anos de idade, de bexigas, uma epidemia que matou a maior parte das crianças e adolescentes nascidos nesses anos.

  
As amas eram um elemento muito importante da casa da Roda. Deveriam ser escolhidas entre as mulheres mais capacitadas do concelho, normalmente casadas, com idoneidade comprovada, de boa saúde e que tivessem sido mães há pouco tempo. Infelizmente nem sempre era possível observar todos estes requisitos, uma vez que era difícil encontrar mulheres disponíveis e capazes para acolherem estes filhos de ninguém. Muitas só se disponibilizavam pela necessidade que tinham de obter algum rendimento, mas as condições para desempenharem o papel de ama eram poucas, sobretudo pela miséria em que, por vezes, também viviam. A maior parte eram casada, mas também havia viúvas e solteiras, recrutadas em quase todas as localidades do concelho, principalmente na Partida, Paradanta, Casal da Serra e São Vicente. Mas também havia amas dos Pereiros, Vale de Figueiras e Rochas de Cima.
De acordo com as regras das Casas da Roda, as crianças eram entregues a uma ama nos dias imediatos a terem sido expostas, a qual ficaria responsável pelo seu sustento, cuidados de saúde e alimentação, vestuário, etc. Por este encargo a ama recebia um salário que era pago pela Comarca. Se tudo corresse bem, a criança ficaria à guarda dessa ama até aos sete anos, altura em que seria entregue a uma família onde pudesse começar a trabalhar ou aprender um ofício.
Mas a maior parte das vezes nem tudo corria bem: as amas revelavam-se incapazes e tinham que ser substituídas; outras vezes eram as próprias que desistiam de cuidar das crianças. Pior que tudo isto, era o alto índice de mortalidade entre os expostos, em idades ainda muito precoces. É verdade que a mortalidade infantil era muito elevada naquele tempo, mesmo entre os filhos legítimos criados pelos pais biológicos, mas as condições de grande debilidade que muitas crianças apresentavam quando eram acolhidas, aliado ao desinvestimento afetivo durante os primeiros anos de vida, potenciavam todos os outros fatores. Poucas chegavam à idade adulta.  A prová-lo está o elevado número de expostos nos registos de batismo, e tão poucos os que constam nos registos de casamento.
As Casas da Roda foram extintas por volta de 1870; a de São Vicente terá funcionado até 1874, altura em que ainda há registo de uma criança ali exposta. Chamava-se Policarpo. A partir dessa data o fenómeno do abandono continuou, mas, de acordo com os registos de batismo, as crianças eram deixadas à porta das casas, das azenhas, das capelas (a Senhora da Orada é referida várias vezes) ou em qualquer local onde houvesse alguém que as acolhesse.  
Maria Libânia Ferrreira