Uma ocasião, era eu ainda rapaz novo, andaram por cá
uns frades que diz que eram das Missões. Diziam missa de manhã e à noite, e durante
o dia confessavam e faziam benzeduras.
A igreja estava sempre à cunha com gente que vinha de toda
a freguesia para se confessar e assistir às missas. Os sermões eram compridos e
de meter medo. Às vezes até parecia que o púlpito caía com os clamores dos
frades a enumerar as fraquezas e a falta de fé do povo. Os homens, uns bêbados
e unhas de fome; só taberna, mas pagar as bulas e as côngruas, deixa estar. As
mulheres, umas pecadoras, que agora até já tinham arranjado maneira de evitar os
filhos; rapazes e raparigas, uma miséria; só maus pensamentos. Nem os inocentes
escapavam, por via do pai e da mãe que os geravam. Por causa disso, se não se
emendassem, não tardaria que Deus fizesse desabar o mundo e ia tudo direitinho
para o fogo do inferno.
O povo andava todo atremozado e não saía da igreja,
ajoelhado no confessionário ou a adorar a cruz, ao cimo da igreja. Tinham-na
mandado fazer de propósito no Casal da Fraga, ao Miguel Leitão que a ofereceu
como agradecimento por ter escapado duma doença tão grande, que até já lhe
tinham feito a mortalha. Levaram-na depois do Casal para a Vila, em procissão.
Quem a carregou foi o ti Jaquim Guilherme, homem considerado por todos. Pelo
caminho, o povo todo cantava, em ato de expiação dos pecados:
Que viva, que viva,
A Cruz sacrossanta,
Que viva, que viva,
E quem a levou.
Por causa disto, um cachopito chegou a casa e disse
assim para o pai:
- Eh pai, hoje é que o ti Jaquim Guilherme levou vivas!
- Atão porquê?
- Vossemecê não viu que era ele que levava a cruz na
procissão?!
E o pai benzeu-se, da inocência do filho.
E os dias foram passando. Um dia, estava a igreja à
cunha (homens e rapazes no coro, mulheres cá por baixo e a cachopada pequena à
roda do altar), e os ralhos do sermão até pareciam trovões:
- Homens de pouca fé! Pecadores! Se não vos emendais vem
aí o fim do mundo, não tarda!
Nisto, começa-se a ouvir um estrondo tão grande de
dentro da torre, que até parecia que a igreja vinha abaixo.
Os homens atropelaram-se pelas escadas do coro, e os
que vinham atrás pisavam os capotes aos da frente; era vê-los a rebolar todos,
escadas abaixo. As mulheres gritavam e fugiam pela porta que tinham mais à mão.
Até a ti Ana Ferreira, que passava a vida de candeias às avessas com o homem, gritava:
- Ai Federico, acode-me! Meu rico homem, não me deixes
morrer sem ti!
Outra chorava:
- Ai o meu rico xale, que só tenho este! Alguém mo
apanhe!
Os cachopitos, no coro, desataram também a correr, aos
gritos, cada um para seu lado e alguns já todos mijadinhos pelas pernas abaixo.
O frade que fazia o sermão continuava a berrar com
quantos pulmões tinha. O senhor vigário, de caldeira na mão, aspergia os fiéis
com água benta.
Apanhados cá fora, cada um correu para a sua casa. O
pior foi para os que eram de longe; e logo com uma noite de breu como aquela...
Ao outro dia foram espreitar o que é que se tinha
passado nas escadas da torre, mas não se viu nada. No altar-mor é que não se podia estar com o mau cheiro.
Nos anos a seguir, as mulheres tiveram tantos meninos
que foi uma coisa por demais. Até eu, que já namorava, um dia cheguei a casa
fartinho de trabalhar, e mandaram-me a dormir para a loja da burra. Que voltasse
só de manhã. Ao outro dia disseram-me que tínhamos lá mais uma menina. Uma
menina? É mas é mais uma boca! E tudo por culpa dos frades…
M. L. Ferreira