Andávamos de noite e éramos sempre uns poucos, que enquanto uns trepavam
às árvores, os outros ficavam à espreita, a ver se lá vinha a Guarda ou o dono.
Uma vez, já rente ao sol-posto,
era eu, o Chico Vaca, o Albertino da Lusitana, o Jorge Gato e o Justino
Escavaterra. Estávamos todos sentados na Fonte Velha à espera das cachopas que
vinham à fonte, e às duas por três diz o Justino assim:
- O meu avô é que lá tem umas laranjas boas! São doces que nem mel! Mas
onde elas estão ninguém lá chega, que a laranjeira está mesmo defronte da
janela da cozinha.
Ninguém lá chega? Ai não que não chega! Olha para quem ele o estava a
dizer! Fizemos logo sinal uns aos outros e assim que ele se levantou para se ir
embora, levantámo-nos logo todos também e abalámos cada um para seu lado, como
se fôssemos para casa. Não tardou muito, estávamos outra vez todos juntos, na
Estrada Nova, ao pé da quelha. Todos menos ele, que não deu conta de nada.
Saltámos a parede do Pomar, que era onde havia a tal laranjeira, espreitámos
pela janela e vimos que a candeia ainda estava acesa e o ti Tomás e a mulher
ainda levantados, mas cada um com a cabeça já a cambalear para seu lado. Só o
gato é que parece que deu razão de qualquer coisa e pôs-se coca, mas como não
viu nada, tornou a enroscar-se aos pés do dono.
Saltámos para cima da laranjeira e toca a colher e a encher a camisa por
dentro, que a tínhamos atado com a correia das calças. Só deixámos as que não
víamos ou aquelas aonde não chegávamos.
Quando foi ao outro dia, ajuntámo-nos outra vez na Fonte Velha e chega
lá o Justino, que até parecia que nos havia de comer:
- Seus cabrões, que fosteis às
laranjas do meu avô e não deixasteis nem
uma!
- Nós? Atão não nos vistes
abalar também aquando tu? Alguém lá terá ido a elas, mas nós não fomos…
Ele calou-se e lá ficou na dele; nunca teve a certeza de quem tinham
sido os ladrões.
Doutra vez, era no tempo das ameixas. Havia uma ameixoeira numa horta
para lá do Marzelo, carregadinha delas; grandes e tão encarnadinhas que metiam
cobiça. Até faziam água na boca, só de olhar pra elas. Um dia lá vamos nós,
pela calada da noite, prontos para uma barrigada.
Assim que lá chegámos o Chico Vaca saltou logo para cima dum ramo tão
carregadinho que até amochava; mas teve tanto azar que o ramo esnocou-se e ele
foi parar ao leirão de baixo, mesmo por cima dum poço que lá havia. A noite
estava como breu, e só o ouvíamos a berrar.
- Tirem-me daqui! Tirem-me daqui, que eu morro!
Fomos à horta e arrancámos uma empa dum tomateiro, e foi assim que o conseguimos
tirar de lá; ele agarrado ao pau e nós a puxar pra cima. Vinha todo esfarrapado
e a escorrer tanto sangue que até parecia um Cristo. E a sorte dele foi que o
poço estava tapado com um basculho de silvas e o ramo tinha-o amparado, senão
tinha morrido, que o poço era fundo como o diabo.
Jurou pra nunca mais, mas foi sol de pouca dura, que não tardou muito
tempo e já andávamos todos aos gachos naquilo da dona Judite. Era cada um, dos
brancos, mais doces que o mel! Mas dessa vez íamos sendo apanhados pela Guarda.
O que nos valeu foi que demos conta da patrulha pelas passadas das botas e
tivemos tempo de nos agachar atrás duma parede. Passaram mesmo à nossa frente,
com a arma às costas, mas assim que deixámos de os ouvir, ó gachos duma figa! Foi
até não podermos mais!
E estava aqui até à noite só a contar partes destas. Naquele tempo não
havia a fartura da fruta que há agora, que até a deixam apodrecer, caída ao
tronco da árvore. Se queríamos comer alguma coisa que nos consolasse, tínhamos
que ir a ela, aonde a havia, naquilo dos ricos. Raras vezes éramos descobertos,
mas mesmo que fôssemos, tínhamos as pernas leves e era difícil sermos
apanhados.
Belos tempos! Quem me dera lá neles!...
M. L.
Ferreira