A Mãe, por Miguel Torga
Introdução
Para celebrar todas as Mães, lembrei-me deste poema do Miguel Torga, um dos
grandes poetas deste país. Foi também contista, romancista, dramaturgo e
ensaísta. É outro daqueles escritores com quem mais me identifico, já que era
um homem ligado à terra, o que diz (ou devia dizer) muito a quantos nascem no
interior de Portugal, mais perto da montanha, das plantas e dos ribeiros! O
escritor era médico em Coimbra, onde estudou e onde ainda tive o privilégio de
o conhecer em vida.
Sempre fez questão de celebrar a sua origem rústica de transmontano. Prova
disso é que tendo, pelo batismo, o nome de Adolfo Rocha, veio a adotar,
enquanto homem de letras, o nome de Miguel Torga. E, como se sabe, torga, é a
raiz da urze com que se fazia o carvão. O que diz bem da intenção de não ser
apenas português por ter nascido em Portugal, como ter no solo pátrio mergulhadas
as suas raízes. E fê-lo, de maneira emblemática, através de uma planta (dita)
pouco nobre. O que também revela a sua humildade e vontade de continuar, simbolicamente,
unido às montanhas da sua aldeia, onde ia de tempos a tempos, matar saudades e
até caçar.
Homem, portanto, de grande apego à ruralidade que se deixava entrever, diz quem
com ele privou, nos seus modos e até – Oh! Natureza! – na sua figura telúrica
de camponês, somos depois confrontados por uma alma, uma sensibilidade e uma inteligência
que surpreende, atestadas pela sua poesia e escritos em geral.
Fiquem, então, com este extraordinário poema à Mãe, no momento em que ela
lhe faltou para sempre.
José Barroso
Mãe
Mãe:
Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?
Como as estátuas, que são gente nossa
Cansada de palavras e ternura,
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
Que não tem coração dentro do peito.
Chamo aos gritos por ti — não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio.
Mãe:
Abre os olhos ao menos, diz que sim!
Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!
Miguel Torga, in 'Diário IV'