Chamava-se António Fernandes e nasceu
no lugar de Pescanseco, Pampilhosa. Sabe-se lá porquê, veio ainda novo para São
Vicente e por cá se casou com Maria de São João, no ano de 1884. Tinha vinte e
oito anos e era soldado na reserva. Por causa da terra onde nasceu, começaram a
chamara-lhe Pescão Seco.
Conta o Chico Insa que ouvia dizer ao
avô e ao pai que era um homem muito instruído, que sabia ler e escrever muito
bem e falava de coisas que davam que pensar. Havia uma que dizia mais ou menos
assim: «Hão de vir tempos em que os caminhos estarão pintados de preto e no ar hão
de voar coisas que deixam riscos no céu. Quando isso acontecer, virão
cataclismos tão grandes que será o fim do mundo».
Naquele tempo, já lá vão cento e
muitos anos, mal se imaginavam as voltas que o mundo havia de dar e as
transformações no modo de vida das pessoas: carroças e carros de bois
substituídos por automóveis e aviões; gente a viver em gaiolas (parece que em
muitas cidades do Oriente é quase literal) e a alimentar-se com comida que
cresce à custa de fertilizantes, hormonas e pesticidas; mezinhas substituídas
por antibióticos que já se deixam enganar pelas bactérias; armas capazes de
arrasar cidades inteiras; e tantas outras coisas que, a pouco e pouco, estão a
tornar cada vez mais frágil a qualidade de vida das pessoas e do ambiente.
Ainda assim, ainda não há muito tempo,
os mais desatentos dizíamos que os avisos sobre as ameaças da vida na Terra
tinham origem em teorias alarmistas e pouco fundamentadas e continuávamos a
olhar para o lado como se não tivéssemos nada a ver com o assunto e estas
questões não tivessem a ver com cada um de nós.
Agora os cientistas já dizem que chegámos
a um tempo em que, se não se tomarem medidas extremas dentro de um período
muito curto de tempo, chegaremos a uma situação em que não haverá retorno em
termos da sustentabilidade do Planeta.
Conscientes desta realidade têm-se
conseguido compromissos por parte de um grande número de países, para a
implementação de medidas que evitem males maiores, nomeadamente pela redução de
gases poluentes. Mas logo agora que se estavam a dar passos importantes nestas
questões, os americanos voltam a surpreender-nos com a escolha que fizeram para
seu presidente: um homem que tem revelado uma atitude de negação e desprezo por
grande parte das conquistas civilizacionais que fomos alcançando, incluindo a
consciência ecológica e a preocupação pelas questões ambientais.
Se tivermos em conta a origem das
primeiras felicitações que lhe chegaram do estrangeiro (Marine le Pen, Putin,
Erdogan…), se calhar temos razões sérias para estarmos apreensivos quanto ao
futuro; se não do nosso, pelo menos do dos nossos filhos.
Oxalá não se cumpra cedo demais a
profecia do Pescão Seco!
Notas:
António Fernandes e
Maria de São João moraram na Vila e aí lhes nasceram os dois primeiros filhos
que morreram anjinhos. Viveram depois no Casal da Fraga, numa casa que seria
mais ou menos no local onde eu moro agora e onde terão tido uma filha que se
chamava Bernardina; mudaram-se a seguir para a Senhora da Orada, mais
precisamente para o Vale Caria, onde lhes nasceu pelo menos mais um filho, Anselmo,
que andou na Grande Guerra, mas que também deve ter morrido ainda novo.
A casa do Vale Caria, onde
viveram, era muito humilde, e dela já só existem vestígios das paredes traseira
e laterais e o sítio onde acendiam o lume.
Apesar de ser um homem
com uma instrução acima da média para aqueles tempos, António Fernandes terá
sido toda a vida jornaleiro. Dos poucos descendentes que teve, ainda vivem alguns
no Casal da Serra. Continuam a ser conhecidos pelo nome de Pescão.
M.
L. Ferreira