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domingo, 4 de dezembro de 2016

As profecias do Pescão Seco

Chamava-se António Fernandes e nasceu no lugar de Pescanseco, Pampilhosa. Sabe-se lá porquê, veio ainda novo para São Vicente e por cá se casou com Maria de São João, no ano de 1884. Tinha vinte e oito anos e era soldado na reserva. Por causa da terra onde nasceu, começaram a chamara-lhe Pescão Seco.
Conta o Chico Insa que ouvia dizer ao avô e ao pai que era um homem muito instruído, que sabia ler e escrever muito bem e falava de coisas que davam que pensar. Havia uma que dizia mais ou menos assim: «Hão de vir tempos em que os caminhos estarão pintados de preto e no ar hão de voar coisas que deixam riscos no céu. Quando isso acontecer, virão cataclismos tão grandes que será o fim do mundo».
Naquele tempo, já lá vão cento e muitos anos, mal se imaginavam as voltas que o mundo havia de dar e as transformações no modo de vida das pessoas: carroças e carros de bois substituídos por automóveis e aviões; gente a viver em gaiolas (parece que em muitas cidades do Oriente é quase literal) e a alimentar-se com comida que cresce à custa de fertilizantes, hormonas e pesticidas; mezinhas substituídas por antibióticos que já se deixam enganar pelas bactérias; armas capazes de arrasar cidades inteiras; e tantas outras coisas que, a pouco e pouco, estão a tornar cada vez mais frágil a qualidade de vida das pessoas e do ambiente.
Ainda assim, ainda não há muito tempo, os mais desatentos dizíamos que os avisos sobre as ameaças da vida na Terra tinham origem em teorias alarmistas e pouco fundamentadas e continuávamos a olhar para o lado como se não tivéssemos nada a ver com o assunto e estas questões não tivessem a ver com cada um de nós.
Agora os cientistas já dizem que chegámos a um tempo em que, se não se tomarem medidas extremas dentro de um período muito curto de tempo, chegaremos a uma situação em que não haverá retorno em termos da sustentabilidade do Planeta.
Conscientes desta realidade têm-se conseguido compromissos por parte de um grande número de países, para a implementação de medidas que evitem males maiores, nomeadamente pela redução de gases poluentes. Mas logo agora que se estavam a dar passos importantes nestas questões, os americanos voltam a surpreender-nos com a escolha que fizeram para seu presidente: um homem que tem revelado uma atitude de negação e desprezo por grande parte das conquistas civilizacionais que fomos alcançando, incluindo a consciência ecológica e a preocupação pelas questões ambientais.
Se tivermos em conta a origem das primeiras felicitações que lhe chegaram do estrangeiro (Marine le Pen, Putin, Erdogan…), se calhar temos razões sérias para estarmos apreensivos quanto ao futuro; se não do nosso, pelo menos do dos nossos filhos.
Oxalá não se cumpra cedo demais a profecia do Pescão Seco!

Notas:
António Fernandes e Maria de São João moraram na Vila e aí lhes nasceram os dois primeiros filhos que morreram anjinhos. Viveram depois no Casal da Fraga, numa casa que seria mais ou menos no local onde eu moro agora e onde terão tido uma filha que se chamava Bernardina; mudaram-se a seguir para a Senhora da Orada, mais precisamente para o Vale Caria, onde lhes nasceu pelo menos mais um filho, Anselmo, que andou na Grande Guerra, mas que também deve ter morrido ainda novo.


A casa do Vale Caria, onde viveram, era muito humilde, e dela já só existem vestígios das paredes traseira e laterais e o sítio onde acendiam o lume.
Apesar de ser um homem com uma instrução acima da média para aqueles tempos, António Fernandes terá sido toda a vida jornaleiro. Dos poucos descendentes que teve, ainda vivem alguns no Casal da Serra. Continuam a ser conhecidos pelo nome de Pescão.

M. L. Ferreira