A condição da mulher no
Estado Novo
A Revolução do 25 de Abril foi o acontecimento mais
importante da História contemporânea do nosso país, pelas mudanças que
proporcionou em quase todos os setores da sociedade, permitindo uma evolução extraordinária
nas vidas de todos nós. Mas, se as alterações foram enormes para a maioria dos
portugueses, foram ainda mais significativas para as mulheres, descriminadas, quase
sempre, pela lei, pelos costumes e preconceitos de toda a ordem.
A Constituição da República Portuguesa de 1933, embora em
vários aspetos mostrasse algum retrocesso relativamente à de 1910 e ignorasse as
mudanças que aconteciam já em muitos países, continuava a pretender consagrar a
igualdade de todos os cidadãos perante a lei. No artigo 5º escrevia-se: «A igualdade perante a lei envolve … a
negação de qualquer privilégio de nascimento, nobreza, título nobiliárquico,
sexo, ou condição social, salvas, quanto à mulher, as diferenças resultantes da
sua natureza e do bem da família…». Esta redação era contraditória com o
conceito de igualdade que queria fazer crer e, na prática, significava que,
aliados aos efeitos da ditadura que negava muitos direitos a todos os cidadãos,
as mulheres sofriam ainda as descriminações decorrentes da sua condição
feminina, ficando reduzidas, quase exclusivamente, ao papel de donas de casa,
mães e companheiras, e vendo diminuídos muitos dos seus direitos de cidadania,
de liberdade, de independência e até o direito à sexualidade.
Além de não poderem votar (esse direito era exclusivo dos
homens maiores de 21 anos que soubessem ler e escrever, dos chefes de família e
de algumas mulheres em condições muito bem definidas – menos de 2% do total da
população), às mulheres era ainda dificultado, ou mesmo vedado, o exercício de
cargos políticos, na magistratura ou na diplomacia.
É exemplar o caso de Carolina Beatriz Ângelo que, em 1911, aproveitando-se
de uma lacuna na legislação que se referia aos chefes de família, mas não especificava
o sexo, invocou a sua situação de viúva, e por isso chefe de família, para
exigir o direito ao voto. Foi a primeira mulher a votar em Portugal. A partir
de então esse direito sofreu alguns avanços e recuos, mas foi autorizado quase
sempre em situações muito específicas, dependendo do nível de escolaridade ou estatuto
social e económico. Só depois do 25 de Abril, votar se tornou um direito igual
para todos os homens e mulheres maiores de idade. Em termos profissionais, salvo raras
exceçõe, eram poucas as mulheres que, fora dos trabalhos agrícolas, domésticos
ou fabris, tinham uma atividade profissional remunerada. As que eram casadas tinham
de ter autorização dos maridos para exercerem determinadas profissões e, a
qualquer momento, podiam ver cessar o contrato de trabalho a mando deles. Acrescia ainda o facto de o salário que lhes
era pago ser significativamente mais baixo que o dos homens, mesmo que o
trabalho fosse igual. Para além de injusto, isto deixava-as numa situação de
grande fragilidade e dependência relativamente aos maridos, com as inevitáveis consequências
daí decorrentes.
O papel da mulher no seio da família era muito importante,
mas, como diz o ditado «Cá em casa manda ela e nela mando eu», também de
submissão ao marido. O homem era o chefe e a ele estavam cometidos muitos dos
direitos sociais e políticos da família; competia-lhe também o seu sustento. À mulher
estava reservado o governo da casa e a educação dos filhos.
Não era permitido às mulheres ter conta bancária nem
ausentar-se do país sem o consentimento do marido, mesmo que tivessem
possibilidades financeiras para o fazer. Não seria o caso de muitas, mas essa
situação mantinha-se mesmo que o casal estivesse separado de pessoas e bens.
As enfermeiras e hospedeiras de bordo não podiam casar-se e
as professoras tinham que pedir autorização superior para o fazer. No caso de o
homem não ser considerado pessoa de bem ou não tivesse um ordenado igual ou mais
elevado que o da mulher, a autorização era negada.
O divórcio não era permitido e os filhos nascidos fora do
casamento eram considerados ilegítimos, mesmo que assumidos pelo pai biológico.
Esta situação era altamente penalizadora para as mulheres, mas também para as
crianças que viam reduzidos muitos dos seus direitos, para além da
descriminação social a que estavam sujeitas.
A moral sexual vigente até
quase ao final do Estado Novo era dominada pela visão altamente castradora da
Igreja Católica que defendia a sexualidade apenas dentro do casamento. Desse
modo, a finalidade das relações sexuais era a procriação, sendo pouco
valorizadas as questões da afetividade e, sobretudo, do prazer.
Mas a rigidez desta visão, baseada em crenças morais e
religiosas muito redutoras, aplicava-se sobretudo às mulheres, já que aos
homens eram toleradas as relações antes do casamento e extraconjugais. Em
alguns meios esta prática estava de tal modo enraizada e era tão bem aceite que
fazia parte do estatuto social de certos homens. No caso das mulheres, se não
fossem virgens na altura do casamento, era motivo para a anulação do matrimónio.
O homicídio, em caso de adultério, era tolerado socialmente e a pena aplicada
pelos tribunais tinha muitas atenuantes; a maior parte das vezes não ia para
além do afastamento temporário da residência habitual, continuando a usufruir das
regalias de que beneficiava anteriormente.
O aparecimento e progressiva despenalização legal e social dos
métodos contracetivos, assim como as consultas de planeamento familiar e saúde
materno infantil contribuíram significativamente para ajudar a vencer os medos,
a vergonha e muitas ideias preconceituosas relativamente ao sexo. Permitiram
também, a homens e mulheres, viverem a sua sexualidade de forma mais
equilibrada, igualitária, e gratificante.
Passados mais de quarenta anos após o 25 de Abril, refletir
sobre estas questões, mesmo que de forma breve, pode fazer lembrar feminismos
já ultrapassados, mas a realidade mostra que não é bem assim. Apesar das
alterações legislativas e das mudanças em termos dos costumes e mentalidades, as
mulheres continuam a ser o elo mais fraco duma sociedade de características ainda
marcadamente masculinas: recebem salários mais baixos em muitas profissões; são
quase sempre as mais atingidas pelo desemprego; continuam a ser descriminadas
pela maternidade; sofrem ainda de chantagem e assédio nos locais de trabalho; têm
mais dificuldade em aceder a lugares de chefia, quer nas empresas quer na
política (a lei da paridade estabelece que 33% da composição das listas para a
Assembleia da República, Autarquias e Parlamento Europeu têm que ser mulheres,
mas na prática não serve de muito porque, para além do número ser altamente
discriminatório, as mulheres são muitas vezes colocadas em lugares dificilmente
elegíveis).
Os números da violência doméstica e dos homicídios
praticados no seio da família dizem-nos que a lógica que regulou a vida das
nossas avós e das nossas mães não está tão distante como possamos imaginar. Por
isso vale a pena ter memória e a consciência de que os direitos adquiridos,
neste e noutros setores, não são conquistas sem retorno.
Ceifeira, de Almada Negreiros, atualmente no CCC de Castelo Branco.
M. L. Ferreira