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terça-feira, 26 de março de 2024

25 de ABRIL - 50 Anos: Mulheres da Liberdade

 

Mural na Avenida de Berna, em frente da Gulbenkian, onde a figura de Salgueiro Maia se destaca, mas as mulheres aparecem também com muita força (da Internet)  

Muitas estiveram na primeira linha da resistência contra a ditadura do Estado Novo, opressor de um povo inteiro, mas sobretudo das mulheres. Nos campos, nas fábricas, nas prisões, nas universidades, ou na clandestinidade, as suas vidas ficaram imortalizadas nas nossas memórias. Outras, sendo pilares fundamentais da vida dos maridos, ficaram na sombra da sua luta heróica, e delas não reza a História.

Há tempos estive num almoço em Alcains. O pretexto era a comemoração de mais um aniversário de Ramalho Eanes, mas a presença do jornalista Fernando Alves, dos maiores do nosso tempo, e de Carlos Beato, um dos milicianos que acompanharam Salgueiro Maia até Lisboa na madrugada do dia 25 de Abril de 1974, foram a motivação principal. Nada como ouvir falar da História (várias histórias) pelas palavras de quem a fez.

Na mesa estava também Ju Beato, a mulher de Carlos Beato e foi bonito ouvi-lo falar do papel determinante que o apoio dela também teve naquele SIM, sem qualquer dúvida, quando foi abordado por Salgueiro Maia.

Foram tempos difíceis para ela: muito jovem e casada há pouco tempo; vinda do Alentejo para Santarém, cidade que lhe era completamente estranha; inquieta por saber o marido envolvido numa missão daquela grandeza e sempre à espera que fosse a PIDE, cada vez que a campainha tocava. Mas manteve firme o seu apoio à causa dele, que era também a sua (partilhavam o gosto pelas cantigas do Zeca Afonso, do Sérgio Godinho, do José Mário Branco e outros cantores censurados pelo regime e lhes alimentavam a esperança). Naquela noite de tanta ansiedade, quase desejou que a senha não chegasse a ser dada, mas quando começou a ouvir na rádio a Grândola Vila Morena, mesmo de coração apertado, não teve dúvidas.

E lembrei-me de Lourdes Pedro, “Esteio da Vida de Edmundo Pedro”, como consta do título da biografia escrita por Amílcar Faustino. Uma mulher com uma coragem e força fora do comum no apoio ao marido, perseguido, preso e torturado várias vezes; na ajuda a muitas outras pessoas perseguidas pelo regime, que precisavam de ajuda; a quem a PIDE revirou do avesso, várias vezes, a casa e a vida, mas soube sempre levantar-se com enorme determinação; que enfrentou o sistema, reivindicando melhores condições para os presos político; que quase passou fome e, num dia de aniversário, o que lhe valeu foram os cem escudos que a mãe lhe deu para comprar uma prenda, mas foi com eles que pagou as viagens até Caxias para visitar o marido na prisão; que se viu privada de ver o crescimento da filha como qualquer mãe ou pai desejam, por ter que trabalhar pelos dois ou por andar escondida a fugir à prisão, acusada de ser cúmplice nas atividades e tentativas de fuga do marido.

São apenas dois exemplos de mulheres de coragem, determinantes na luta dos companheiros pelo fim de uma ditadura de tantos anos. É também a elas, e a tantas outras heroínas desconhecidas, que devemos a Democracia, a Liberdade e a Igualdade, ainda imperfeitas e sempre em construção, em que vivemos há quase 50 anos.  

M. L. Ferreira

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Santa Águeda (aqui tão perto...)

A lenda:
Águeda era italiana. Nasceu por volta do ano 230 na Catânia; pertencia a uma família nobre e rica. As suas riquezas, aliadas à sua beleza, chamaram a atenção do Cônsul Quinciano que a pediu em casamento. Mas, desde cedo ela tinha sentido um chamamento de Deus, consagrando a sua virgindade ao Senhor, seu amado esposo.
Neste tempo, o imperador Décio levantou uma forte perseguição ao cristianismo e os que não renunciassem a Cristo eram punidos com muitos sofrimentos, até à morte.
Com a recusa em casar-se, Águeda foi denunciada como cristã e submetida a um humilhante processo condenatório. Quando foi interrogada e disse que pertencia a uma nobre família e era serva de Jesus Cristo, o governador entregou-a a uma mulher de má fama com o objetivo de a corromper. Foi tudo em vão, porque a mulher foi vencida pela fé e pureza de Águeda.
Foi então submetida a torturas: despida, foi arrastada sobre cacos de vasos e brasas, e depois arrancaram-lhe os seios. Quanto a esta barbaridade, ela falou para o juiz: «Não te envergonhas de mutilar na mulher o que a tua mãe te ofereceu para te alimentar?». Uma tradição diz que naquela noite lhe apareceu o apóstolo S. Pedro que a curou daquela mutilação. As torturas continuaram num martírio que a levou até à morte, por volta do ano de 251.
No primeiro aniversário da sua morte, deu-se uma erupção do vulcão Etna. Cristãos e pagãos, temerosos, tomaram o véu que cobria o túmulo de Águeda e atiraram-no contra as lavas que imediatamente pararam, salvando a cidade de Catânia.

O culto:
Santa Águeda é invocada para proteger contra os vulcões e incêndios. É também invocada para proteger dos males da mama, por causa do seu martírio e cura milagrosa. É uma das santas mais veneradas em Itália; só em Roma tem 12 igrejas dedicadas a ela.

As cantigas:
Ó senhora Santa Águeda,
Quem vos varreu a capela
Foi o ranchinho da Póvoa
Com um raminho de macela.

Ó Senhora Santa Águeda,
Vosso caminho tem tojos
Bem podíeis vós senhora
Pô-lo de cravos cheirosos.

Ó Senhora Santa Águeda,
Minha roseirinha branca
Quando viestes ao mundo
Logo foi para ser santa.

Ó Senhora Santa Águeda,
Que lá estais ao pé do monte
Dá-me uma pinguinha de água
Senhora da vossa fonte.

Ó Senhora Santa Águeda,
Que estais lá ao pé da bica
Dai saúde aos que lá vão
E também aos que cá ficam.

A Senhora Santa Águeda
Tem um jardim na levada
Mandai-o regar, Senhora,
Por uma mulher casada.

A Senhora Santa Águeda
Tem um jardim na ribeira
Mandai-o regar, Senhora,
Por uma moça solteira.

Recolha feita numa sessão de leitura de textos e cantares alusivos a Santa Águeda, no Centro Cultural da Póvoa de Rio de Moinhos, no âmbito da comemoração do dia em que se venera a Santa: 5 de janeiro.

M. L. Ferreira 

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Casal da Serra: o Cavaco

Quem atravessa o Casal da Serra e continua a subir pela Gardunha, vai encontrando ao longo do caminho muitas casas espalhadas pela encosta. Depois do incêndio ficaram mais visíveis, mas, mesmo assim, feitas da pedra da Serra, confundem-se com a paisagem. Algumas estão dispersas e isoladas; outras formam pequenos casais onde viveram várias famílias ou gerações da mesma família.


Um desses casais é o Cavaco. São meia dúzia de casas, atualmente todas desabitadas, mas dizem que já houve tempos em que os que lá moravam eram mais que os que agora vivem no Casal da Serra. Eram quase todos da família Serra e dos Jacintos; tiveram muitos filhos que agora andam espalhados por esse mundo fora.
Quem lá morava, era quase auto-suficiente. Produziam de tudo para casa, nas hortas e lameiros que por lá abundam; e havia água com fartura para as regas.



Também havia muitos castanheiros. Produziam bem, e as castanhas, frescas ou piladas, ajudavam a encher a barriga ao longo de quase todo o ano.


As casas tinham dois pisos: por baixo guardava-se o gado, cabras e vacas, e por cima viviam os donos. Na eira, mesmo em frente, secavam-se e malhavam-se os cereais.


Os porcos viviam nas furdas, mesmo ao lado das casas; e as galinhas andavam na rua, a comer o que apanhavam, que lá nisso não são esquisitas…


Mas, à noite, eram fechadas. Aproveitavam-se os vãos das escadas e dos balcões para as proteger dos lobos e das raposas, que havia muitos, naquele tempo.

Vidas simples, mas trabalhosas, das quais só se saía aos domingos, para ir à missa.
Não me parece que o Francisco Sarmento [rever publicação Incêndios: um outro olhar] queira recuar tanto quando diz que temos que mudar o nosso modo de vida se queremos salvar o planeta, mas alguma coisa tem que ser feita. Também fico escandalizada que nos supermercados portugueses haja tanta carne, fruta e legumes que dão quase a volta ao mundo para cá chegar. Penso que não é assim tão difícil combater estas práticas: basta não comprarmos esses produtos e escolher o que é nacional. O problema é que somos quase todos muito pobres para podermos fazer essas opções. Pobres na carteira e no espírito, e por isso também ainda deitamos o lixo para o chão…

M. L. Ferreira

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Ex votos

Todos nós somos de uma maneira ou outra, religiosos. Mais não seja crermos na ciência humana. Os partidários do agnosticismo não crêem naquilo que não vêm, o intangível. Apesar de aparentemente não acreditarem na existência de um Ser criador de todas as coisas, crêem na ciência. São Tomé só acreditou quando viu o Mestre.
         Ao contrário dos agnósticos, os ateus não seguem qualquer religião; para eles, Deus não existe, em contrapartida, há os que acreditam numa divindade.
Católicos, muçulmanos, judeus, adoram um Deus único. “Latria”. Há povos que aceitam vários deuses.
Os católicos muitas vezes “negoceiam” com a divindade oferecendo contrapartidas pela graça recebida; podem ser velas, dinheiro, ex votos…
Quem numa hora difícil nunca pronunciou a palavra Deus? Valha-me Deus, Deus nos valha, Deus nos acuda…
A igreja da Misericórdia, dedicada ao Senhor Santo Cristo, guarda umas largas dezenas de ex votos, formas de agradecimento por graças alcançadas. Nela figuram dois belos quadros: um oferecido pelo visconde de Tinalhas e o outro pela família Robles Monteiro.
A maioria representa órgãos do corpo humano feitos em cera: braços, pernas, corações… Cada figuração representa a cura daquele órgão figurado.
Também se encontram figurações humanas completas, representam crianças que foram curadas dos seus males. A criança manifesta a dor através do choro, mas não consegue dizer qual o órgão afectado, então os progenitores oferecem à divindade uma figura humana.
Seja na igreja do Senhor Santo Cristo ou no santuário da Senhora da Orada, todos os objectos ex votos estão dependurados nos locais mais nobres do templo.
Na igreja da Misericórdia existe um divisa militar oferta de alguém que foi para a guerra e voltou são e salvo. Também se exibe um grande cirio.
Esta fé em algo que nos transcende já acontecia nos santuários da antiga Grécia. Os nossos reis, em alturas de aflição, agradeciam a Deus, através da construção de grandes monumentos: Real Convento de Mafra, Mosteiro da Batalha… No nosso tempo, ainda há muitos crentes que continuam a oferecer à divindade da sua devoção peças votivas.
Em Santuários como Fátima, Aires, Senhora da Póvoa, existem expostos em lugar apropriado peças de roupa, fotografias, ourivesaria e todo o género de recordações.
         Nos grandes ou pequenos santuários, como da Senhora da Orada, em dias de romaria, os crentes exibem velas acesas como agradecimento. Não se perpetuam no tempo. Enquanto dura a cerimónia, a súplica, o pedido ou o agradecimento pela graça recebida, as velas alumiam, é a forma de pagamento pela graça que a divindade concedeu.
Tudo isto está enraizado nos cultos de raiz popular.    
O Homem, ser finito, pelas suas fragilidades e dores, é limitado. Por isso tem necessidade de recorrer à acção benevolente dos santos, eles são os mediadores entre Deus e o Homem. Estas situações acontecem quase sempre quando a esperança na ciência se esgotou, voltando-se a pessoa para o além, para conseguir o milagre, por intercessão do santo a que se recorre.
A principal razão da existência dos ex votos é a gratidão pela graça concedida, mas para isso o pedido tem que ser acompanhado de muita fé. Porque a fé, nas obras se vê.

J.M.S





M. L. Ferreira

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Vidas do avesso

Não se sabe ao certo de onde é que era, mas pode bem ter nascido nas encostas da Gardunha, talvez perto da Senhora da Orada. Os pais, pobres e cheios de filhos, mourejavam de sol a sol em searas alheias, que de si não tinham nada.
Ele também começou cedo. Primeiro a guardar cabras, ainda ganapo; depois, já cachopo, ninguém lhe ganhava a cavar ou a ceifar, e não faltava quem o quisesse à jorna, sempre que era preciso.
E assim se foi fazendo homem, grande, bem parecido e com a força de um touro. Se calhar por isso não lhe foi difícil encontrar mulher para casar: uma bonita cachopa, trabalhadora que até dava gosto; e não tardou um ano, nasceu-lhes o primeiro filho. Um belo menino, rosadinho, que se via medrar de dia para dia.
Foi nessa altura que soube que andavam a fazer uma grande barragem lá pela parte de cima do Casal da Serra e foi-se lá oferecer. Era trabalho ruim, mas certo por alguns anos. Mal encararam com ele, um homenzarrão daqueles, puseram-no a cortar pedra.
Foram bons, aqueles primeiros anos de casado: trabalhinho certo; o comer sempre a tempo e horas; a mulher amorosa e um verdadeiro braço de trabalho em casa e na horta; o filho a saltar que nem os cabritos.
Mas, lá diziam os antigos: «Não há bem que sempre dure…» e um dia vem de lá o diabo duma pedra direitinha a ele, que o ia esmagando. Não o matou, mas levou-lhe dois dedos e a força toda da mão direita. Teve que abalar, que sem força nas mãos, disse o capataz, não prestava para aquele serviço. E fez-se de novo pastor, que para guardar gado até os havia sem braços.
Sentiu a falta da companhia dos outros homens, que a dos bichos não é a mesma coisa, mas, às duas por três, até já estava avezado e um dia deu consigo a falar com as cabras como se fossem gente.
Mas eram danadas, aquelas almas do diabo; sempre à espreita duma distração para se meterem pelo renovo adentro e darem cabo dele enquanto o diabo esfrega um olho. Um dia foi de tal modo a estragação que fizeram na seara dum ricalhaço que este não esteve com meias medidas: nada menos que 400$00 escudos pelos prejuízos. E se fossem para tribunal, que nem quisesse saber por quanto lhe ficava.
Como não tinha meios para pagar tal fortuna, foi adiando, até ao dia em que viu aparecer-lhe a Guarda à porta. Saltou pela postigo das traseiras e ninguém tornou a pôr-lhe a vista em cima, lá na terra.
Vivia escondido nas partes mais altas da Serra e só se abeirava duma casa ou dum palheiro quando tinha muita fome ou muito frio. De vez em quando, pela calada da noite, ia até casa para matar saudades da mulher e do filho que já estava a ficar um homenzinho. Olhava para ele, a dormir, e só pedia a Deus que o guardasse, melhor do que tinha feito com ele.
Uma vez, numa noite de invernia, esfomeado e a escorrer, passou perto duma casa por cima de São Vicente. Sabia ser de um amigo que tinha arranjado havia muitos anos, uma vez que tinham ido juntos ao quinto lá para os lados do Alentejo. Voltaram depois a encontrar-se nas obras da barragem e eram quase como irmãos. De certeza que repartiria com ele alguma coisa de comer.
Bateu à porta e perguntou pelo amigo, mas a mulher disse-lhe que não estava, mas não tardaria a chegar. Deu-lhe uma malga de caldo bem quente e secou-lhe a roupa ao lume. Assim, aconchegado, aprontava-se para abalar, quando entra por ali adentro uma chusma enfurecida que lhe amarra os braços e o arrasta para a cadeia, na Praça da Vila. 
A meio da noite arranja maneira de fugir, aproveitando-se da bebedeira dos guardas. Mas não vai muito longe, porque foi apanhado ainda mal se tinha refeito do susto. Levam-no para Castelo Branco e ele torna a escapar. Pelo caminho dizem que matou gente e levam-no para uma enxovia perto de Lisboa, com água pelos joelhos.
Passaram-se alguns anos e um dia, já doente e sem esperança, quis cumprir o desejo de tornar a ver o sol e conhecer o mar. Agarrou nas últimas forças e «…conseguiu partir os grilhões e fugiu a nado. Chegou ao paredão e subiu-o de arrastos, tolhido das pernas. O sol quente, uma coisa tão boa! Passou o barco patrulha e soou um tiro. O corpo rebolou e voltou à água.»

Nota: A parte do último parágrafo, em itálico, foi retirada da história “O Pistotira” escrita pelo José Teodoro e que faz parte do livro “DOS ENXIDROS AOS CASAIS…”.

M. L. Ferreira

domingo, 4 de dezembro de 2016

As profecias do Pescão Seco

Chamava-se António Fernandes e nasceu no lugar de Pescanseco, Pampilhosa. Sabe-se lá porquê, veio ainda novo para São Vicente e por cá se casou com Maria de São João, no ano de 1884. Tinha vinte e oito anos e era soldado na reserva. Por causa da terra onde nasceu, começaram a chamara-lhe Pescão Seco.
Conta o Chico Insa que ouvia dizer ao avô e ao pai que era um homem muito instruído, que sabia ler e escrever muito bem e falava de coisas que davam que pensar. Havia uma que dizia mais ou menos assim: «Hão de vir tempos em que os caminhos estarão pintados de preto e no ar hão de voar coisas que deixam riscos no céu. Quando isso acontecer, virão cataclismos tão grandes que será o fim do mundo».
Naquele tempo, já lá vão cento e muitos anos, mal se imaginavam as voltas que o mundo havia de dar e as transformações no modo de vida das pessoas: carroças e carros de bois substituídos por automóveis e aviões; gente a viver em gaiolas (parece que em muitas cidades do Oriente é quase literal) e a alimentar-se com comida que cresce à custa de fertilizantes, hormonas e pesticidas; mezinhas substituídas por antibióticos que já se deixam enganar pelas bactérias; armas capazes de arrasar cidades inteiras; e tantas outras coisas que, a pouco e pouco, estão a tornar cada vez mais frágil a qualidade de vida das pessoas e do ambiente.
Ainda assim, ainda não há muito tempo, os mais desatentos dizíamos que os avisos sobre as ameaças da vida na Terra tinham origem em teorias alarmistas e pouco fundamentadas e continuávamos a olhar para o lado como se não tivéssemos nada a ver com o assunto e estas questões não tivessem a ver com cada um de nós.
Agora os cientistas já dizem que chegámos a um tempo em que, se não se tomarem medidas extremas dentro de um período muito curto de tempo, chegaremos a uma situação em que não haverá retorno em termos da sustentabilidade do Planeta.
Conscientes desta realidade têm-se conseguido compromissos por parte de um grande número de países, para a implementação de medidas que evitem males maiores, nomeadamente pela redução de gases poluentes. Mas logo agora que se estavam a dar passos importantes nestas questões, os americanos voltam a surpreender-nos com a escolha que fizeram para seu presidente: um homem que tem revelado uma atitude de negação e desprezo por grande parte das conquistas civilizacionais que fomos alcançando, incluindo a consciência ecológica e a preocupação pelas questões ambientais.
Se tivermos em conta a origem das primeiras felicitações que lhe chegaram do estrangeiro (Marine le Pen, Putin, Erdogan…), se calhar temos razões sérias para estarmos apreensivos quanto ao futuro; se não do nosso, pelo menos do dos nossos filhos.
Oxalá não se cumpra cedo demais a profecia do Pescão Seco!

Notas:
António Fernandes e Maria de São João moraram na Vila e aí lhes nasceram os dois primeiros filhos que morreram anjinhos. Viveram depois no Casal da Fraga, numa casa que seria mais ou menos no local onde eu moro agora e onde terão tido uma filha que se chamava Bernardina; mudaram-se a seguir para a Senhora da Orada, mais precisamente para o Vale Caria, onde lhes nasceu pelo menos mais um filho, Anselmo, que andou na Grande Guerra, mas que também deve ter morrido ainda novo.


A casa do Vale Caria, onde viveram, era muito humilde, e dela já só existem vestígios das paredes traseira e laterais e o sítio onde acendiam o lume.
Apesar de ser um homem com uma instrução acima da média para aqueles tempos, António Fernandes terá sido toda a vida jornaleiro. Dos poucos descendentes que teve, ainda vivem alguns no Casal da Serra. Continuam a ser conhecidos pelo nome de Pescão.

M. L. Ferreira

sábado, 20 de agosto de 2016

As coisas que o Pedro sabe

Às vezes até me deixa de boca aberta com o que ele sabe sobre a nossa terra – a História e as histórias, as gentes, os lugares, as tradições… É verdade que teve uma boa mestra, mas, mesmo assim, não deixa de surpreender. Ainda por cima é uma pessoa generosa, sempre disposto a partilhar o que tem e o que sabe, e a ajudar quem precisa.
Aqui há tempos encontrei-o na Praça. Tirou uma coisa do bolso e parecia um menino:
- Olhe aqui, sabe o que é isto?
- Sei lá agora, Pedro…
- Chama-se um barbilho.
De repente fez-se luz e lembrei-me do tempo em que via o meu avô, no Mato Branco, a berrar atrás de algum borrego ou cabrito:
- Grande filho duma cabra, com o corpanzil que já tem e ainda agarrado às tetas da mãe! Deixa estar que já te cozo!
Ao outro dia, embarbilhado, que remédio tinha o bicho senão fazer pela vida, e a minha avó toda contente com o queijo mais avultado.

Barbilho
 É utilizado para desmamar os cabritos e borregos. Mete-se a parte de madeira dentro da boca do animal e a tira de couro passa por cima do nariz. 
As guitas atam-se aos cornos ou, no caso de ser moucho, passam por trás das orelhas e atam-se ao pescoço.

Um dia destes encontrei-o no estaleiro da Junta. No meio de tantas velharias, mostrou-mas como se fossem tesouros. Sabe o nome, função e proveniência de tudo, e diz que ainda um dia lhes há de voltar a dar vida.
Numa caixa, bem acondicionados, tinha as últimas aquisições:
  
Um chocalho
É maior, se for para as vacas, ou mais pequeno, se for usado por cabras e ovelhas.

Badalos
O som do chocalho depende do tamanho e da forma do badalo.

Chavetas   
São utilizadas como fivelas para prender a coleira do chocalho.

Travincas
Serviam para ajudar a fixar e apertar a corda dos molhos de lenha, mato ou erva.

Todos estes objectos eram feitos à mão, muitas vezes pelos pastores. A madeira utilizada era quase sempre o carvalho, a oliveira ou o azinho, por ser mais rija. Muitos faziam também pífaros, fisgas, fundas e outros objetos de madeira, cortiça, osso e couro. Era uma maneira de enganarem a solidão dos dias...

M. L. Ferreira

Nota: Os objetos e explicações são do Pedro Gama.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Antes do amanhecer

A condição da mulher no Estado Novo
                                                                 
         A Revolução do 25 de Abril foi o acontecimento mais importante da História contemporânea do nosso país, pelas mudanças que proporcionou em quase todos os setores da sociedade, permitindo uma evolução extraordinária nas vidas de todos nós. Mas, se as alterações foram enormes para a maioria dos portugueses, foram ainda mais significativas para as mulheres, descriminadas, quase sempre, pela lei, pelos costumes e preconceitos de toda a ordem.
         A Constituição da República Portuguesa de 1933, embora em vários aspetos mostrasse algum retrocesso relativamente à de 1910 e ignorasse as mudanças que aconteciam já em muitos países, continuava a pretender consagrar a igualdade de todos os cidadãos perante a lei. No artigo 5º escrevia-se: «A igualdade perante a lei envolve … a negação de qualquer privilégio de nascimento, nobreza, título nobiliárquico, sexo, ou condição social, salvas, quanto à mulher, as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família…». Esta redação era contraditória com o conceito de igualdade que queria fazer crer e, na prática, significava que, aliados aos efeitos da ditadura que negava muitos direitos a todos os cidadãos, as mulheres sofriam ainda as descriminações decorrentes da sua condição feminina, ficando reduzidas, quase exclusivamente, ao papel de donas de casa, mães e companheiras, e vendo diminuídos muitos dos seus direitos de cidadania, de liberdade, de independência e até o direito à sexualidade.
         Além de não poderem votar (esse direito era exclusivo dos homens maiores de 21 anos que soubessem ler e escrever, dos chefes de família e de algumas mulheres em condições muito bem definidas – menos de 2% do total da população), às mulheres era ainda dificultado, ou mesmo vedado, o exercício de cargos políticos, na magistratura ou na diplomacia.
         É exemplar o caso de Carolina Beatriz Ângelo que, em 1911, aproveitando-se de uma lacuna na legislação que se referia aos chefes de família, mas não especificava o sexo, invocou a sua situação de viúva, e por isso chefe de família, para exigir o direito ao voto. Foi a primeira mulher a votar em Portugal. A partir de então esse direito sofreu alguns avanços e recuos, mas foi autorizado quase sempre em situações muito específicas, dependendo do nível de escolaridade ou estatuto social e económico. Só depois do 25 de Abril, votar se tornou um direito igual para todos os homens e mulheres maiores de idade. Em termos profissionais, salvo raras exceçõe, eram poucas as mulheres que, fora dos trabalhos agrícolas, domésticos ou fabris, tinham uma atividade profissional remunerada. As que eram casadas tinham de ter autorização dos maridos para exercerem determinadas profissões e, a qualquer momento, podiam ver cessar o contrato de trabalho a mando deles. Acrescia ainda o facto de o salário que lhes era pago ser significativamente mais baixo que o dos homens, mesmo que o trabalho fosse igual. Para além de injusto, isto deixava-as numa situação de grande fragilidade e dependência relativamente aos maridos, com as inevitáveis consequências daí decorrentes.
         O papel da mulher no seio da família era muito importante, mas, como diz o ditado «Cá em casa manda ela e nela mando eu», também de submissão ao marido. O homem era o chefe e a ele estavam cometidos muitos dos direitos sociais e políticos da família; competia-lhe também o seu sustento. À mulher estava reservado o governo da casa e a educação dos filhos.
         Não era permitido às mulheres ter conta bancária nem ausentar-se do país sem o consentimento do marido, mesmo que tivessem possibilidades financeiras para o fazer. Não seria o caso de muitas, mas essa situação mantinha-se mesmo que o casal estivesse separado de pessoas e bens.  
         As enfermeiras e hospedeiras de bordo não podiam casar-se e as professoras tinham que pedir autorização superior para o fazer. No caso de o homem não ser considerado pessoa de bem ou não tivesse um ordenado igual ou mais elevado que o da mulher, a autorização era negada.
     O divórcio não era permitido e os filhos nascidos fora do casamento eram considerados ilegítimos, mesmo que assumidos pelo pai biológico. Esta situação era altamente penalizadora para as mulheres, mas também para as crianças que viam reduzidos muitos dos seus direitos, para além da descriminação social a que estavam sujeitas.
A moral sexual vigente até quase ao final do Estado Novo era dominada pela visão altamente castradora da Igreja Católica que defendia a sexualidade apenas dentro do casamento. Desse modo, a finalidade das relações sexuais era a procriação, sendo pouco valorizadas as questões da afetividade e, sobretudo, do prazer.
         Mas a rigidez desta visão, baseada em crenças morais e religiosas muito redutoras, aplicava-se sobretudo às mulheres, já que aos homens eram toleradas as relações antes do casamento e extraconjugais. Em alguns meios esta prática estava de tal modo enraizada e era tão bem aceite que fazia parte do estatuto social de certos homens. No caso das mulheres, se não fossem virgens na altura do casamento, era motivo para a anulação do matrimónio. O homicídio, em caso de adultério, era tolerado socialmente e a pena aplicada pelos tribunais tinha muitas atenuantes; a maior parte das vezes não ia para além do afastamento temporário da residência habitual, continuando a usufruir das regalias de que beneficiava anteriormente.
         O aparecimento e progressiva despenalização legal e social dos métodos contracetivos, assim como as consultas de planeamento familiar e saúde materno infantil contribuíram significativamente para ajudar a vencer os medos, a vergonha e muitas ideias preconceituosas relativamente ao sexo. Permitiram também, a homens e mulheres, viverem a sua sexualidade de forma mais equilibrada, igualitária, e gratificante.
         Passados mais de quarenta anos após o 25 de Abril, refletir sobre estas questões, mesmo que de forma breve, pode fazer lembrar feminismos já ultrapassados, mas a realidade mostra que não é bem assim. Apesar das alterações legislativas e das mudanças em termos dos costumes e mentalidades, as mulheres continuam a ser o elo mais fraco duma sociedade de características ainda marcadamente masculinas: recebem salários mais baixos em muitas profissões; são quase sempre as mais atingidas pelo desemprego; continuam a ser descriminadas pela maternidade; sofrem ainda de chantagem e assédio nos locais de trabalho; têm mais dificuldade em aceder a lugares de chefia, quer nas empresas quer na política (a lei da paridade estabelece que 33% da composição das listas para a Assembleia da República, Autarquias e Parlamento Europeu têm que ser mulheres, mas na prática não serve de muito porque, para além do número ser altamente discriminatório, as mulheres são muitas vezes colocadas em lugares dificilmente elegíveis).
         Os números da violência doméstica e dos homicídios praticados no seio da família dizem-nos que a lógica que regulou a vida das nossas avós e das nossas mães não está tão distante como possamos imaginar. Por isso vale a pena ter memória e a consciência de que os direitos adquiridos, neste e noutros setores, não são conquistas sem retorno.
Ceifeira, de Almada Negreiros, atualmente no CCC de Castelo Branco.

M. L. Ferreira