As férias
são um tempo extraordinário na vida dos trabalhadores, amarrados semana a
semana, mês a mês, a um horário de trabalho de que não há escapatória. Bem, nos
trabalhadores dos nossos tempos, que o direito a férias é coisa recente,
legalmente consagrado em 1937, em Portugal. E o que foi preciso lutar para o
alcançar!
A dimensão
que trago aqui hoje à baila é a da disponibilização do trabalhador com vista à
sua participação social e cultural (palavreado legal), que quer dizer, ao
reencontro e socialização com familiares e amigos que, devido a distâncias e
outras circunstâncias, só na altura das férias (grandes) podem com vagar matar
saudades, trocar experiências, passear juntos e sonhar.
O grupo dos
amigos da Praça, como invariavelmente acontece todos os agostos, lá voltou a
reunir, só que em vez de se por a sonhar com projetos incapazes de ganhar
quaisquer simpatias, como dar uma demão de tinta à Casa Paroquial,
coisa que ela nunca viu desde que nasceu, ajardinar o Quintalinho que lhe serve de
logradouro (com plantas e flores oferecidas pelos Vicentinos), manter as
fachadas que dão para a Fonte Velha apresentáveis, este ano
repensou a estratégia e virou-se para outros lados. Cultura e desporto.
Vai daí,
organizou um passeio pedestre às antenas, onde seria comida uma bela merenda,
com a reconstituição da batalha da Oles, pelo meio, embora deslocada para um
sítio em que a vitória nos fosse garantida, tendo-se apresentado como sítio
ideal a fraga escarpada sobre o Louriçal.
Armámo-nos
de varapaus e cachaporras e, à medida que as cabeças dos infiéis apareciam por
trás das pedras, era cacetada no toutiço até o diabo dizer bonda. Eram
seguramente dez vezes mais que nós, mas os apedrejadores dizimavam-nos lá do
alto, a rolar penedos enormes para cima deles, com a ajuda imprescindível do
bom gigante, que veio da Terra dos Francos fazer a cobertura do evento e mesmo
com pedradas certeiras que eram como balas. Os que fugiram iam tão acagaçados
que só se atreveram a olhar para trás depois de passar a Soalheira.
A vitória esmagadora
foi efusivamente festejada, como testemunha o retrato com os vencedores ufanos,
de armas no ar. Admiravelmente poucos, para tão enorme tarefa. Descontando o
narrador, temos o repórter vindo da Terra dos Francos com o seu irmão e outro
combatente. Assim: João e Tó Passaraço; Chico Pinheiro e o cunhado Tó, que é
como irmão, nunca o deixando combater sozinho, dadas as mazelas da coluna; o Zé
Barroso e o Daniel, aguerrido combatente das serranias.
Para nos
recompormos do esforço da luta, fomos presenteados pelo Chico Pinheiro com uns belos
quadrados de chocolate preto do bom, 80% de cacau, no final da bucha, devorada
no miradouro sobre Castelo Novo. Depois, uma pequena pausa onde se fizeram os
necessários curativos e se retemperaram as forças. A batalha passou à história,
como sabem.
O grupo
seguiu animadíssimo, serra acima. Aliás, viajar com o Zé Barroso é sempre um
prazer incalculável, quer seja a pé, quer tenha sido naquele calhambeque, em
que há muitos anos atrás se faziam os arraiais das redondezas, que qual jumento
adorava ir à berma da estrada abocanhar um bocado de carqueja ou giesta tenra e
que ele sistematicamente repreendia, com demasiada altivez, dizendo: mato, mas tu queres mato?
O Daniel,
meu sobrinho, teve como companheiro privilegiado o Tó Passaraço que lhe foi
mostrando a vastidão do território calcorreado vezes imensas com
12, 13, 14 anos, a colher resina no Rolão Preto, com o avô Joaquim Barroso e, no
próprio local da batalha, com o ti Zé Candeias, numa das voltas mais difíceis
da região. Explicou-lhe as voltas,
área geográfica correspondente a um dia de trabalho, a colha, que consistia em retirar a resina das tijelas para o caldeiro, que depois de cheio era
despejado no barril. O caldeiro de chapa de zinco, com uma
cinta no fundo, que tinham de encher de madeira ou cortiça para não se enterrar
nos tenros
ombros da
sua adolescência. A merenda invariavelmente de pão e conduto. Os acidentes do
território, fragas ruins de escalar. A sede em certos dias abrasadores sem fontes
por perto. Uma lição de vida.
E assim
fomos subindo, subindo, parando por vezes para que o João mantivesse o
batimento cardíaco dentro da guide line, fixada
pelo seu cardiologista. Ao chegarmos ao planalto que antecede a última e mais
agressiva subida às antenas, aconteceu algo deveras surpreendente.
Avistámos um
ancião de cabelo branco, que não veria tesoura há anos, junto a uma charca a
admirar um bando de perdizes que ali matava a sede e que se tentou enfiar numas
giestas mal nos pressentiu. Como o
chamámos, parou e caminhou ao nosso encontro.
Alguém
perguntou – É muito parecido com o
Gandalf, da Terra Média, o nome diz-lhe alguma coisa? Ao que respondeu – Desconheço tal personagem.
- Afinal quem é o Senhor e o que faz aqui?
- Perguntámos impressionados pelo seu ar altivo e olhar perturbador.
- O nome não importa, mas a minha função é a
de guardião do Portal da Senhora da Penha, - virou-se para nascente e
apontou com o indicador direito - além
naquela fraga, milenar
local de culto, que alguns querem que caia no
esquecimento. E perguntou de seguida – E vocês quem são e que procuram?
- Um grupo de amigos com laços familiares, que
vivendo separados, se junta em agosto para matar saudades e por a conversa em
dia, que decidiu dar um passeio ao cume da Serra. – Dissemos.
- Sinto
que estão ligados por uma energia positiva e que são pessoas de bem. - Fez
uma pausa e pediu para que nos sentássemos um pouco, que os anos dele e o nosso
cansaço o mereciam e continuou – Não sei
se já ouviram falar de mim, porque raramente sou visto e peço sempre para
omitirem estes encontros. É que, infelizmente,
não há muita gente preparada para eles. E eu
como guardião dum local privilegiado de comunicação entre o Profano e o Sagrado
sei isso muito bem.
Olhámos uns
para outros a tentar perceber o impacto daquelas palavras e pergunta o Zé
Barroso, com uma desenvoltura que me impressionou, mas habitual nele – Mas afinal que conversa é essa, onde é que o
Senhor quer chegar?
Ele
olhou-nos com o seu olhar profundo e, com voz que irradiava uma paz absoluta,
continuou – A humanidade parece andar distraída,
mas há milhares de anos que alguns homens sabem que o alto das montanhas são
locais ideais de comunicação com a Divindade. Aliás, um dos pilares da vossa
cultura, o Livro, refere-o imensas vezes. Todos já ouvistes falar que foi numa
montanha como esta, bastante longe daqui, chamada Sinai, que a Divindade entregou a Moisés um código
de conduta, bem pequeno, comparado com os de hoje, claro, unicamente com 10
artigos, mas que raros homens são capazes de cumprir.
Fez uma
longa pausa e diz – Quando toda a
humanidade agir segundo aquelas normas, que não são para católicos, como
pensais, mas servem toda a humanidade, a terra fundir-se-á com o Céu e a
humanidade
passará a viver uma
paz e felicidade permanente. Então, eu e outros guardiães deixaremos de ser
necessários. - Calou-se e argumentámos, - Mas
isso são balelas, não passa de um mito!
Encarou-nos
um a um e disse serenamente – O ser
humano é conhecido pela sua tradicional falta de fé. É velh,a mas bem
significativa a frase do
Homem Divino que por cá passou há dois mil anos «se tiveres fé como um grão de
mostarda, poderás mover montanhas». O caminho
é longo e difícil, mas homens santos e sábios conhecem os desígnios do Alto. Os
Mais já o sabiam há séculos e eram chamados
primitivos pelos
espanhóis. Sabem que eles já tinham conhecimento que em 2012, se iniciaria uma nova era cósmica em
que a materialidade começaria a ceder terreno à espiritualidade e ao sentimento
geral de fraternidade?
Aqui não me
contive e argumentei – Como é que acha
isso se o planeta continua a viver tragédias terríveis por todo o lado? A
guerra da Síria, as mortes de refugiados no Mediterrâneo… Não sabe o que se passa,
certamente!
Olhou-me
tranquilo e disse – A evolução é
demasiado lenta para o vosso tempo de vida, mas os sinais são animadores e visíveis
aos mais atentos. Reparem na quantidade de grupos que têm surgido para defesa
ambiental, preocupados com a saúde do planeta, grupos pacifistas que arriscam a
própria vida pela segurança dos outros e as ondas de solidariedade que surgem,
cada vez com maior frequência, para salvar um ser humano, vítima de um terrível
infortúnio.
Olhámos uns
para os outros com ar de assentimento. Ele
olhou-nos, sorriu pele primeira vez e continuou – A mudança mais profunda começa no interior de cada um de nós. A
conquista de nós próprios é a chave. Continuem a cultivar a amizade que se
sente em cada um de vós, a alegria e a paz, e atendendo ao lugar santo a que
vão subir, recolham-se por um momento no vosso íntimo e ofereçam à Divindade a
graça da saúde que tem recebido e vos permite ainda subir a este lugar, do amor
que respiram nas vossas famílias e da amizade que vos une. São valores muito
importantes, mas ao mesmo tempo tão frágeis.
Subitamente
sentiu-se uma ligeira brisa, a luz pareceu vibrar com mais intensidade, talvez
pelo calor que começava a apertar, e o velho desapareceu sem darmos por ela.
Subimos o
resto que faltava para o cume, em silêncio, sem percebermos bem o que se
passara. Teria sido uma alucinação colectiva, devida à conjugação do cansaço e
calor ou apenas um sonho interior ocasionado pelo ar rarefeito da montanha?
No alto
comemos a merenda, admirámos a paisagem e tiramos outro retrato a comprovar a felicidade
de termos chegado juntos à meta.
No regresso
o calor era abrasador e, enquanto nos refrescávamos, um pouco, à sombra do mais
majestoso castanheiro das redondezas, à chegada ao Casal pelo lado de Nordeste,
o Zé Barroso vai de soltar uns valentes assobios, «à pastor» e eis a revelação.
O encontro com o guardião não fora irreal e as coisas estão a acontecer. Pois
jamais fora visto noutros tempos e não foi ilusão: três cabras aparecerem a
espreitar, no primeiro andar duma casa, ao balcão.
De maneiras
que foi assim…
F. Barroso
Fotos do João Craveiro (Passaraço)