Tínhamos 3 figueiras, no leirão da Tapada, em frente à casa. A do fundo era coriga, a do meio, maior que as outras, dava figos brancos pingo de mel e a mais próxima era uma figueira preta. Gostava de todos, mas, embora os figos brancos pingo de mel sejam os melhores, sempre tive um gosto especial pelos corigos, apesar ou talvez por terem aquele gosto selvagem e a casca ser um pouco agressiva à pele da boca.
Também havia uma figueira, na Barroca. Era enorme. Uns ramos cresciam para o alto, outros desciam ao longo da parede até quase ao lameiro. Um dia vi um figo na ponta de uma pernada. Era muito gordo, com mel a sair. Fui avançando e a minha irmã Celeste a convencer-me a desistir. Ia cair! Cheguei à ponta da pernada, estendi a mão, mas, antes de lhe tocar, mergulhei numa floresta de ramos, por onde fui caindo, até bater com a cabeça no chão. Valeu-me ter começado, na véspera, precisamente por aquele canto, a cava do restolho para pôr as couves.
Anos antes, em Setembro de 1967, tinha eu 10 anos, foram os figos que me ajudaram a optar pela vida.
O tempo dera em refrescar e era altura de armar os costis. Eu e os meus primos João e Tó tínhamos só um ou dois por casa, encontrados perdidos nos caminhos e leirões, por quem tinha muitos.
Íamos ao milho, nosso ou de quem fosse, e procurávamos aqueles com sinais de carneiros: um furo, um monte de cocó… Partíamos a cana do milho e escarafunchávamos lá dentro até encontrar o carneiro. Guardavam-se quatro ou cinco numa caixa de fósforos e podíamos ir armar os costis.
A escolha do local exigia saber: um terreno liso, para o pássaro ver facilmente o carneiro, um pouso onde ele pousar e traçava-se a diagonal mais favorável ao olhar do passarinho. Mexia-se a terra, escondia-se lá o costil aberto, com o carneiro preso pelo rabo ao arame da ratoeira. O carneiro ficava a agitar-se e nós íamos armar outro.
Se caía algum, sentíamos orgulho da nossa arte, embora com pena de um pássaro tão bonito que pouco tinha para comermos.
Nesse fim de Setembro, eu e o João tínhamos ido levantar um costil num leirão da primeira horta da Barroca. Olhámos para a encosta do outro lado e vinha a descer a patrulha da Guarda. Já nos tinham visto!
Saltámos para o caminho do rego da água e quase voámos para casa, com os guardas ao nosso encalce pela barreira acima.
Cada um refugiou-se junto da sua mãe. A casa do João era do lado da barreira, por isso os guardas começaram por lá. Ouvi-os a falar e depois apareceram à nossa porta. Perguntaram-me pelos costis, mas eu atirara o meu fora. Foram comigo ao local e lá estava no meio do mato. Voltámos para casa e os guardas ficaram a conversar comigo à entrada da quelha, eles e a minha mãe na ideia de que o assunto ficasse por ali.
Mas eu protestava, dizia que os meus colegas da escola caçavam com 30 e 40 costis e depois disparei para o guarda que falava mais: “O que o senhor quer é levar o meu costil para o seu filho, que já tem mais de 30!”
Ele encostou-me a metralhadora à barriga e ameaçou: “Ou te calas ou nunca mais comes figos daquela figueira!”
Olhei para a arma. Era medonha, com o cano cercado por um mais largo cheio de buracos. Depois virei-me para a figueira. Ele apontara para a nossa figueira branca pingo de mel. Rendi-me. Fiquei calado e os guardas abalaram, quelha abaixo, com o meu costil.