domingo, 16 de outubro de 2016

Nas férias grandes

As férias são um tempo extraordinário na vida dos trabalhadores, amarrados semana a semana, mês a mês, a um horário de trabalho de que não há escapatória. Bem, nos trabalhadores dos nossos tempos, que o direito a férias é coisa recente, legalmente consagrado em 1937, em Portugal. E o que foi preciso lutar para o alcançar!
A dimensão que trago aqui hoje à baila é a da disponibilização do trabalhador com vista à sua participação social e cultural (palavreado legal), que quer dizer, ao reencontro e socialização com familiares e amigos que, devido a distâncias e outras circunstâncias, só na altura das férias (grandes) podem com vagar matar saudades, trocar experiências, passear juntos e sonhar.

O grupo dos amigos da Praça, como invariavelmente acontece todos os agostos, lá voltou a reunir, só que em vez de se por a sonhar com projetos incapazes de ganhar quaisquer simpatias, como dar uma demão de tinta à Casa Paroquial, coisa que ela nunca viu desde que nasceu, ajardinar o Quintalinho que lhe serve de logradouro (com plantas e flores oferecidas pelos Vicentinos), manter as fachadas que dão para a Fonte Velha apresentáveis, este ano repensou a estratégia e virou-se para outros lados. Cultura e desporto.

Vai daí, organizou um passeio pedestre às antenas, onde seria comida uma bela merenda, com a reconstituição da batalha da Oles, pelo meio, embora deslocada para um sítio em que a vitória nos fosse garantida, tendo-se apresentado como sítio ideal a fraga escarpada sobre o Louriçal.

Armámo-nos de varapaus e cachaporras e, à medida que as cabeças dos infiéis apareciam por trás das pedras, era cacetada no toutiço até o diabo dizer bonda. Eram seguramente dez vezes mais que nós, mas os apedrejadores dizimavam-nos lá do alto, a rolar penedos enormes para cima deles, com a ajuda imprescindível do bom gigante, que veio da Terra dos Francos fazer a cobertura do evento e mesmo com pedradas certeiras que eram como balas. Os que fugiram iam tão acagaçados que só se atreveram a olhar para trás depois de passar a Soalheira.

A vitória esmagadora foi efusivamente festejada, como testemunha o retrato com os vencedores ufanos, de armas no ar. Admiravelmente poucos, para tão enorme tarefa. Descontando o narrador, temos o repórter vindo da Terra dos Francos com o seu irmão e outro combatente. Assim: João e Tó Passaraço; Chico Pinheiro e o cunhado Tó, que é como irmão, nunca o deixando combater sozinho, dadas as mazelas da coluna; o Zé Barroso e o Daniel, aguerrido combatente das serranias.


Para nos recompormos do esforço da luta, fomos presenteados pelo Chico Pinheiro com uns belos quadrados de chocolate preto do bom, 80% de cacau, no final da bucha, devorada no miradouro sobre Castelo Novo. Depois, uma pequena pausa onde se fizeram os necessários curativos e se retemperaram as forças. A batalha passou à história, como sabem.

O grupo seguiu animadíssimo, serra acima. Aliás, viajar com o Zé Barroso é sempre um prazer incalculável, quer seja a pé, quer tenha sido naquele calhambeque, em que há muitos anos atrás se faziam os arraiais das redondezas, que qual jumento adorava ir à berma da estrada abocanhar um bocado de carqueja ou giesta tenra e que ele sistematicamente repreendia, com demasiada altivez, dizendo: mato, mas tu queres mato?

O Daniel, meu sobrinho, teve como companheiro privilegiado o Tó Passaraço que lhe foi mostrando a vastidão do território calcorreado vezes imensas com 12, 13, 14 anos, a colher resina no Rolão Preto, com o avô Joaquim Barroso e, no próprio local da batalha, com o ti Zé Candeias, numa das voltas mais difíceis da região. Explicou-lhe as voltas, área geográfica correspondente a um dia de trabalho, a colha, que consistia em retirar a resina das tijelas para o caldeiro, que depois de cheio era despejado no barril. O caldeiro de chapa de zinco, com uma cinta no fundo, que tinham de encher de madeira ou cortiça para não se enterrar nos tenros ombros da sua adolescência. A merenda invariavelmente de pão e conduto. Os acidentes do território, fragas ruins de escalar. A sede em certos dias abrasadores sem fontes por perto. Uma lição de vida.

E assim fomos subindo, subindo, parando por vezes para que o João mantivesse o batimento cardíaco dentro da guide line, fixada pelo seu cardiologista. Ao chegarmos ao planalto que antecede a última e mais agressiva subida às antenas, aconteceu algo deveras surpreendente.
Avistámos um ancião de cabelo branco, que não veria tesoura há anos, junto a uma charca a admirar um bando de perdizes que ali matava a sede e que se tentou enfiar numas giestas mal  nos pressentiu. Como o chamámos, parou e caminhou ao nosso encontro.

Alguém perguntou – É muito parecido com o Gandalf, da Terra Média, o nome diz-lhe alguma coisa? Ao que respondeu – Desconheço tal personagem.

- Afinal quem é o Senhor e o que faz aqui? - Perguntámos impressionados pelo seu ar altivo e olhar perturbador.

- O nome não importa, mas a minha função é a de guardião do Portal da Senhora da Penha, - virou-se para nascente e apontou com o indicador direito - além naquela fraga, milenar local de culto, que alguns querem que caia no esquecimento. E perguntou de seguida – E vocês quem são e que procuram?

- Um grupo de amigos com laços familiares, que vivendo separados, se junta em agosto para matar saudades e por a conversa em dia, que decidiu dar um passeio ao cume da Serra. – Dissemos.

- Sinto que estão ligados por uma energia positiva e que são pessoas de bem. - Fez uma pausa e pediu para que nos sentássemos um pouco, que os anos dele e o nosso cansaço o mereciam e continuou – Não sei se já ouviram falar de mim, porque raramente sou visto e peço sempre para omitirem estes encontros. É que, infelizmente, não há muita gente preparada para eles. E eu como guardião dum local privilegiado de comunicação entre o Profano e o Sagrado sei isso muito bem.

Olhámos uns para outros a tentar perceber o impacto daquelas palavras e pergunta o Zé Barroso, com uma desenvoltura que me impressionou, mas habitual nele – Mas afinal que conversa é essa, onde é que o Senhor quer chegar?

Ele olhou-nos com o seu olhar profundo e, com voz que irradiava uma paz absoluta, continuou – A humanidade parece andar distraída, mas há milhares de anos que alguns homens sabem que o alto das montanhas são locais ideais de comunicação com a Divindade. Aliás, um dos pilares da vossa cultura, o Livro, refere-o imensas vezes. Todos já ouvistes falar que foi numa montanha como esta, bastante longe daqui, chamada Sinai, que a Divindade entregou a Moisés um código de conduta, bem pequeno, comparado com os de hoje, claro, unicamente com 10 artigos, mas que raros homens são capazes de cumprir.

Fez uma longa pausa e diz – Quando toda a humanidade agir segundo aquelas normas, que não são para católicos, como pensais, mas servem toda a humanidade, a terra fundir-se-á com o Céu e a humanidade passará a viver uma paz e felicidade permanente. Então, eu e outros guardiães deixaremos de ser necessários. - Calou-se e argumentámos, - Mas isso são balelas, não passa de um mito!

Encarou-nos um a um e disse serenamente – O ser humano é conhecido pela sua tradicional falta de fé. É velh,a mas bem significativa a frase do Homem Divino que por cá passou há dois mil anos «se tiveres fé como um grão de mostarda, poderás mover montanhas». O caminho é longo e difícil, mas homens santos e sábios conhecem os desígnios do Alto. Os Mais já o sabiam há séculos e eram chamados primitivos pelos espanhóis. Sabem que eles já tinham conhecimento que em 2012, se iniciaria uma nova era cósmica em que a materialidade começaria a ceder terreno à espiritualidade e ao sentimento geral de fraternidade?

Aqui não me contive e argumentei – Como é que acha isso se o planeta continua a viver tragédias terríveis por todo o lado? A guerra da Síria, as mortes de refugiados no Mediterrâneo… Não sabe o que se passa, certamente!

Olhou-me tranquilo e disse – A evolução é demasiado lenta para o vosso tempo de vida, mas os sinais são animadores e visíveis aos mais atentos. Reparem na quantidade de grupos que têm surgido para defesa ambiental, preocupados com a saúde do planeta, grupos pacifistas que arriscam a própria vida pela segurança dos outros e as ondas de solidariedade que surgem, cada vez com maior frequência, para salvar um ser humano, vítima de um terrível infortúnio.

Olhámos uns para os outros com ar de assentimento. Ele olhou-nos, sorriu pele primeira vez e continuou – A mudança mais profunda começa no interior de cada um de nós. A conquista de nós próprios é a chave. Continuem a cultivar a amizade que se sente em cada um de vós, a alegria e a paz, e atendendo ao lugar santo a que vão subir, recolham-se por um momento no vosso íntimo e ofereçam à Divindade a graça da saúde que tem recebido e vos permite ainda subir a este lugar, do amor que respiram nas vossas famílias e da amizade que vos une. São valores muito importantes, mas ao mesmo tempo tão frágeis.

Subitamente sentiu-se uma ligeira brisa, a luz pareceu vibrar com mais intensidade, talvez pelo calor que começava a apertar, e o velho desapareceu sem darmos por ela.

Subimos o resto que faltava para o cume, em silêncio, sem percebermos bem o que se passara. Teria sido uma alucinação colectiva, devida à conjugação do cansaço e calor ou apenas um sonho interior ocasionado pelo ar rarefeito da montanha?

No alto comemos a merenda, admirámos a paisagem e tiramos outro retrato a comprovar a felicidade de termos chegado juntos à meta.


No regresso o calor era abrasador e, enquanto nos refrescávamos, um pouco, à sombra do mais majestoso castanheiro das redondezas, à chegada ao Casal pelo lado de Nordeste, o Zé Barroso vai de soltar uns valentes assobios, «à pastor» e eis a revelação. O encontro com o guardião não fora irreal e as coisas estão a acontecer. Pois jamais fora visto noutros tempos e não foi ilusão: três cabras aparecerem a espreitar, no primeiro andar duma casa, ao balcão.

De maneiras que foi assim…

F. Barroso
Fotos do João Craveiro (Passaraço)

5 comentários:

Anônimo disse...

Francisco Barroso és um ponto! Fartei-me de rir em várias passagens da narrativa! Conforme fui lendo, dizia a mim mesmo: mas eu não me lembro de nada disto! Depois é que me fui dando conta da tua veia de ficcionista! Sobretudo na conversa com o guardião da montanha (outro Gandalf de Tolkien?) Com diálogos muitíssimo interessantes e que também revelam que anda, por aí, muita cultura. Um belo texto que atesta uma grande capacidade imagética! Tens que ir para as Produções Fictícias, a oficina do texto dos humoristas deste país!!
Deixa-me só dizer: quando se acabou a água nas garrafas, passámos uma sede quase como a de Cristo no alto da cruz! A pontos de termos que aproveitar o declive de alguns terrenos alagados e fazer uma pequenina fonte com uma palha seca, quase pingo a pingo, a tentar encher a garrafinha...
Mas a coisa mais interessante desse foi aquela cena das cabras que referes. (Ver foto do Zé Teodoro noutra publicação). Elas habitavam, autenticamente, o primeiro andar da casa, destinado às pessoas! Ao ouvirem o nosso falatório, assomaram à porta, com uma calma beatífica, a dar fé do que se passava cá fora! E aquele formidável castanheiro, em frente dessa casa, que parecia o "Totem" da tribo?!
Um espetáculo!
Para o ano, se Deus quiser, há mais! Só para o ano! Não convém perturbar muitas vezes os espíritos da montanha. Podem tornar-se furibundos! É como ir a casa da sogra. Se se for lá muita vezes, o mais certo é dar estrilho. Cada um na sua e cada macaco no seu galho! E assim seremos sempre bem-vindos! Até lá, abraços!
ZB




José Teodoro Prata disse...

Com a ajuda de moçárabes tão valentes e do Guardião da Penha, não admira que o Pe. Zé Manel já vá na 4.º paróquia!
Há meses, soube que além de Almaceda, São Vicente e Louriçal, lhe tinham entregue o Ninho. Pudera: estes ajudantes fazem-lhe o trabalho quase todo...

Anônimo disse...

Grande passeio e belos retratos! Igualmente a prosa, de uma imaginação que nos faz duvidar se é realidade ou fantasia.
Boa, também, a conversa com o ancião, a provar que a idade traz a sabedoria. Assim se cumpram os seus desígnios…

M. L. Ferreira

Anônimo disse...

Bonito; com guerreiros desta natureza temos garantida a nossa segurança
Viriato comparado com vocês tinha muito que aprender. Varapaus, cajados, chuços; com generais desta tempera podemos dormir descansados
A Guardunha desde sempre foi um lugar de refúgio, de acolhimento, digam-no os egitaniênses que fugiram quando os muçulmanos invadiram as campinas da Egitânia. No alto do Cabeço da Penha seres vindo sabe Deus de onde "criaram" uma estação onde pousam naves e se abrigam em grandes cavernas!!!
Muita gente afirma já ter visto objectos estranhos a sobrevoar a serra Guardiã
Percorrer o alto da serra com sol, frio, neve, com eu já percorri, é sempre uma aventura diferente. E ver nascer o sol lá do alto! uma maravilha
Um domingo, sai da praça juntamente com algumas escoteiras e escoteiros caminhámos, subimos...no miradouro fizemos um pequeno bivaque, retemperámos forças, contemplámos a paisagem. "Tudo isto vos darei"...
Descemos em direcção à nobre vila de Castelo Novo, esperava-nos um opiparo pequeno almoço.
Seguimos viagem, quando chegámos a São Fiel nova paragem, já não aguentei o resto da caminhada; eles que sim, eu que não. A minha esposa teve que nos ir buscar. Ainda hoje recordamos essa actividade com nostalgia.
A fama da Guardunha chega longe: Certa manhã de domingo andava eu nas minhas "descobertas" de repente aparece no caminho um automóvel matricula espanhola, parou; saem dois senhores altos dirigiram-se a mim; tive medo.
-Buenos dias disseram.
-Bons dias, respondi
-Castégo Viego
-Castelo Novo!
-Non, Castego Viégo
-Castelo Branco!
-Non
Podia lá ser dois senhores bem vestidos quererem visitar um monte de pedras. O morro que o sustenta estava à nossa frente, disse-lhes; tinham que dar a volta por Castelo Novo e só lá existiam vestígios. Sabem quem eram! O mais velho era professor de história na universidade de Cáceres, o mais novo seu filho. Eram "estrangeiros" mas dos bons.
Um dia estava ele na biblioteca da universidade Estremenha a consultar uns livros de repente encontra um que falava sobre o Castelo Velho, meteu-se no seu automóvel, queria ver com seus próprios olhos.
Ó Zé, o padre José Manuel quando tomou posse da paróquia de São Vicente, na mesma altura começou a paroquiar o Ninho do Açor e Almaceda onde tem a sua residência. A paróquia de Louriçal do Campo julgo que é orientada pelo padre Valter!!
Com estas me fico; até amanhã amigos
J.M.S

José Teodoro Prata disse...

Estou desatualizado, mas que os ajudantes são de se lhes tirar o chapéu...