Para além das Novenas, Ladainhas, e
Via Sacras, cantar os Martírios também fazia parte dos rituais religiosos
próprios da Quaresma em muitas regiões do País, sobretudo em muitas aldeias da
Beira.
Os cânticos eram compostos por várias
quadras que lembravam a Paixão de Jesus Cristo, pediam pelos mortos e o perdão
para os pecadores; mas não eram iguais em todas as terras, nem nas letras, nem
nos dias em que eram cantados, nem nos participantes.
Na nossa terra parece que a tradição
era serem cantados todas as sextas feiras da Quaresma, no escuro da noite,
quando já toda a gente dormia. Tinham que ser vozes bem afinadas e fortes como
as da ti Janja, da ti Aurélia, da Céu Parrita ou da ti Mari da Luz da Glória
(informação da ti Lurdes Barroso) para conseguirem dar as voltas precisas e
fazerem-se ouvir ao longe.
Entre muitas que se terão perdido, as
quadras eram estas:
O Vosso Sagrado Nome
É Jesus de Nazaré
Quero viver e morrer
Pela Vossa santa fé.
Vossos divinos cabelos
Foram em sangue ensopados
Sangue que veio remir-nos
Dos nossos feios pecados
Quem me dera estar na fonte
Quando o Senhor pediu água
Eu lhe dava de beber
Dava-lhe até a minha alma
Na vossa santa cabeça
Coroa de espinhos cravaram
Por entre dores incríveis
Fontes de sangue emanaram
Ó almas que tendes sede,
Vinde ao calvário beber
O Senhor tem cinco fontes
Todas cinco a correr
Ó almas que estais dormindo,
Nesse sono tão profundo
Rezemos um Padre Nosso
P’las almas do outro mundo.
(Recolha do Rancho Folclórico Vicentino)
À semelhança do que aconteceu em
muitas localidades onde estas tradições quaresmais eram praticadas com grande
fé há muitos anos, também na nossa terra muitos destes rituais se perderam. As
razões são várias e não vale a pena enumerá-las mais uma vez.
Felizmente, o nosso Rancho este ano
tomou em mãos a sua recuperação e, embora sem a frequência de outros tempos, já
fizeram a Ladainha algumas vezes e na última sexta-feira cantaram os Martírios.
Começaram na Praça, junto ao Pelourinho,
e depois em vários dos cruzamentos da terra.
No cruzamento ao cimo da rua da Costa,
apareceu o tio Zé Candeias que se juntou ao grupo. Já tem uma voz fraquinha,
mas sabe as quadras na ponta da língua.
- Então não havia de me lembrar?
Cantei-as tantas vezes, eu mais o Zé Ramalho e o João Afonso, no cimo da
varanda mais alta da casa Cunha! Cantávamos tão alto que se ouvia por todo o
lado!
Pelos vistos, não eram apenas as
mulheres que antigamente cantavam os martírios cá na terra e, com o tio Zé Candeias,
manteve-se também agora tradição.
M.
L. Ferreira