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segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Uma graça de filho

Toda a vida foi um castigo para o tirar da cama. Cama é como quem diz, que para falar verdade, era uma faixa de palha, numa tarimba, na loja da burra; de verão era ao relento, debaixo da figueira, defronte da casa.
Foi assim também no dia do casamento, e a mãe numa lamúria:
- Alevanta-te, filho, que se faz tarde! Não tarda nada, começam a chegar as pessoas e tu ainda nesse preparo… Valha-te Deus, que nem num dia destes tens tino!
E o ti Jaquim, o pai, a clamar:
- Rais parta tal pringueiro que tanto gosta da cama! Quero ver como é que vai governar a mulher e os filhos, se tiver porte para fazer algum!
Mas ele queria lá saber… Continuou a dormir, de papo para ar, que, ainda pra mais, a véspera tinha sido comprida, nas vendas da Vila.
Já os convidados estavam a chegar quando se pôs a pé. Lavou-se à pressa, vestiu o fato novo e, com o chapéu na cabeça e as botas penduradas ao ombro, pôs-se à frente do cortejo, serra acima. Não eram muitos; só a família mais chegada, e quase tudo só homens e canalha pequena, que as mulheres ficaram em casa a fazer o comer.
Ainda era uma esticada, do Rabaçal ao Casal da Serra, por isso tiveram que alargar o passo. A seguir ainda tinham que fazer quase outro tanto, até à Vila.
Chegaram estafados e na esperança que em casa da noiva lhes dessem qualquer coisa para meter na boca; mas não. Mal deu por eles, veio de lá a mãe da rapariga, tão danada que até parecia que havia de os comer a todos:
- Só agora é que lá vindes, almas do diabo? A cachopa aqui farta de esperar, toda inquietada, que até lhe ia dando uma coisa!
- Atão o que é que quer, o caminho é longe! Chame-a lá, que a gente tem pressa.
- Onde é que ela já vai, a estas horas! Estava farta de esperar e foi andando com o pai e os padrinhos, para adiantar caminho. Inde depressa se os quereis agarrar.
Bem correram, mas já só os alcançaram ao pé de S. Sebastião, que tinham parado para se calçarem e compor a roupa. E ele enfiou também as botas e compôs o chapéu. Quando chegaram à igreja, já o senhor vigário estava à espera, com umas beiças que chegavam à porta da rua. Mas foi um alívio quando ela lhe ouviu o sim, de boca cheia, e pôde finalmente sentir-se uma mulher casada. Era o que mais queria da vida: ter um homem que lhe desse um ranchinho de filhos, como a mãe dela tinha tido.
Depois do casamento, tornaram para o Rabaçal, onde era a boda. A mesa estava posta debaixo da figueira, mas só tinha lugar para os homens; mulheres, só as madrinhas e as avós mais velhas, que as outras tinham que servir o comer. Os cachopitos sentaram-se no chão e nas escadas do balcão da casa, com o prato, de cobulo, ao colo. Foi canja de galinha, arroz no forno e borrego guisado com batatas. Doces, os do costume, à descrição. Tudo feito a meias, menos o vinho, que esse foi o pai da noiva que teve muito gosto em o dar todo. Boa pinga!
Quando se levantaram da mesa, já era quase noite. Bem comidos e bebidos, cada um foi à sua vida. Os noivos também abalaram. Tinham arranjado uma casita mais abaixo, à roda do caminho da Senhora da Orada. Quando os viu partir, o ti Jaquim ainda suspirou para a mulher:
- O que é que vai ser da vida deste desgraçado, se ele não tomar rumo...
E ela:
- E quem é que o há de tirar da cama, de manhã, para tomar conta ao menos duma hortinha e fazer alguma jorna?
Ao outro dia, bem cedo, o ti Jaquim levantou-se, porque era dia de despejar a presa que tinha nas Quintas. A casa do filho ficava-lhe em caminho. Quando chegou perto, nem queria acreditar: o seu Francisco já estava a traçar um molho de mato.
- É para a cama dum bacorinho, que ainda hoje hemos de ir buscar ao Fundão; eu mais minha Maria. Ainda se há de fazer até ao inverno. E também quero uma cabra, que precisamos de leite para o cachopinho que aí vem…  
Não disse nada, o ti Jaquim, mas, enquanto regava o milho, não lhe saía da ideia o que tinha visto e ouvido. Olhou para cima e benzeu-se. Era uma graça ter um filho assim, capaz de fazer pela vida!


M. L. Ferreira