Toda a vida foi um castigo para o tirar da cama. Cama
é como quem diz, que para falar verdade, era uma faixa de palha, numa tarimba,
na loja da burra; de verão era ao relento, debaixo da figueira, defronte da
casa.
Foi assim também no dia do casamento, e a mãe numa
lamúria:
- Alevanta-te, filho, que se faz tarde! Não tarda nada,
começam a chegar as pessoas e tu ainda nesse preparo… Valha-te Deus, que nem
num dia destes tens tino!
E o ti Jaquim, o pai, a clamar:
- Rais parta tal pringueiro que tanto gosta da cama!
Quero ver como é que vai governar a mulher e os filhos, se tiver porte para
fazer algum!
Mas ele queria lá saber… Continuou a dormir, de papo
para ar, que, ainda pra mais, a véspera tinha sido comprida, nas vendas da
Vila.
Já os convidados estavam a chegar quando se pôs a pé.
Lavou-se à pressa, vestiu o fato novo e, com o chapéu na cabeça e as botas
penduradas ao ombro, pôs-se à frente do cortejo, serra acima. Não eram muitos;
só a família mais chegada, e quase tudo só homens e canalha pequena, que as
mulheres ficaram em casa a fazer o comer.
Ainda era uma esticada, do Rabaçal ao Casal da Serra,
por isso tiveram que alargar o passo. A seguir ainda tinham que fazer quase
outro tanto, até à Vila.
Chegaram estafados e na esperança que em casa da noiva
lhes dessem qualquer coisa para meter na boca; mas não. Mal deu por eles, veio
de lá a mãe da rapariga, tão danada que até parecia que havia de os comer a
todos:
- Só agora é que lá vindes, almas do diabo? A cachopa
aqui farta de esperar, toda inquietada, que até lhe ia dando uma coisa!
- Atão o que é que quer, o caminho é longe! Chame-a
lá, que a gente tem pressa.
- Onde é que ela já vai, a estas horas! Estava farta
de esperar e foi andando com o pai e os padrinhos, para adiantar caminho. Inde
depressa se os quereis agarrar.
Bem correram, mas já só os alcançaram ao pé de S.
Sebastião, que tinham parado para se calçarem e compor a roupa. E ele enfiou
também as botas e compôs o chapéu. Quando chegaram à igreja, já o senhor
vigário estava à espera, com umas beiças que chegavam à porta da rua. Mas foi
um alívio quando ela lhe ouviu o sim, de boca cheia, e pôde finalmente
sentir-se uma mulher casada. Era o que mais queria da vida: ter um homem que
lhe desse um ranchinho de filhos, como a mãe dela tinha tido.
Depois do casamento, tornaram para o Rabaçal, onde era
a boda. A mesa estava posta debaixo da figueira, mas só tinha lugar para os
homens; mulheres, só as madrinhas e as avós mais velhas, que as outras tinham
que servir o comer. Os cachopitos sentaram-se no chão e nas escadas do balcão da
casa, com o prato, de cobulo, ao colo. Foi canja de galinha, arroz no forno e
borrego guisado com batatas. Doces, os do costume, à descrição. Tudo feito a
meias, menos o vinho, que esse foi o pai da noiva que teve muito gosto em o dar
todo. Boa pinga!
Quando se levantaram da mesa, já era quase noite. Bem
comidos e bebidos, cada um foi à sua vida. Os noivos também abalaram. Tinham arranjado
uma casita mais abaixo, à roda do caminho da Senhora da Orada. Quando os viu
partir, o ti Jaquim ainda suspirou para a mulher:
- O que é que vai ser da vida deste desgraçado, se ele
não tomar rumo...
E ela:
- E quem é que o há de tirar da cama, de manhã, para
tomar conta ao menos duma hortinha e fazer alguma jorna?
Ao outro dia, bem cedo, o ti Jaquim levantou-se,
porque era dia de despejar a presa que tinha nas Quintas. A casa do filho
ficava-lhe em caminho. Quando chegou perto, nem queria acreditar: o seu
Francisco já estava a traçar um molho de mato.
- É para a cama dum bacorinho, que ainda hoje hemos de
ir buscar ao Fundão; eu mais minha Maria. Ainda se há de fazer até ao inverno.
E também quero uma cabra, que precisamos de leite para o cachopinho que aí vem…
Não disse nada, o ti Jaquim, mas, enquanto regava o
milho, não lhe saía da ideia o que tinha visto e ouvido. Olhou para cima e
benzeu-se. Era uma graça ter um filho assim, capaz de fazer pela vida!
M.
L. Ferreira