A lenda da Senhora da Orada foi contada a Frei Agostinho de Santa Maria, pelo ermitão da capela, antes de 1711, data em que a publicou na obra Santuário Mariano. Publiquei-a nos Enxidros, em 2009, nas palavras do Ti Joaquim Teodoro. Ele não leu o Santuário Mariano, nem Portugal Antigo e Moderno, onde Pinho Leal repetiu a versão escrita por Frei Agostinho. O Ti Joaquim Teodoro sabia-a por ouvir contar, chegou-lhe de boca em boca, contada durante centenas de anos.
A lenda que se segue é uma versão semelhante. Foi escrita, certamente, por um membro da família Robles, pois foi esta família que a deu ao GEGA.
Talvez tenha sido José Ribeiro Robles, o avô de Robles Monteiro, um homem de letras que desempenhava o cargo de escrivão da Câmara Municipal de São Vicente da Beira, em 1854.
O texto foi actualizado, na ortografia e na pontuação, para facilitar a leitura.
A Senhora da Orada, na romaria deste ano.
Foto da Sara Varanda.
Aninha-se ainda, nos corações piedosos destes povos, a crença tradicional de um invocado milagre que deu origem à edificação da capela, em que se venera a imagem de Nossa Senhora d´Orada. Remontando ao penúltimo século, o sítio em que se acha a ermida era um deserto. Por vegetação o mato, por habitantes o javali.
A natureza mostrava-se ali em toda a sua fereza.
No recôncavo dos vales mal se descobria a corrente de um regato que, também coberto pela ramagem dos agrestes arbustos, não suavizava a vista, nem amenizava a paisagem.
Por este tempo, um piedoso asceta, querendo empregar todos os seus dias na oração e na penitência, foi escolher para a sua habitação um sítio próximo dali. Edificou uma cabana, sustentando-se dos magros legumes que por suas mãos cultivava. Vivia simplesmente para Deus. Era um justo.
Uma tarde, quando o sol se ia sumindo no curto horizonte e o feliz anacoreta sentado em umas pedras admirava este prodígio da natureza e a Majestade Divina, viu que se lhe aproximava uma mulher, jovem ainda, mas vestida em desalinho, com o rosto turbado de angústia e sofrimento, que manifestava pelas suas lágrimas.
Chegada ao pé do padre, ajoelhou. Contou-lhe quais as suas dores, as tentações e os desesperos a que estava sujeita. Cria-se arguida, caluniada e expulsa da casa paterna por ter uma moléstia que não conhecia, mas de que a sua pureza a não acusava.
O som da sua voz e a expressão da sua pessoa tinham o quer que fosse de superior que, sem dúvida, tocavam a alma do padre.
“Ide minha irmã. Amanhã de manhã hei-de dizer missa e nela pedirei à Virgem a vossa cura. Nessa ocasião dar-vos-ei o pão eucarístico. Orai e tende fé.
Retirou-se a triste e o padre dirigiu os olhos para o céu.
Quando, porém, as brumas da noite vieram despertar o asceta da sua oração e convidá-lo ao repouso, no seu humilde tugúrio, ainda a desventurada vagueava por aquela solidão.
Cheia de fadiga, extenuada, com uma sede abrasadora, tentou dirigir-se a um regato que ouvia correr no vale. Mas, faltando-lhe de todo as forças, encostou-se ao fundo de um rochedo, elevou uma prece ao Altíssimo e adormeceu.
Quando, na manhã seguinte, o cemobito se preparava para ir à povoação cumprir a sua promessa, apareceu-lhe ela, não já como na véspera, lacrimosa e triste, mas radiante de alegria e juventude, como que aureolada de uma inspiração divinal.
O seu corpo já se não descompunha em monstruosas formas. Melgada, aprumada e linda, parecia desafiar, com a sua formosura, todas as belezas do universo.
O padre, estático, ouviu-lhe a seguinte narração:
“Mal pensava eu, quando ainda ontem ouvia as vossas palavras de conforto e de esperança, que tão depressa a Virgem se amenceasse de mim. Sim, meu padre, porque a Virgem salvou-me. Vi-a no meu sonho, além...”
“Além?”
“Sim, ao fundo daquele rochedo aonde caí desfalecida. Depois de ter vagueado pelo mato, sentindo-me opressa por uma dor imensa e com uma sede abrasadora, tentei descer ao ribeiro para refrescar o peito. Mas não pude. A dor e o cansaço prostraram-me ao fundo do rochedo. Julguei-me perdida para sempre. Parecia-me que ia morrer. Pedi então a Deus a sua Misericórdia, entreguei-me nos braços da Virgem, supliquei-lhe perdão para meus pais e adormeci.
No meu letargo, pareceu-me que estava no Céu. Vi a Virgem dourada como tantas vezes a tenho visto no altar, mas tinha vida e movimento. Eu quis beijar-lhe os pés e Ela sorriu-se. Tentei falar-lhe, mas não pude mais do que chorar. Chorei, chorei muito, e só quando aquele astro luminoso já dourava as cumeadas destas montanhas é que eu despertei.
Parecia-me que já não sofria. A meus pés deslizava uma límpida corrente. Sobre o rochedo, nos arbustos e em torno de mim, miríades de passarinhos gorjeavam alegremente. A natureza, ainda ontem tão sombria, aparecia-me hoje risonha e cheia de encantos.
Estou salva. Salva, meu padre, pelas vossas orações.”
“Não, pela vossa fé.”
Foi um dia festivo na povoação.
A nova espalhou-se rapidamente, como que por encanto, e parecia que os montes, as correntes, os arvoredos e as florinhas simples dos campos compartilhavam da alegria de todos os corações.
A expensas da família da venturosa menina, foi edificada uma capela, próximo da fonte até então desconhecida, sob a invocação de Senhora d´Orada, aonde ainda hoje se venera, recebendo uma constante peregrinação de devotos.
O padre que ali vivia, no sítio denominado Casal do Clérigo, tornou-se o verdadeiro eremita, passando para a casa que edificou próximo da capela.