Após quase uma semana de ameaças, finalmente começou a chover, hoje, depois do almoço. Confesso que já tinha saudades de ver a chuva cair! Os próximos dias prometem mais.
Bendito 25 de Abril.
Estava para colocar aqui os "Índios da meia praia", do Zeca, canção que vem na linha da publicação de ontem (fazermos as coisas, sem esperarmos que as façam por nós), mas o Google mudou a configuração do blogue e ainda não consegui colocar um vídeo.
Vão vocês ao Youtube e encham a barriga: José Afonso, Fausto, José Mario Branco, Sérgio Godinho, Adriano Correia de Oliveria...
Há por lá muita coisas velhinha (1974/75) que vos vai surpreender!
Enxidros era a antiga designação do espaço baldio da encosta da Gardunha acima da vila de São Vicente da Beira. A viver aqui ou lá longe, todos continuamos presos a este chão pelo cordão umbilical. Dos Enxidros é um espaço de divulgação das coisas da nossa freguesia. Visitem-nos e enviem a vossa colaboração para teodoroprata@gmail.com
quarta-feira, 25 de abril de 2012
terça-feira, 24 de abril de 2012
25 de Abril: generosidade, criatividade...
Amanhã comemora-se o 25 de Abril e nada melhor do que recordá-lo com este texto do Daniel Oliveira, publicado no Expresso on-line. A experiência da Escola da Fontinha tinha muito do que foi ou queríamos que tivesse sido o 25 de Abril.
Escola da Fontinha: just do it
Daniel Oliveira(www.expresso.pt) 8:00 Terça feira, 24 de abril de 2012
A Escola da Fontinha era um edifício abandonado durante cinco anos, usado por toxicodependentes. Como é num bairro pobre, nunca Rui Rio se preocupou com isso. Um dia, um grupo de cidadãos resolveu fazer o que a Câmara não fazia: dar um uso àquele espaço. Arranjaram, limparam, pintaram. E durante um ano aquele edifício abandonado foi usado pela comunidade: atividades culturais, acompanhamento escolar para os miúdos, aulas. As pessoas que ali trabalharam faziam-no de graça. E isso Rui Rio nunca entenderá. Muito menos a ideia de um grupo de cidadãos se juntar, na "sua" cidade, sem a sua superior autorização, para fazer alguma coisa pelos outros. Muito menos para desenvolver qualquer tipo de atividade cultural que não passe pelo seu crivo provinciano. Rui Rio matou a vida cultural do Porto, transformando uma das mais vibrantes cidades portuguesas numa pequena cidade de província. Porquê? Porque Rui Rio é um verdadeiro autoritário. Abomina a liberdade dos outros, a criatividade dos outros, a opinião dos outros.
Mas a Escola da Fontinha carregava outro perigo: ao usarem uma ruína da incúria do poder local para fazerem qualquer coisa de útil para os outros, coisa que todos os vizinhos agradecem e aplaudem, aquelas pessoas exibiam, sem terem de abrir a boca, a negligência do presidente da Câmara. E passavam uma mensagem que Rio não aguenta: se quem te governa não cumpre, faz tu. Muito menos quando quem o faz não procura o lucro. O despejo violento de gente que usa um espaço abandonado, ao qual o Estado se recusa a dar uso, para ajudar a comunidade, é um excelente retrato da cultura política e cívica, o poder do Estado português. Não serve para servir a comunidade. Serve para impor a vontade do governante. E para exibir o seu poder, não se importa de deixar um edifício emparedado no lugar onde alguém fazia alguma coisa de útil.
O gesto autoritário do presidente da Câmara, injustificável aos olhos de qualquer pessoa com o mínimo de sentido cívico, faz todo o sentido: não é Rui Rio que serve o Estado para este servir os cidadãos. É o Estado que serve Rui Rio para os cidadãos se vergarem ao seu poder. Querem saber porque somos um país atrasado e subdesenvolvido? Porque admiramos a autoridade de homens como Rui Rio.
Como se a força bruta fosse a única forma de poder que entendemos.
Do meu lado, aqueles que fizeram a Escola da Fontinha só podem merecer o respeito, admiração e solidariedade. Eles são, com a sua vontade e generosidade, quem pode fazer deste país uma sociedade decente. Rio, na sua soberba autoritária, é apenas um reflexo da estupidez arrogante do poder que nos atrasa há séculos. E não encontro melhor data para escrever este artigo do que o dia 24 de abril.
Escola da Fontinha: just do it
Daniel Oliveira(www.expresso.pt) 8:00 Terça feira, 24 de abril de 2012
A Escola da Fontinha era um edifício abandonado durante cinco anos, usado por toxicodependentes. Como é num bairro pobre, nunca Rui Rio se preocupou com isso. Um dia, um grupo de cidadãos resolveu fazer o que a Câmara não fazia: dar um uso àquele espaço. Arranjaram, limparam, pintaram. E durante um ano aquele edifício abandonado foi usado pela comunidade: atividades culturais, acompanhamento escolar para os miúdos, aulas. As pessoas que ali trabalharam faziam-no de graça. E isso Rui Rio nunca entenderá. Muito menos a ideia de um grupo de cidadãos se juntar, na "sua" cidade, sem a sua superior autorização, para fazer alguma coisa pelos outros. Muito menos para desenvolver qualquer tipo de atividade cultural que não passe pelo seu crivo provinciano. Rui Rio matou a vida cultural do Porto, transformando uma das mais vibrantes cidades portuguesas numa pequena cidade de província. Porquê? Porque Rui Rio é um verdadeiro autoritário. Abomina a liberdade dos outros, a criatividade dos outros, a opinião dos outros.
Mas a Escola da Fontinha carregava outro perigo: ao usarem uma ruína da incúria do poder local para fazerem qualquer coisa de útil para os outros, coisa que todos os vizinhos agradecem e aplaudem, aquelas pessoas exibiam, sem terem de abrir a boca, a negligência do presidente da Câmara. E passavam uma mensagem que Rio não aguenta: se quem te governa não cumpre, faz tu. Muito menos quando quem o faz não procura o lucro. O despejo violento de gente que usa um espaço abandonado, ao qual o Estado se recusa a dar uso, para ajudar a comunidade, é um excelente retrato da cultura política e cívica, o poder do Estado português. Não serve para servir a comunidade. Serve para impor a vontade do governante. E para exibir o seu poder, não se importa de deixar um edifício emparedado no lugar onde alguém fazia alguma coisa de útil.
O gesto autoritário do presidente da Câmara, injustificável aos olhos de qualquer pessoa com o mínimo de sentido cívico, faz todo o sentido: não é Rui Rio que serve o Estado para este servir os cidadãos. É o Estado que serve Rui Rio para os cidadãos se vergarem ao seu poder. Querem saber porque somos um país atrasado e subdesenvolvido? Porque admiramos a autoridade de homens como Rui Rio.
Como se a força bruta fosse a única forma de poder que entendemos.
Do meu lado, aqueles que fizeram a Escola da Fontinha só podem merecer o respeito, admiração e solidariedade. Eles são, com a sua vontade e generosidade, quem pode fazer deste país uma sociedade decente. Rio, na sua soberba autoritária, é apenas um reflexo da estupidez arrogante do poder que nos atrasa há séculos. E não encontro melhor data para escrever este artigo do que o dia 24 de abril.
domingo, 22 de abril de 2012
História da minha avozinha
Ernesto Hipólito
A minha avó Maria do Carmo contava-me histórias, para eu adormecer.
Andando na serra lavrando com os bois
Notícia me veio que o meu pai era morto e minha mãe por nascer.
Eu logo vi que isto não podia ser
Agarrei nos bois às costas, dei-lhes o arado a beber.
Subi por uma rua abaixo e encontrei uma aboboreira carregada de maçãs
Fui-me a ela e colhi romãs.
Eis que chega o dono e diz-me:
Ó homem de faval alheio
Quem o manda colher os meus pepinos?
Atirei-lhe com uma nêspera ao pescoço que lhe fiz deitar sangue dum tornozelo.
Nota:
Este texto foi escrito ao abrigo do acordo ortográfico celebrado em 1958 entre mim e o saudoso Professor Artur Eugénio Couto a quem presto as minhas homenagens.
A minha avó Maria do Carmo contava-me histórias, para eu adormecer.
Andando na serra lavrando com os bois
Notícia me veio que o meu pai era morto e minha mãe por nascer.
Eu logo vi que isto não podia ser
Agarrei nos bois às costas, dei-lhes o arado a beber.
Subi por uma rua abaixo e encontrei uma aboboreira carregada de maçãs
Fui-me a ela e colhi romãs.
Eis que chega o dono e diz-me:
Ó homem de faval alheio
Quem o manda colher os meus pepinos?
Atirei-lhe com uma nêspera ao pescoço que lhe fiz deitar sangue dum tornozelo.
Nota:
Este texto foi escrito ao abrigo do acordo ortográfico celebrado em 1958 entre mim e o saudoso Professor Artur Eugénio Couto a quem presto as minhas homenagens.
sexta-feira, 20 de abril de 2012
O nosso falar: pringuero, bacalhoeiro...
Eu aqui poupadinho, a economizar na lista de palavras que vou relembrando e estes amigos, na última publicação, gastaram-me logo uma catervada delas.
O Zé Barroso recordou-nos o Tchalim, defendido pelo irmão, que punha a cabanir a criançada mal educada. E ainda a Caruca que lhes chamava pangalunos.
O Chico Barroso disse que o Ernesto Hipólito era um grande pringuero e o Ernesto chamou-lhe bacalhoeiro.
Assim, a gastar a artilharia toda duma vez, como querem aguentar este blogue por muitos anos?
Ri à gargalhada quando o Chico me recordou a palavra pringuero (preguiçoso). Bacalhoeiro existe, mas é um barco de pesca do bacalhau, um negociante de bacalhau ou um grande apreciador do fiel amigo. O nosso bacalhoeiro é uma pessoa que conta tudo, mesmo o que é suposto ser segredo!
Mas o Chico tem razão! Eu, tal como ele, passámos pouco tempo na Vila, divididos entre o Seminário e as encostas da Gardunha. Depois partimos. Por isso, há muitas vivências da nossa comunidade que nos passaram ao lado. Ora o Zé Barroso e o Ernesto Hupólito, e muitos outros, estiveram quase sempre no coração da Vila, entre a Praça do Ernesto e a Fonte do Zé.
Um abraço para os três.
Catervada vem de caterva: uma multidão, um grande número. O sentido é o mesmo, só alongámos a palavra.
O Zé Barroso recordou-nos o Tchalim, defendido pelo irmão, que punha a cabanir a criançada mal educada. E ainda a Caruca que lhes chamava pangalunos.
O Chico Barroso disse que o Ernesto Hipólito era um grande pringuero e o Ernesto chamou-lhe bacalhoeiro.
Assim, a gastar a artilharia toda duma vez, como querem aguentar este blogue por muitos anos?
Ri à gargalhada quando o Chico me recordou a palavra pringuero (preguiçoso). Bacalhoeiro existe, mas é um barco de pesca do bacalhau, um negociante de bacalhau ou um grande apreciador do fiel amigo. O nosso bacalhoeiro é uma pessoa que conta tudo, mesmo o que é suposto ser segredo!
Mas o Chico tem razão! Eu, tal como ele, passámos pouco tempo na Vila, divididos entre o Seminário e as encostas da Gardunha. Depois partimos. Por isso, há muitas vivências da nossa comunidade que nos passaram ao lado. Ora o Zé Barroso e o Ernesto Hupólito, e muitos outros, estiveram quase sempre no coração da Vila, entre a Praça do Ernesto e a Fonte do Zé.
Um abraço para os três.
Catervada vem de caterva: uma multidão, um grande número. O sentido é o mesmo, só alongámos a palavra.
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quinta-feira, 12 de abril de 2012
O nosso falar: cabanir, pangaluno…
José Barroso
A propósito do Tchalim… a Caruca e o Muda’torre
Também eu não recordo o verdadeiro nome dele, do Tchalim (a).
Nem o nome do irmão que, com deficiência física nos pés, era um artista com as mãos, como sapateiro.
Lembro-me, sim, que este defendia o outro, o Tchalim, energicamente, contra a estupidez da canalha, que eram muitos de nós. Sim, tínhamos muitas vezes, nas nossas brincadeiras, tanto de bom e inocente como de desprezível!! Éramos muito duros com o pobre do Tchalim. As crianças, diz-se, são cruéis. Talvez porque dizem a verdade como a vêem e sentem…
E quando o Tchalim aparecia, com o seu andar trôpego de espasmos involuntários, os seus esgares, de olhar vazio, inexpressivo e a babar-se, parecia-nos algo de demoníaco. Todos nós temos um lado nobre, mas também um lado pérfido; ou, como diria o Rui Veloso, “a nossa face negra (e) nem eu, nem tu, fugimos à regra”. É preciso controlar este lado mau. Mas…eis, pois, muitas vezes, quando a desgraça bate à porta de alguém, vem ao de cima a nossa faceta hedionda: “Se Deus o marcou, algum defeito lhe achou”.
Em vez de sermos afáveis, procurando compreender o mal e a dor dos outros, como no caso do Tchalim, acirrávamo-nos ainda mais e atirávamos, sem dó:
- Tchalim, tchalota, abre o cu e fetcha (b) a porta!!
Mas se o irmão ouvia, vinha a terreiro defendê-lo:
- Andem cá que vos coço, corja de malandros!! Ponham-se daqui a cabanir (c) !!!
Fugíamos a sete pés! Não que o pobre do homem, com as suas dificuldades de locomoção, pudesse fosse o que fosse contra nós, que éramos ágeis no correr, mas porque (sempre) se tratava de um adulto e, sobretudo, porque estávamos cientes do mal que fazíamos.
E isto não se passava só com o Tchalim. O mesmo sucedia com outras pessoas, normalmente, as mais desprezadas ou porque tinham uma qualquer mazela ou porque eram de uma pobreza extrema. Era (e é) a comunidade de iguais, impassível, a excluir os estanhos, aqueles com os quais não se identifica, atitude que, parecendo insignificante, tantos dramas tem custado à humanidade. Por isso, quase inevitavelmente, tinha que acontecer também com a Caruca (d) (a quem também chamávamos A Que Fuma) e com o Muda’torre.
Quanto à primeira, não faço, hoje, mais uma vez, a mínima ideia do seu nome. Só sei que era uma mulherzinha muito pobre de aspecto andrajoso e que, segundo penso, vivia quase só da esmola alheia ou de pequenos expedientes. Mas, nós, a canalha, com a sua insensibilidade e crueza, inquietávamo-la e chamávamos-lhe nomes ofensivos:
- Caruca!! Que fuma!! Caruca!!
Ela alçava o braço, fingia que apanhava uma pedrita para nos atirar e ripostava:
- Pangalunos (e)!! Caruca é a vossa mãe!! Pangalunos!!
Fugíamos ao menor gesto dela, para depois voltarmos a investir.
- Caruca!! Olha os 50 escudos!!
Foi assim a história dos 50 escudos:
Um dia soou pela vila que ela se teria apoderado indevidamente de dinheiro alheio, uma nota de 50 escudos. Talvez em casa de alguém que, incauto, lhe franqueou as portas. 50 escudos, à época, era dinheiro!!!
Tanto quanto me lembro, a Caruca terá ido ao Posto da Guarda (GNR) e lá teriam tentado que confessasse o furto, procedendo os guardas a uma pequena revista. Mas, ela, com o fito de esconder a nota, tê-la-á metido no ânus, muito bem dobradinha!!
Nunca vim a saber se o episódio do furto terá tido algum fundamento de verdade. O que, para o caso, também não interessa.
No que toca ao Muda’torre (Mudo da Torre), também nunca soube o seu verdadeiro nome. Porém, como indica o epíteto, era um homenzinho mudo, residente na Torre (Louriçal do Campo), que aparecia na vila a pedir esmola. O que, naturalmente, acontecia, com mais frequência, em épocas festivas ou aos domingos.
Um de nós (dos mais velhos) acenava-lhe com uma moeda de 5 tostões, escrevia num papel umas garatujas sem significado, fazia-lhe sinal e dizia, apontando o papel:
- Lê;
E ele, que era analfabeto e, coitado, não tinha voz, lia:
- Guaguum, guaguum, guaguum;
- Guaguum, guaguum, guaguum;
Expondo-se, humilhando-se e exibindo a sua miséria, para gáudio geral… E lá levava os 5 tostões da esmola…
Mas às vezes acabava-se-lhe a paciência ou - travessura das travessuras - negavam-se-lhe os prometidos 5 tostões e, de tanto o chatearmos, corria atrás de nós, brandindo o varapau que sempre o acompanhava, emitindo os seus sons guturais, impossíveis de entender:
- Guaguum, guaguum!!! Em tom de ameaça, como que a querer dizer qualquer coisa que sabíamos ser algo, para nós, desagradável, mas que não podíamos decifrar.
- Guaguum, guaguum!!!, com o varapau no ar!!! E fugíamos em debandada para, em seguida, voltarmos à carga!
Tenho imensas saudades de ti, Tchalim, de ti, Caruca e de ti, Muda’torre !! Oh ! Se tenho!!!
(Escrevo com ortografia anterior ao actual Acordo).
Notas:
(a) Tchalim: Julgo que o termo procura interpretar o tremelicar constante daquele homem, por causa da sua doença, uma disfunção neuro-motora.
(b) Fetcha: fecha; do verbo fechar.
(c) Pôr-se a cabanir: pôr-se a andar; afastar-se de certo local; não encontrei sinónimo nos dicionários.
(d) Caruca: tenho a noção que esta palavra é o mesmo que “velha”, “caduca”; mas não a encontrei nos dicionários on line com este significado;
(e) Pangaluno: trata-se de um termo ainda hoje usado que, localmente, significará qualquer coisa como “valdevinos” ou “vagabundo”; não encontrei sinónimo nos dicionários portugueses.
A propósito do Tchalim… a Caruca e o Muda’torre
Também eu não recordo o verdadeiro nome dele, do Tchalim (a).
Nem o nome do irmão que, com deficiência física nos pés, era um artista com as mãos, como sapateiro.
Lembro-me, sim, que este defendia o outro, o Tchalim, energicamente, contra a estupidez da canalha, que eram muitos de nós. Sim, tínhamos muitas vezes, nas nossas brincadeiras, tanto de bom e inocente como de desprezível!! Éramos muito duros com o pobre do Tchalim. As crianças, diz-se, são cruéis. Talvez porque dizem a verdade como a vêem e sentem…
E quando o Tchalim aparecia, com o seu andar trôpego de espasmos involuntários, os seus esgares, de olhar vazio, inexpressivo e a babar-se, parecia-nos algo de demoníaco. Todos nós temos um lado nobre, mas também um lado pérfido; ou, como diria o Rui Veloso, “a nossa face negra (e) nem eu, nem tu, fugimos à regra”. É preciso controlar este lado mau. Mas…eis, pois, muitas vezes, quando a desgraça bate à porta de alguém, vem ao de cima a nossa faceta hedionda: “Se Deus o marcou, algum defeito lhe achou”.
Em vez de sermos afáveis, procurando compreender o mal e a dor dos outros, como no caso do Tchalim, acirrávamo-nos ainda mais e atirávamos, sem dó:
- Tchalim, tchalota, abre o cu e fetcha (b) a porta!!
Mas se o irmão ouvia, vinha a terreiro defendê-lo:
- Andem cá que vos coço, corja de malandros!! Ponham-se daqui a cabanir (c) !!!
Fugíamos a sete pés! Não que o pobre do homem, com as suas dificuldades de locomoção, pudesse fosse o que fosse contra nós, que éramos ágeis no correr, mas porque (sempre) se tratava de um adulto e, sobretudo, porque estávamos cientes do mal que fazíamos.
E isto não se passava só com o Tchalim. O mesmo sucedia com outras pessoas, normalmente, as mais desprezadas ou porque tinham uma qualquer mazela ou porque eram de uma pobreza extrema. Era (e é) a comunidade de iguais, impassível, a excluir os estanhos, aqueles com os quais não se identifica, atitude que, parecendo insignificante, tantos dramas tem custado à humanidade. Por isso, quase inevitavelmente, tinha que acontecer também com a Caruca (d) (a quem também chamávamos A Que Fuma) e com o Muda’torre.
Quanto à primeira, não faço, hoje, mais uma vez, a mínima ideia do seu nome. Só sei que era uma mulherzinha muito pobre de aspecto andrajoso e que, segundo penso, vivia quase só da esmola alheia ou de pequenos expedientes. Mas, nós, a canalha, com a sua insensibilidade e crueza, inquietávamo-la e chamávamos-lhe nomes ofensivos:
- Caruca!! Que fuma!! Caruca!!
Ela alçava o braço, fingia que apanhava uma pedrita para nos atirar e ripostava:
- Pangalunos (e)!! Caruca é a vossa mãe!! Pangalunos!!
Fugíamos ao menor gesto dela, para depois voltarmos a investir.
- Caruca!! Olha os 50 escudos!!
Foi assim a história dos 50 escudos:
Um dia soou pela vila que ela se teria apoderado indevidamente de dinheiro alheio, uma nota de 50 escudos. Talvez em casa de alguém que, incauto, lhe franqueou as portas. 50 escudos, à época, era dinheiro!!!
Tanto quanto me lembro, a Caruca terá ido ao Posto da Guarda (GNR) e lá teriam tentado que confessasse o furto, procedendo os guardas a uma pequena revista. Mas, ela, com o fito de esconder a nota, tê-la-á metido no ânus, muito bem dobradinha!!
Nunca vim a saber se o episódio do furto terá tido algum fundamento de verdade. O que, para o caso, também não interessa.
No que toca ao Muda’torre (Mudo da Torre), também nunca soube o seu verdadeiro nome. Porém, como indica o epíteto, era um homenzinho mudo, residente na Torre (Louriçal do Campo), que aparecia na vila a pedir esmola. O que, naturalmente, acontecia, com mais frequência, em épocas festivas ou aos domingos.
Um de nós (dos mais velhos) acenava-lhe com uma moeda de 5 tostões, escrevia num papel umas garatujas sem significado, fazia-lhe sinal e dizia, apontando o papel:
- Lê;
E ele, que era analfabeto e, coitado, não tinha voz, lia:
- Guaguum, guaguum, guaguum;
- Guaguum, guaguum, guaguum;
Expondo-se, humilhando-se e exibindo a sua miséria, para gáudio geral… E lá levava os 5 tostões da esmola…
Mas às vezes acabava-se-lhe a paciência ou - travessura das travessuras - negavam-se-lhe os prometidos 5 tostões e, de tanto o chatearmos, corria atrás de nós, brandindo o varapau que sempre o acompanhava, emitindo os seus sons guturais, impossíveis de entender:
- Guaguum, guaguum!!! Em tom de ameaça, como que a querer dizer qualquer coisa que sabíamos ser algo, para nós, desagradável, mas que não podíamos decifrar.
- Guaguum, guaguum!!!, com o varapau no ar!!! E fugíamos em debandada para, em seguida, voltarmos à carga!
Tenho imensas saudades de ti, Tchalim, de ti, Caruca e de ti, Muda’torre !! Oh ! Se tenho!!!
(Escrevo com ortografia anterior ao actual Acordo).
Notas:
(a) Tchalim: Julgo que o termo procura interpretar o tremelicar constante daquele homem, por causa da sua doença, uma disfunção neuro-motora.
(b) Fetcha: fecha; do verbo fechar.
(c) Pôr-se a cabanir: pôr-se a andar; afastar-se de certo local; não encontrei sinónimo nos dicionários.
(d) Caruca: tenho a noção que esta palavra é o mesmo que “velha”, “caduca”; mas não a encontrei nos dicionários on line com este significado;
(e) Pangaluno: trata-se de um termo ainda hoje usado que, localmente, significará qualquer coisa como “valdevinos” ou “vagabundo”; não encontrei sinónimo nos dicionários portugueses.
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segunda-feira, 9 de abril de 2012
Boas Festas
Boas Festas, no Salvador, concelho de Penamacor, em meados do século passado.
Andava-se de casa em casa, o Vigário, o sacristão e o rapaz da campainha, com o Senhor, mais os amigos, os vizinhos e a criançada da zona. Havia uma mesa repleta de amêndoas, doces e tremoços. Ao centro, as flores da Primavera. E vinho, raramente aceite, para matar a sede ao senhor Vigário, e umas moedas ou uma nota, como paga do serviço.
Antes, horas e horas a alindar a casa. Uma vez por ano, cada família abria-se à comunidade e ninguém queria fazer má figura.
As Boas Festas eram domingo, na Vila, segunda-feira, no Caldeira e na Tapada, domingo de Santa Bárbara, no Casal da Fraga, e domingo da Senhora da Orada, nas Quintas. Elas eram a festa da partilha, o único momento em que o Senhor visitava as pessoas, na sua casa, “obrigadas” que estavam a deslocar-se todo o ano a casa d´Ele.
O desaparecimento das Boas Festas foi um sinal dos tempos, nos anos 70: a pouca higiene no beijar da cruz; frequentes rivalidades entre párocos e comunidades, nessa época; concentração de milhares de pessoas em cidades, onde por vezes os vizinhos nem se conhece; a maioria das pessoas terem deixado de ser católicos praticantes e proliferarem minorias de outras igrejas ou de nenhuma.
Mas, elas não terem sido retomadas pela Igreja, mesmo que reformuladas, é para mim um dos grandes mistérios da nossa Igreja Católica. Fala-se, por tudo e por nada, com muita razão, em policiamento de proximidade. Há programas que levam as autoridades policiais, assistenciais e de saúde a casa dos idosos mais isolados. Mas os pastores da Igreja prescindem, voluntariamente, de um dos momentos mais nobres de proximidade com o seu rebanho.
Notas breves:
Há meses, os padres redentoristas de Castelo Branco anunciaram, pela comunicação social, que ofereciam, diariamente, um certo número de refeições aos mais necessitados. Semanas depois, vieram protestar, nos jornais, pois nem uma pessoa aparecera para pedir ajuda. Extraordinário! Isto fez-me lembrar uma igreja da zona da Amadora, junto a uma zona residencial de emigrantes africanos, onde já fui por duas vezes e nunca vi uma única pessoa de raça negra.
Há dias, fiz uma curta visita à ti Maria dos Anjos e ela disse-me que o senhor Vigário lá estivera momentos antes. Mas uma andorinha não faz a Primavera, nem esta é uma crónica sobre a Igreja de S. Vicente da Beira. No entanto, são estas novas formas de pastoral que fazem falta à Igreja Católica!
Se acharem que não tenho nada com isso, dou-vos toda a razão. Mas estava aqui sentado ao computador, sem nada para fazer, e lembrei-me que hoje era o dia de dar as Boas Festas, na casa da minha infância. Nostalgias!
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quinta-feira, 5 de abril de 2012
De volta aos anos 40
FESTAS
E havia as festas…
Ainda posso lembrar a sensação de leveza
quando trocava vestidos de Inverno pelos da Primavera
e meias de lã pelas de renda
a brisa do fim de março me arrepiando as pernas.
Era um tempo como este
rosas e pássaros, começo de Primavera
roxos e lutos de semana Santa
matracas e lanternas
visitações, casas caiadas
amêndoas coloridas
compadres, comadres, folares, pães de ló
procissões, aleluia, vinho cor de rubi.
Mas as grandes festas aconteciam no fim do Verão:
Setembro, feira na praça, tendas
pevides negras rebrilhando ao sol
no coração rubro das melancias abertas
louça de barro vidrado
pássaros de madeira martelando assas
cavalos, ouro cintilante no veludo negro
de ourives cigano.
Além da presença das cegonhas
maravilha branca
pesado vôo
hóspedes no campanário da igreja matriz.
Maiores e mais brancas do que as suas asas
somente as dos anjos da aldeia
na procissão, eu e a minha irmã entre eles
suadas, desmantelados anjos, caminhando ao compasso da banda
sobre as pedras da rua, atapetada de ramagens.
Atordoada pelos foguetes
derrubava minhas asas
escondendo-me, de cócoras
entre as pernas dos adultos, túnica arregaçada
mãos protegendo os ouvidos
pelas frestas dos olhos mal fechados
vendo fugir as canas sibilantes
assustando rebanhos no céu.
(Maria de Lourdes Hortas, Cantochão de Todavia, Gega, 2005, São Vicente da Beira)
Anjinhos atrás do Santo António, na Procissão dos Terceiros, 2011
Que sorte termos alguém que tão bem passou para os versos as nossas tradições! Neste ano sem festividades quaresmais e pascais, o poema ganha um sabor especial.
Cegonhas? Já tinham deixado de vir nos meus anos 60 e ainda não voltaram no atual repovoamento.
E o vinho cor de rubi... Numa Páscoa, o meu pai levou-me com os outros homens, eu menino, a uma adega particular, na rua Dona Úrsula. Cor e sabor carregados e leves, a um tempo, os daquele néctar. À saída, o meu pai comentou: "Bom vinho, era como carne!"
E havia as festas…
Ainda posso lembrar a sensação de leveza
quando trocava vestidos de Inverno pelos da Primavera
e meias de lã pelas de renda
a brisa do fim de março me arrepiando as pernas.
Era um tempo como este
rosas e pássaros, começo de Primavera
roxos e lutos de semana Santa
matracas e lanternas
visitações, casas caiadas
amêndoas coloridas
compadres, comadres, folares, pães de ló
procissões, aleluia, vinho cor de rubi.
Mas as grandes festas aconteciam no fim do Verão:
Setembro, feira na praça, tendas
pevides negras rebrilhando ao sol
no coração rubro das melancias abertas
louça de barro vidrado
pássaros de madeira martelando assas
cavalos, ouro cintilante no veludo negro
de ourives cigano.
Além da presença das cegonhas
maravilha branca
pesado vôo
hóspedes no campanário da igreja matriz.
Maiores e mais brancas do que as suas asas
somente as dos anjos da aldeia
na procissão, eu e a minha irmã entre eles
suadas, desmantelados anjos, caminhando ao compasso da banda
sobre as pedras da rua, atapetada de ramagens.
Atordoada pelos foguetes
derrubava minhas asas
escondendo-me, de cócoras
entre as pernas dos adultos, túnica arregaçada
mãos protegendo os ouvidos
pelas frestas dos olhos mal fechados
vendo fugir as canas sibilantes
assustando rebanhos no céu.
(Maria de Lourdes Hortas, Cantochão de Todavia, Gega, 2005, São Vicente da Beira)
Anjinhos atrás do Santo António, na Procissão dos Terceiros, 2011
Que sorte termos alguém que tão bem passou para os versos as nossas tradições! Neste ano sem festividades quaresmais e pascais, o poema ganha um sabor especial.
Cegonhas? Já tinham deixado de vir nos meus anos 60 e ainda não voltaram no atual repovoamento.
E o vinho cor de rubi... Numa Páscoa, o meu pai levou-me com os outros homens, eu menino, a uma adega particular, na rua Dona Úrsula. Cor e sabor carregados e leves, a um tempo, os daquele néctar. À saída, o meu pai comentou: "Bom vinho, era como carne!"
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