Do: Blog do Katano
Sobre a Boa Hora e a Má
Hora na tradição oral popular
Na sequência do
artigo anterior, sobre a lenda da Boa Hora e
da Má Hora, encontrei,
quase por acaso, um artigo sobre a persistência dessa bipolaridade de
adjectivação das horas na tradição popular, partindo da análise de um adágio
popular. Este artigo foi incluído no volume XX da 1ª Série da Revista Lusitana,
criada em 1887 pelo incontornável José Leite de Vasconcelos e que até 1943, foi
publicada num total de 38 volumes.
A crença popular divide as horas em boas e más.
De entre as primeiras, ocorrem-me as horas felizes, as horas de Deus e as horas bentas.
(…)
“Nasceu em boa hora” – diz-se de quem é ditoso e a sorte lhe corre bem.
“Veio a boa hora” ou “em boa hora” – a propósito, oportunamente, a tempo, no momento em que pode ser servido.
(…)
Das más horas o povo faz, entre outras, as seguintes distinções:
a) Horas minguadas : “ a desditosa nascera em hora minguada” Camilo, Mistérios de Fafe (…)
b) Horas aziagas
c) Horas do diabo
d) Horas danadas
e) Horas arrenegadas
f) Horas negras: “Uma hora, em certa noite, dezassete anos antes… hora negra essa que lhe innoitou a vida inteira.” (Camilo, Brilhantes do Brasileiro) (…)
g) Horas infelizes ou infortunadas: “Tem outros muitos agouros, em tanto que nas horas que achão serem infortunadas não querem receber dinheiro, ho que abasta quanto a cerimónias” (Damião de Góis, Crónicas de D.Manuel, parte I, cap 42).
Há a locução nascer em boa (ou má) hora e os esconjuros populares má hora vá contigo; em má hora venhas. Em contrário destes esconjuros, diz-se: em boa hora vás; em boa hora venhas.
O povo dos campos, para saudar quem encontra pelos caminhos, tem as expressões: Vá em boa hora e vá nas horas de Deus.
De quem morreu, diz-se: chegou a sua hora (isto é, a má hora) ou: tinha as horas contadas.
Às boas e às más horas se refere D. Francisco Manuel de Melo, nos Apólogos dialogais, pag 41: “… não há cousa na boca dos homens tão frequente, como em boa hora, & má hora, hide com as horas más, vinde com as boas horas; huma hora muito fermosa, nas horas de Deus “.
Em vez de boa hora e má hora também se diz: nas boas horas e nas más horas.
Há ainda as horas abertas, que são três momentos da maior atenção popular: as “Avé-Marias” da manhã, as do meio-dia, e as da noite, momentos que, segundo o povo, coincidem com o nascimento, a morte e o enterro do sol.
in RETALHOS DE
UM ADAGIÁRIO
(vid. REVISTA
LUSITANA, vol XX, pág. 298-315)
Loures, 9 de
Fevereiro de 1918
José Maria
Adrião
Poderá residir
aqui a/uma possível origem para a lenda. A conceptualização de Má Hora como o
momento onde ocorre a soma de todos os infortúnios, dos quais o pior é sem
dúvida a morte, e a sua persistência na tradição oral e nos aspectos da vida
diária das populações, relativamente isoladas, terá levado a que esta tenha
ganho uma forma e uma consciência próprias, tornando-se um ser, uma entidade,
que traz o infortúnio a quem a encontra.
Em contraponto,
surge a Boa Hora, como a manifestação do momento feliz que bafeja as pessoas
com sorte, que as livra do infortúnio. Será uma manifestação inevitável
decorrente da dualidade da relação entre o Bem e o Mal, onde a existência do
Mal pressupõe a existência do Bem e vice-versa? Ou será simplesmente uma
manifestação da Senhora da Boa Hora, que é venerada no politeísmo camuflado que
é o Cristianismo?
Para
consultar os 38 volumes da 1º Série da Revista Camões, podem aceder à Biblioteca
Digital Camões.
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