Os trabalhos eram poucos num mundo tão cheio. Ia-se
para onde os havia e os companheiros pediam uns pelos outros. A Covilhã era a terra
que empregava mais gente. Mas não havia transportes para o regresso de sábado ao fim da
tarde. Então os trabalhadores juntavam-se todos e iam de bicicleta. O meu pai
não tinha bicicleta, nem sabia andar, mas os trabalhos na vila continuaram a
rarear e também teve de partir. Primeiro andou à boleia do irmão João, sentado
no selim da bicicleta dele. Mas pedalar mais de 30 quilómetros, a maioria de
terra batida, com o peso de dois homens em cima…
Comprou uma bicicleta em segunda mão e foi aprender
para o campo da bola. Lembro-me bem desse sábado à tarde. Não pude ir, porque
ainda nem andava na escola. Estava bom tempo, nem calor, nem frio, seria Primavera,
com os dias já grandes. As minhas irmãs mais velhas subiram várias vezes à
figueira pingo de mel do Padre Tomás, mesmo ao lado da nossa casa, para ver se
o meu pai já sabia andar de bicicleta, mas diziam-me que só avistavam vultos a
deslizar, às voltas. O tempo não passava, a tarde não chegava ao fim. Ao fundo
do leirão também se via o alto da Devesa, mas era a mesma coisa, nunca mais acabavam
de dar voltas pelo campo.
Voltou ao anoitecer. Já sabia andar, mas deixara a
bicicleta em casa do irmão, no Casal da Fraga. Do Cimo de Vila para a Tapada seguia-se
por um carreiro íngreme, estreito e pedregoso, entre paredes de leirões. Era caminho
impróprio para bicicletas, por isso deixou-a sempre no Casal.
E no dia seguinte, domingo à tarde, partiu de
bicicleta. Um dia, muitos anos depois, perguntei-lhe como conseguira ir até à
Covilhã depois de ter aprendido a andar de bicicleta no dia anterior. Contou-me
que parou várias vezes e se deixou cair outras tantas, mas os companheiros
esperavam por ele e lá foi indo, que remédio!
O meu pai só andou na Covilhã pouco mais de um ano,
pois partiu para a França. A bicicleta vendeu-a a outro operário precisado.
Poucos anos mais tarde, também no tempo bom, começou a anoitecer e
as cabras da tia Carlota continuavam presas no leirão do fundo. Não paravam de
berrar a chamar pela dona. Fomos ver e ela não estava em casa. Ficámos
preocupados e esperámos, com as cabras sempre a berrar cada vez mais, até que se
fez totalmente escuro e uma das irmãs, a minha mãe ou a minha madrinha, as foi
meter na loja.
E alguém nos veio contar a desgraça: tio Manuel
tivera um acidente já a chegar ao Casal e tinham-no levado para o hospital
inconsciente. Quando ele e os companheiros iam a entrar na ponte do Casal do Monte do Surdo veio o
camião da resina e encheu a ponte. Os ciclistas não couberam e tiveram de se
desviar para a berma, estreita e inclinada. O meu tio saiu da estrada e caiu no
ribeiro, de cabeça.
O tio Manuel morreu. Para o funeral, eu e os meus
primos fomos lavar-nos ao ribeiro das Lajes. Passámos por lá a tarde, à procura
de um charco com água suficiente, a correr atrás das libelinhas e a tentar
apanhar freiras e alfaiates, às mãos cheias, nas pocinhas de água. No dia
seguinte, fomos à Vila. A urna saiu de casa dos pais do meu tio e foi então que
conheci o Zé, magro e de óculos, a estudar para padre.
A tia Carlota ficou triste e de luto todos os dias
do resto da sua vida e os operários que trabalhavam na Covilhã não voltaram a ir de bicicleta.
José Teodoro Prata
José Teodoro Prata