Tu e as tuas irmãs tivestes sarampo ao mesmo tempo.
Metidos na cama, cheios de febre e eu sem saber para onde me virar, a levar-vos
o comer, a tentar baixar a febre aos mais abrasados e a lavar as roupas da cama.
Estáveis todos na cama do quarto escuro, com a porta para a sala, uns deitados
para a cabeça e outros para os pés.
Depois melhorastes, mas as tuas irmãs mais novas
apanharam logo tosse convulsa. Iam morrendo, sempre a tossir, com aqueles uivos
que faziam impressão. Tinha de levar as duas ao hospital, todos os dias, para
apanharem uma injeção de um remédio que era feito da resina.
Um dia vinha pela rua acima, com a mais pequena ao
colo e a outra a chorar atrás de mim. Ela era só a pelinha e o osso, com a cara
inchada e os olhos raiados de sangue, sem forças para andar. Quando passámos,
no Cimo de Vila, em frente à casa do tio Miguel Jerónimo, estava lá a ti Jú à
janela e perguntou-me porque é que a menina ia a chorar. Eu respondi que ela
queria colo. Então a ti Jú desceu as escadas, pegou-lhe ao colo e foi-me
levá-la à Tapada. Subimos pela quelha e, quando chegámos à casa velha, já lá
vinha a ti Stela que não tinha podido ir comigo, mas que me vinha ajudar.
Tirou-me a tua irmã do colo e levou-a o resto do caminho. “Agora a senhora vai
sem nada e nós aqui carregadas”, brincou a ti Jú, que era muito reinadia. Mas eu
pensei só para mim: “Estás enganada, eu já vou a carregar com outra.” Mas
calei-me, porque nesse tempo não se falava da gravidez e tínhamos vergonha,
pois as outras diziam logo que a gente é que tinha culpa de engravidar.
Lembras-te de ir casa do teu avô, na Oriana, a buscar
folhas da figueira dos figos de picos que havia junto à estrada? Cortámos as
folhas ao meio, metemos lá dentro açúcar e depois eu cosi as duas partes, com
agulha e linha. Corria delas um líquido pegajoso que dávamos a beber às tuas
irmãs. E foste aos pinheiros colher os rebentos da medrança. Depois eram
fervidos, para desinfetar a casa. E a mesma coisa com a rama de eucalipto.
Quando elas ficaram boas, a mais velha voltou à
escola, mas chegou a casa e deitou-se na cama, de barriga para baixo, sem
falar. Agarrei nela ao colo e fui a casa do médico. Ele receitou-lhe umas
injeções. Mas eu não tinha forças para andar com ela ao colo, para cima e para
baixo, e por isso pedi ao ti António que ma deixasse ficar na casa dele, para o
Zé Craveiro lá ir a dar-lhe as injeções. Mas arrependi-me, porque o teu tio
chegava a casa para almoçar e, ao vê-la naquele estado, só lhe dava para chorar
e não comia.
Só mais tarde é que tivemos papeira, contei eu. A
Celeste era a nossa enfermeira e um dia levou-nos às castanhas, nos Carqueijais.
Havia um castanheiro lá no alto, perto do caminho, que dava umas castanhas mais
grossas. Cortámos caminho por baixo da figueira pingo de mel e depois seguimos
a corta-mato até ao caminho. Lembro-me de ir nos eucaliptos do Padre Tomás e
sentir as minhas bochechas pesadas a abanar. Mais à frente, no pinhal, ouvimos
barulho de alguém e corremos a esconder-nos, deitados ao comprido, no rego da
regadia das Lameiras. Era o senhor Bernardino com o burro, que vinha da
Barroca. Debaixo do castanheiro achámos poucas castanhas, mas deu uma para cada
um e voltámos contentes para casa.
José Teodoro Prata
José Teodoro Prata
Um comentário:
Reportando-me apenas às duas últimas histórias que publicaste sobre acontecimentos da tua infância (a atual e A magia da cidade), penso que, para além de outros aspetos interessantes, elas ilustram bem a importância do papel da mulher/mãe em todos os momentos da vida dos filhos, principalmente durante a infância. De facto, desde o suportar a vergonha solitária de mais uma gravidez, a inquietação por todas as maleitas a que os filhos estavam expostos e a responsabilidade pelo sucesso no exame da quarta classe, as nossas mães estavam sempre presentes nos momentos mais importantes das nossas vidas e, apesar das dificuldades de toda a ordem, sempre com o coração cheio de amor.
Vida difícil, a das mulheres daquele tempo, principalmente porque, para além da responsabilidade pela criação dos filhos, elas tinham ainda que ajudar o marido no sustento da família.
Entretanto muitas coisas mudaram (acho que nem todas para melhor…), mas permitiram um desempenho mais equilibrado dos papéis do homem e da mulher na família e isso trouxe ganhos para todos, principalmente para as crianças.
M. L. Ferreira
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