(Continuação…)
«Boa noite», entrou logo a dizer.
E assim que deparou com o homem:
«Temos visitas»?
«Temos», respondeu a mulher. «Esta criatura apareceu aqui encharcado, cheio de fome e de frio. Tem estado a enxugar-se. Comeu uma tigela de caldo quente com toucinho e pão e tem estado a aquecer-se para seguir jornada».
Tudo
isto fazia
parte da encenação que não fora, mas parecia ter sido
combinada.
Ainda não se sabia se o indivíduo estava ou não armado. Era preciso tato e bom senso para não deixar que ele pudesse criar perigo para qualquer dos membros da família.
«Então e você o que o traz por estas paragens, se não leva a mal o perguntar»? Disse o Ti’ Zé Maria.
«Perdi-me por esta serra».
«Com um tempo destes a perder-se na serra!... Nem os lobos por aí andam e os cães mal ladram nos casais»!
«Pois sim, mas tenho que porfiar… Vida e corpo a sustentar…»
«Homessa! E como vai o amigo»? Disse o Ti’ Zé Maria ao mesmo tempo que lhe estendia a mão para o cumprimentar.
O outro ia também a estender-lhe a mão. E é quando o dono da casa confirma aquilo que já esperava e era por demais conhecido da história que se contava acerca do Pistotira: a falta dos dedos da mão! A sua marca corporal tinha-o denunciado!
«Ah! Seu malandro!
Seu ‘filha da puta’ ! Você é mas é o Pistotira, procurado por assaltos a casas e pessoas, que inquieta há muito tempo a gente destas terras com ameaças e extorsão de bens! Então você vem aqui, alberga-se abaixo das minhas telhas, mesmo nas minhas barbas, bem sei eu se com intuito de roubar-me o que é meu e molestar a minha família? Você está preso! Preso, ouviu! Há de pagá-las agora todas juntas»!
Enquanto isto dizia, o Ti’ Zé Maria, que era um homem na força da maturidade, deitou-lhe os galfarros
aos gorgomilos, atafegou-o e imobilizou-o, para que não se socorresse de alguma faca ou arma de fogo, caso a trouxesse.
Quando viu que fora descoberto, o homem ainda esboçou alguma resistência, mas podia lá ele nada contra o Ti’ Zé Maria! É que, este, redobrou de esforço e energia. À uma, porque estava em sua casa o que lhe dava mais ânimo e confiança, que tinha para dar e vender. E, por outra, tratava-se de se safar a si próprio e à sua família daquele perigo e inconveniência!
O Ti’ Zé Gato que aquilo ouvira entrou também de rompante na cozinha para ajudar o amigo. Seguro e imobilizado o Pistotira, manietam-no pelos pulsos, por forma a não poder fazer qualquer gesto agressivo.
A intenção era metê-lo na cadeia que se situava por baixo da antiga casa da câmara, na praça, uma espécie de fortaleza de granito. Dali não fugiria!
No dia seguinte, seguiria debaixo da força de cabos de ordens, a pé, até Castelo Branco, para ser presente a tribunal. Era a oportunidade de o Pistotira ir, finalmente, enfrentar a justiça e ser condenado pelas patifarias que tinha praticado durante anos.
Se assim pensaram, melhor o fizeram. Sempre de olho nele porque apesar das mãos atadas, as pernas estavam livres e podia tentar fugir, mal se descuidassem os seus captores. Um de um lado, outro do outro e ele no meio, levaram-no até à praça.
A chuva amainara, mas percebia-se que o astro permanecia
nublado. Nenhuma estrela era visível no firmamento. A noite era breu e, como se sabe, não havia luz na via pública.
Só em frente da taberna do Ti’ João Arrebotes, à vista da pouca claridade que vinha de dentro, puderam os presentes divisar o prisioneiro e os que o traziam preso e amarrado.
Cresceu o alarido.
A notícia correu por todas as tabernas da redondeza.
Todos
os que souberam do caso, foram aparecendo, gradualmente, até
formarem um adjunto de 25 ou 30 homens. Uns mais maduros, outros na força da mediana idade e outros ainda rapazes
acima de casadoiros, feros e capazes de arremeter contra castelos!
Acercavam-se
do energúmeno, primeiramente, por curiosidade. Queriam ver de perto o vilão mas também, de algum modo, herói de aventuras. Afinal tinha sido preso
um dos homens de que tanto se falava, cuja fama de malfeitor corria pela Beira. Um dos fora da lei que
há muito se tinham assenhoreado daquelas serras.
Podiam agora tocar-lhe, que estava ali à distância de um braço. Como se só pelo toque pudessem confirmar a
existência daquela figura quase lendária que lhes parecia ter saído da fantasia
dos livros de quadradinhos.
Foi chamado o regedor que, após se inteirar do caso, confirmou a detenção.
O forasteiro dormiria no local apropriado e no dia seguinte seria levado a
Castelo Branco. O resto ficaria à responsabilidade das autoridades da comarca.
Todos
acreditavam que a situação dispensava investigação. Podia dizer-se que o caso
era público e notório e não necessitava de prova, tal a má fama de que o
indivíduo gozava em toda a riba Gardunha. Mas, se necessário, testemunhas contra
ele não faltariam.
Era
preciso metê-lo no calabouço. Veio um candeeiro. A turba iniciou a marcha com o
clamor que a circunstância deixa adivinhar e o prisioneiro no meio, atado de
mãos, em direcção ao edifício onde se situava a cadeia, no topo da praça.
Elevou-se
a gritaria, o homem sempre vigiado pelos cabos de ordens e por muitos populares.
Formavam-se grupos de indivíduos que transbordavam euforia, abraçados uns aos
outros, aos urros, que iam e vinham, dentro da roda do ajuntamento, aos avanços
e às arrecuas.
Entraram
pela porta que hoje dá acesso ao gabinete do presidente da Junta de Freguesia,
aberta para a praça velha, agora praça Dr. Hipólito Raposo. O rés do chão era amplo.
Mas havia divisão dos espaços, de acordo com as necessidades, uns destinados à
zona das detenções, outros aos serviços administrativos e outros com funções
auxiliares ou não especificadas.
Até
ali, criara-se à volta do indivíduo um halo de proteção. Uma espécie de estado
de graça generalizado entre os membros da malta, pela surpresa e curiosidade
que suscitara a sua aparição.
Mas
começaram a levantar-se, a pouco e pouco, vozes de censura. A admiração deu
lugar à chalaça, primeiro, e à provocação, depois. Desvaneceu-se a fantasia da
lenda e veio ao de cima a lembrança do desassossego provocado pelo malfeitor
nas populações, durante anos.
Dentro
da cadeia, pendurou-se o candeeiro em local adequado, suficientemente alto,
para iluminar o local, com o detido no meio do aglomerado das pessoas e o
regedor e os cabos de ordens por perto.
Circulava
entre os presentes, entusiasmados pela façanha conseguida, um cântaro de tinto
do Arrebotes, oriundo da muito ténue encosta ensolarada das Vinhas do Poço,
abaixo da Fonte da Portela, a expensas da rapaziada ali reunida.
A
certa altura da função, fosse por força da excitação do préstimo feito à
sociedade, prendendo o facínora; fosse pelos copos escorropichados desde que
anoitecera, às cinco da tarde daquele dia de inverno; e, com as veias das
frontes a latejar, as testas brunidas e o hálito vinolento, turvou-se-lhes o
espírito.
«Hás
de pagá-las agora, cão». Dizia um.
«Safado»!
Dizia outro.
«Espera-te
o degredo em África para o resto da vida»! Regougava aquele.
«Acabou-se
o teu reinado, ladrão»! Volvia ainda um outro.
Dizendo
isto, atento o currículo de torpezas do biltre, antecipavam-lha já um futuro negro,
mesmo antes de a justiça se pronunciar. E a vingança, ainda que ligeira, já
começara. Um passava por ele e dava-lhe uma lambada; outro um pontapé; outro,
ainda, empurrava-o e caçoava dele.
E
assim se viu o homem encurralado e sozinho. Salvo seja, parecia mesmo Nosso
Senhor Jesus Cristo entre os algozes. É certo que ele era culpado e pecador e
merecia castigo. Mas até na condenação um homem tem direito à dignidade.
«Ah!
Damonho! Tantas fizeste que vais acabar a espernear numa corda»!
«Chegou
o teu fim! Não voltas a ver sol nem lua»!
E
porque torna e porque deixa, levaram umas boas duas horas nesta léria, bem
regadas de tinto.
Não
tugiu. Uma palavra dele e aumentaria ainda mais a sanha da chusma.
Tanto
quanto lhe era possível e porque, até àquele dia, em todas as ocasiões se tinha
saído por cima do cadafalso que lhe haviam armado, principiou logo a pensar em
tirar partido da ineficácia daqueles cérebros toldados pela exasperação. Que
era nada menos que uma mistura feita de muita emoção e alguns meios quartilhos
de tinto do Arrebotes!
Tinha
que espreitar uma aberta para dar às de vila diogo, se não queria ir bater com
os costados na enxovia.
A
tramoia ameaçava prolongar-se noite dentro e pela madrugada fora, até à saída do
prisioneiro para Castelo Branco.
Porém,
a certa altura, não se sabe bem o que sucedeu. Se foi algum gesto feito à toa;
se terá sido alguma pancada com intenção de alguns causarem a desordem e fazer
justiça popular já ali, criando as condições de impunibilidade para os autores;
se foi por falta de combustível. Fosse lá por que razão fosse, o que se sabe é
que o candeeiro se apagou de repente e ficou tudo às escuras! Pânico!
«Aqui
d’el rei que o preso foge»! «Aqui d’el rei»! Acudam»! «Agarrem-no»! «Não o
deixem fugir»! Gritavam. E andavam feitos tarantas na escuridão, às apalpadelas,
aos encontrões uns nos outros, sem atinarem ou enxergarem o que quer que fosse.
Era
a oportunidade do Pistotira! Ele já tinha mirado uma janela que dava do
edifício da cadeia para a praça velha, situada a cerca de apenas um metro de
altura do chão, hoje serviço da Junta de Freguesia. Encontrava-se aberta. A
pequena multidão, desleixada pelo excesso de confiança da sua missão, não a
fechara.
Mal
se apagou a luz e ele se sentiu livre, afastou os vigias mais próximos com dois
encostos. A coberto daquela abençoada escuridão, deu dois saltos empurrando mais
alguns dos que inopinadamente lhe estorvavam o caminho. Que ele, como já se
referiu, era lesto de pernas e ágil de movimentos. Habituado que estava a
livrar-se de encrencas como esta, deu um pulo pela janela e estava na rua como
pássaro fora da gaiola!
Em
menos tempo do que se leva a rezar uma avé maria, afastou-se do local e pôs-se
de largo. Os do adjunto, meio a tatear, lá acenderam o candeeiro. Foi então que
puderam confirmar a falta do prisioneiro. E vieram logo para a rua onde reinava
a grande aliada do fugitivo, a treva, às apalpadelas. Ainda deram umas voltas pela
zona da praça, pensando que, com a noite que estava, ele não iria muito longo.
Mas podiam lá eles apanhá-lo com a mente que levava, incendiada pelo ânimo,
direito à liberdade.
Nunca
o apanharam. E assim acabou, que se saiba, a aventura do Pistotira por estas
serras. Teria rumado a sul, onde continuou a fazer das suas.
Uns anos depois,
no Vale de Santarém, em desavença com alguém a quem teria cobiçado os haveres,
em fuga desenfreada, caiu num poço que se lhe atravessara no caminho e que não
lobrigou, afogueado como ia a escapulir-se, mais uma vez, para não perder a
liberdade.
Terá sido a sua
derradeira aventura. Consta que ficou muito mal nessa queda e que acabou mesmo
por morrer quando a GNR quase lhe terá arrancado as orelhas ao puxá-lo do
poço.
José
Barroso