O homem que mordeu o cão
Todos
conhecemos o homem que mordeu o cão; ou julgamos conhecer. Liga-se a telefonia
de manhã e lá está ele – como se dormisse na casa de cada um.
Agora
que qualquer filho de Deus pode entrevistar um homem na Lua, como se ele
estivesse na Fonte Ferreira, a filharada acredita que o homem da Rádio
Comercial é que inventou o conceito com que se veste. Já se verá que não foi.
«É
uma forma de dizer, um supônhamos»,
na expressão do senhor Baldaque, uma vez em que se falava do Pelourinho, em frente da loja do Joaquim Boas Noites. Instado, trocou a
coisa por miúdos – «se o cão do Pinura
ferrasse as canelas da menina Emília,
isso não era notícia, era um fait divers,
quando muito, paroquial; mas, se o doutor Alves tivesse mordido o cão do Pinura ou aqui do Tónio Fiambre, isso,
sim, era uma notícia a sério, e haviam de ver o nome da nossa nos jornais e
televisões de todo o mundo!»
Era
um homem enxuto ao modo de outros tempos, opinioso, um metro-e-dez sempre cheio de razão – mais verbo que obra, tinha,
contudo, a clarividência dos visionários. Nunca soube o nome dele ao certo. Declarava
uma grande queda pela América, para onde ameaçava emigrar a qualquer momento –
«um dia, se me chateiam, ala moço, América com ele, que é a terra do futuro».
Esse dia nunca chegou. Sempre de fato castanho, com riscas cremes na vertical, colete
no Verão, em lugar do casaco, esse homem, Sebastião ou Viriato, não sei, foi
para mim, sempre, o senhor Baldaque.
Entre
nós, no grupo, tudo, gente simples, quando se fala no homem que mordeu o cão, é
no senhor Baldaque que pensamos. Não é nesse da rádio, nem mesmo no eminente bispo
que o doutor Mário de Carvalho, advogado não praticante, pôs em livro há um par
de anos. Eu explico.
Mário
de Carvalho, com mais que idade para ter uma ranchada de netos, é um conhecido
brincalhão, avezado a amassar histórias e a conceber personagens e situações
menos canónicas. Uma dessas histórias, vinda dos anos de 1990, mantendo as
qualidades que distinguem o cavalheiro – a graça, sobretudo, nas situações que
cria e na maneira de contar - reproduz, digamos, em boa prosa, a tese
baldaquiana. No caso, a jornalista Eduarda, e uma multidão de jornalistas, investigam,
em Grudemil, que é como quem diz Braga, o episódio do bispo local que mordeu um
cão. Os pormenores estão lá, na novela Era
bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto, que se lê com uma cara de
sorriso permanente, às vezes exaltada em gostosa gargalhada, um texto indicado,
digamos, para todos os dias – no dizer do próprio, uma verdadeira «crónica jocosa da vida portuguesa dos
nossos dias».
O
senhor Baldaque comentava o Pelourinho
muitas vezes. «A nossa terra, cachopos, merecia mais». As histórias que ele
contava, o entusiasmo com que o fazia – aquilo era homem, se era assim, a
falar, o que seria a escrever! Tivéssemos nós percebido, por estas bandas, a
importância da comunicação social, e teríamos dado ao mundo o jornalista que
nos faltou.
Não
raro, entravam com ele, a provocá-lo, sempre a propósito da história do cão,
como a tirar dúvidas sobre a complexidade do conceito: «então, e se o doutor
Alves, em vez de morder o cão, tivesse mordido a menina Emília, ou até uma cachopa mais nova, também era notícia?»,
perguntavam. «Tu queres mangar, companheiro!», tornava-lhes ele,
invariavelmente, sem dizer mais.
Até
um dia. Confrontado por uns tantos, ali à beira da praça, sobre a mesma
questão, foi ouvi-lo – um autêntico visionário: «Então eu explico: podia ser o
doutor Alves, mas até era melhor se fosse o bispo, irmão do padre Tomás. No dia
a seguir, eu até já estou a ver, era São Vicente por todo o lado, nas
televisões e nos jornais, até da América. Ah, raios, com a notícia do bispo que
mordeu o cão, era garantido que voltava para cá o concelho, e havia de ser
gente e mais gente para aí, da comunicação, turistas e isso». Já em jeito de
retirar-se, diz só para eu ouvir, piscando-me o olho: «Isto é como deitar
pérolas a porcos – um homem mata-se para levar o nome da nossa terra a todo o
lado; mas, dando com gente desta, parente, lá se vai o
concelho outra vez».
José Miguel
Teodoro