Era uma tradição que visava a integração dos rapazes que iam casar a terra alheia, mais do que uma manifestação da sociedade machista, que também o era.
No passado, a Libânia(?) escreveu sobre esta tradição e chegaram até mim os versos do José Lourenço sobre o tema (não me lembro como). Aproveitei as duas coisas e escrevi um texto dramático para os alunos da Universidade Sénior da nossa terra, que não chegou a ser representado. Aqui fica.
Ato 1
Três jovens amigos conversam, podem
estar de pé ou sentados num banco. Chamam-se Tó, João e Zé ou outros nomes quaisquer.
Tó (chegando junto dos amigos): Boas! (os amigos respondem) Há novidade?
João: Haver,
há, mas é velha.
Tó: Então?
Zé: Ainda há
pouco aí passou o carro do que anda atrás da Mariazinha e nós aqui com a
garganta seca.
João: Essa é
que é essa!
Tó (gabarola): E não lhe fizestes sinal para ele
parar? Se eu cá estivesse, não me escapava.
João: E no
outro dia, quando ele passou mesmo rente a nós, na fonte de Santo António,
porque é que não lhe pediste o vinho? Saíste-me cá um mija sem bolas…
Zé (a coçar a cabeça): É complicado!
Rapaz que namora em terra alheia tem de pagar o vinho! É essa a regra, aqui na
Vila e em todas as terras das redondezas. Mas como é que vamos pedir o vinho a
um homem daqueles?
Tó: Dizem
que é Capitão!
João: Era
capaz de levar a mal e mandar-nos prender!
Tó (resignado): Pois é, a rapaziada de São Vicente
não tem tomates para obrigar um Capitão da Guarda a pagar o vinho! Levam-nos as
moças e nem pinga…
José Lourenço
(é feitor de uma casa agrícola e poeta
popular; passa pelos jovens, que se destapam, tirando os chapéus ou as boinas,
e mete conversa): Então, que caras são essas, num domingo à tarde? Uns
jovens na força da vida…
Tó: Ó senhor
José Lourenço, estamos aqui com um problema e gostávamos de saber a sua
opinião.
José Lourenço:
Qual é a crise?
João: Já deve
saber que a Mariazinha, a filha do sr. Manuel da Silva, namora um rapaz que é Capitão
da GNR.
José Lourenço:
E depois, onde está o mal?
Zé: É que se
costuma pagar o vinho, quando se rouba uma moça aos rapazes de outra terra. Ele
não é de cá e por isso pertence pagar o vinho.
José Lourenço:
Já falastes com ele?
Tó: Aí é que
está o busílis da questão! Não sabe como é a Guarda? Ele pode levar a mal e
mandar-nos para o xelindró!
José Lourenço:
Não é caso para isso! Se ele fosse má pessoa, estou certo de que o Manuel da
Silva não o queria para genro.
João: Ó sr.
José Lourenço, estou cá com uma ideia que talvez resulte.
José Lourenço:
O que é que vai sair dessa cabecinha?
João: O senhor
podia fazer-nos uns versos à maneira e era pinga certa!
José Lourenço
(sorrindo): Não está mal visto, não
senhor! Lá para quinta ou sexta venham a minha casa e pode ser que eu já tenha
alguma coisa!
Tó, João e Zé
(contentes e agradecidos): Obrigado,
sr. José Lourenço, não faltaremos!
José Lourenço:
Adeus, rapazes.
Ato 2
José Lourenço
(conversando consigo próprio): Ora
vamos lá ver se desenrasco aqueles mariolas. (vai escrevendo e dizendo em voz alta). Primeiro, apresentam-se
como na tropa. Albarda-se o burro à moda do dono:
Meu capitão, dai-nos licença,
para que a rapaziada exponha
em carta, por ter vergonha,
de vir à sua presença?
Agora
têm de explicar o costume de pagar o vinho:
São costumes pertinazes,
quando um estranho aqui vem
A pedir a filha à mãe,
ter de dar vinho aos rapazes.
E,
para não falhar, puxamos pelos galões do senhor Capitão:
Por isso, meu capitão,
vede lá como há de ser.
Se esse uso tem de morrer,
que não seja em vossas mãos!
José Lourenço continua a escrever,
falando em voz baixa. Entretanto, surgem os rapazes.
José Lourenço (entregando-lhe um papel):
Aqui está o que me pediram. Penso que está garantido!
TÓ, João e Zé
(muito contentes): Muito obrigado,
sr. José Lourenço, que Deus lhe pague!
Os rapazes afastam-se e o João lê:
João:
Não deixeis de acontentar
os rapazes, por favor,
para que Deus Nosso Senhor
abençoe o vosso lar.
Tó: Muito
boa, essa foi bem metida!
João (continuando a ler):
Se formos atendidos,
como todos esperamos,
desde já nos confessamos
altamente agradecidos.
Zé: O sr. José Lourenço é um mestre!
Tó: Cuidado, não amachuques o papel!
Lavaste as mãos?
João: Eu amachuco-te
mas é as trombas. Julgas que sou algum porquinho como tu?
Zé: Calem-se
e vamos arranjar um envelope para meter os versos. Aqui o sr. Chico Tavares
deve ter.
Ato 3
Os rapazes destapam-se e entram na
mercearia do sr. Manuel da Silva. O João fala, tímido, com respeito:
João: Boa
tarde, sr. Manuel da Silva. A sua filha Mariazinha anda a namorar o sr. Capitão
da Guarda. Como é costume cá na terra, vimos pedir o vinho. Faça-nos o favor de
entregar o pedido ao sr. Capitão, quando ele cá tornar.
Manuel da Silva:
Fiquem descansados que o recado será entregue.
Tó, João e Zé:
Muito obrigado.
Os rapazes saem da mercearia e entram
pela porta interna, vindas de casa, a esposa e a filha.
Manuel da Silva: Mariazinha, os rapazes cá da terra
entregaram-me uma carta a pedir o vinho ao sr. Capitão!
Mariazinha:
Olha os atrevidos! Não preciso de autorização deles para namorar quem eu
quiser!
Manuel da Silva:
Mas é costume, filha. Os rapazes de fora devem pagar o vinho aos rapazes da
terra. É uma maneira de criar laços entre pessoas que não se conhecem.
Mariazinha:
Mas nós nem vamos ficar a viver cá. Não precisamos desses sagorros para nada!
Mãe:
Precisamos de nos dar bem com toda a gente, filha. E até fazemos muito gosto em
pagar o vinho aos rapazes da terra. Nem é preciso incomodar o teu noivo!
Manuel da Silva:
Eu concordo contigo. Vou tratar disso.
Mariazinha:
Não julguem que me importo que lhes paguem o vinho! Mas, pai, mostra-nos a
carta, quero ver o descaramento deles.
Mariazinha (o pai entrega-lhe a carta e ela
exclama, admirada): Em verso?! (Depois lê, primeiro em voz baixa e depois para a família)
Se formos atendidos,
como todos esperamos,
desde já nos confessamos
altamente agradecidos.
Mãe: Ora vês?
Muito educadinhos!
Mariazinha
(continuando):
Aí vai por comissão,
João de Deus, bom rapaz.
Se boas novas nos traz,
recebe um chi coração!
Mãe: Que
bonito! E não falta uma pitada de humor! Mariazinha, és uma rapariga de sorte.
Até pediram o vinho ao teu namorado, em verso.
Mariazinha:
O poema está muito bonito. Mas quem o terá escrito? Não é fácil escrever em
verso tão bem!
Manuel da Silva:
Isto é coisa do Zé Lourenço. Ele faz muitos versos e os rapazes costumam
pedir-lhe, pelo São João ou quando vão às sortes.
Ato 4
Os três rapazes entram a cantar e meio
tocados, com um cântaro na mão que vão dando a beber a todas as pessoas que
encontram (o público).
Tó: Vivam a
Mariazinha e o sr. Capitão!
Zé: Viva o
sr. Manuel da Silva!
João: Vivam os
versos do sr. José Lourenço!
Tó e Zé
(abraçados e levantando o cântaro no ar):
Viva o tintol do Arrebotes!
FIM
José Teodoro Prata