Alguns
membros da família diziam que Bernardo Garrancho — Garrancho era como se auto
denominava na roda de amigos, por ter um dedo torto causado por acidente de
trabalho — e a mulher, a ti’ Maria Santo, tinham tido dez filhos; outros falavam
em doze ou mesmo treze!
Talvez
uns três ou quatro, não tenham sobrevivido à idade jovem; ou hajam morrido em
criança ou, mesmo, à nascença, dadas as penosas conjunturas da gravidez ou do
parto. É já um lugar-comum dizer-se que, naquele tempo, infelizmente, era
assim!
Por
razões culturais e religiosas as mulheres antigas da vila encobriam a gravidez.
Muitas punham um xaile por cima da barriga, para disfarçar. Pouco se falava do assunto;
quase tudo era dissimulado porque era visto como pecaminoso, se comparado com o
celibato que se considerava o estado mais próximo do ideal da pureza.
Depois
de a criança nascer sã e escorreita e, após ser batizada, é que desaparecia, de
todo, a questão da sexualidade, patente na protuberância do ventre. O que,
certamente, contribuiu para que houvesse esta incerteza sobre a narrativa dos filhos
que nasciam nas famílias.
Em
todo o caso, o número exato de rebentos do casal diga-se, em abono da verdade, também
não é aqui importante. O que se sabe — e é isso que aqui interessa — é que eram
muitos! Ele e ela eram duas boas cepas, como demonstrava a evidência!
A
venerável avó Santa — assim tratada pelos netos! — no auge da vida e abençoada
da natureza, pegava no seu âmago como as silvas nos cômoros, mesmo nas mais
difíceis condições; a lembrar os tempos bíblicos dos patriarcas e sua vasta prole!
Tudo se criava!
Confiamos
todos que ela esteja em bom lugar, porque há muito que não está connosco. E que
um anjo amigo lhe possa ler, desde o paraíso, o que aqui escrevo, porque o
escrevo de boa mente, já que, na terra ela era — e, decerto, ainda é — analfabeta;
pois, no céu, não consta que haja escola…! Mas os anjos, esses, cremos nós, sempre
souberam ler, porque são imortais e participam da omnisciência de Deus!
Na
época e, pese embora todos os problemas da vida, a maior dor de cabeça — pelo
menos para quem tinha uma leira — não era a falta do pedaço de pão; a não ser
nos anos das guerras, em que havia que recorrer ao caldudo de castanhas como
base da alimentação da casa; períodos em que não se topava sequer com semente de
cultivo, mormente, de batata Arran Banner que não podia vir dos Países Baixos; e
em que as famílias enganavam a fome, semanas a fio, com sopas de ervas daninhas
— beldroegas ou saramagos apanhados nos caminhos — que balançavam nas paredes internas
dos estômagos depauperados daqueles crentes de Deus!
Tirante
tais períodos, no entanto, havia de tudo o que a terra dava! A complicação
maior, para um cidadão daqueles tempos sem cidadania, eram as moléstias
contagiosas do corpo, que quase não tinham atalhação. Daí resultou que apenas oito
dos filhos chegassem à idade adulta.
A
certa altura da vida, como era seu destino, todos estavam casados. Nenhum quis
ir para padre, freira ou militar, embora lábia para tais andamentos não lhes
faltasse. Contudo, preferiram comportar-se como pessoas comuns. Uns sujavam os
pés na terra como os progenitores; outros foram parar às minas de volfrâmio;
elas casaram com homens da terra de idêntica classe e condição que não importa agora
especificar.
Mas
sucedeu que mais um infortúnio de uma doença bateu à porta deles e lhes arrebatou,
num ápice, ainda outro filho e, logo de seguida, a nora, pais de um menino que,
a bem dizer, acabara de vir ao mundo.
Na
casa da serra, onde em tempos a grande família permanecia nos estios, restavam agora
só os dois — cabeças de geração mais antigos ainda vivos — e o neto; o qual, tinham
prometido criar, à beira do leito de morte dos ente-queridos. Cuidar dos netos
eram histórias sofridas, perdidas e não contadas nos livros, daquela gente simples!
Num
dia, como tanto outros, alvorecia ainda timidamente para os lados de nascente; a
manhã vinha limpa e branca; e a claridade ia-se elevando com o andar da terra
na sua rotação. Ambos estavam já a pé, como era hábito! Costumavam dar uma sapatada
nas mantas, logo que luzia a caleira de vidro no teto mourisco sem forro, à
telha vã! O vislumbre dessa pequena lucerna era o relógio onde tinham aprendido
a ver as horas.
A
criança dormia!
Garrancho
subiu para o degrau de cantaria de granito, bem talhado, da entrada principal e
abriu a porta que dava para o terreiro em frente da casa; encheu os pulmões de
ar fresco e revigorou. O corpo, as articulações, já se iam ressentindo dos anos,
mas a mente estava preparada e renovada para a fadiga de mais um dia!
Pegado
ao largo térreo, tinha a ti’ Maria o canteiro do cebolo, das couves, tomates,
alfaces e alhos, que tratava com desvelo. As pequenas plantas sairiam dali para
o plantio definitivo em leirões de regadio, para crescerem e amadurecerem. No
verão, era chegar lá e colher um tomate, uma alface e uma cebola, lavá-los bem lavados
na água da Mina Nova e migá-los para uma travessa; um pouco de azeite, vinagre
e sal e a salada estava pronta!
Um
regalo!
Os
dias lá em cima passavam quentes e devagar. O sol assentava na planura de Castela;
e, não conhecendo fronteiras, flagelava igualmente o chão da raia portuguesa a
que, desde a serra da Gardunha — a varrer para sul — chamavam, justamente, Beira
Alentejana. Do limite da sua propriedade, em que agora só havia mato para as
cabras — mas onde, com o rancho de filhos pequenos, já semeara pão de centeio —
podia Garrancho ver essa planície dilatada, enchendo sempre os olhos de imensa
luz!
A
serra, por si, fazia jus ao nome. A Gardunha ou Guardunha, pusera a recato, em
tempos de antanho, o guerreiro lusitano, antes de este se expor ao romano
invasor, em campo aberto; o mesmo terá acontecido nas guerras com a mourama. Conquanto
sem as investidas bélicas de outrora, a serra continua lá de guarda,
alcantilada; as pessoas é que há muito a deixaram, num irreversível fenecimento
de terras e de gentes do interior, subjugado à voracidade da vida moderna!
O
intrépido serrano continuava a ajuizar o tempo daquela manhã, com a sua experiência
de quase sessenta! Se tudo corresse como era normal, o sol ao meio-dia estaria
a pino a massacrar tudo!
—
Vem aí outra vez o diabo…! — dizia, postado à porta de casa.
Ali
ao lado, os vivos já tinham principiado a matinal gritaria. Cada um em seu sítio:
o porco na furda, a burra e as cabras nas suas lojas e, no galinheiro, as
galinhas em alvoroço a cacarejar!
—
Já vos atendo, já vos atendo…! — ruminava Garrancho.
Adivinhava-se
um calor abrasador, a desfazer, cada dia, a terra, em pó. A pô-la como a cinza do
borralho!
—
Este sol vai-me dar cabo de tudo! — disse, para si, mas sabendo que a mulher andava
nos afazeres da casa e estava a ouvi-lo. — Mal empregado pão que semeei além no
alqueve! Parte dele, levaram-no as pegas e as rolas, aquelas velhacas! E agora
esta torreira a calcinar…!
Não
chovera muito naquele ano. O pão crescera muito ralo! Do que restara, pouco se
aproveitava; a própria palha centeia não dava, sequer, para nagalhos.
—
Tomara-me a reunir a companha para ceifar e malhar, senão fico sem nada! E a
semente que cair, talvez nasça para o ano! — dizia irónico.
Ele
sabia que grão que ficasse na terra, não se perderia e criaria pasto para o
gado. A secura do solo preservava-o. Os milhões de pequenos frutos, mansos ou
bravios, potenciais de vida, tinham apenas, no momento certo, que se aproximar de
uma gota de água e cumprir o seu destino: germinar! Chegado o tempo, ainda que
sem sementeira por mão humana, desabrochavam e cobriam os campos de erva e
flores, executando fielmente os planos da natureza no próximo ciclo. Lá cantava
o poeta:
Vem o mês de agosto,
Vou dormir no prado,
Tudo lá foi posto,
Sem ferro de arado! (a)
Mas
aquela manhã adiantava-se. Ao longe, já se via a grande massa de ar
esbranquiçado da atmosfera — indiciando calor — a ondular em camadas vítreas por
efeito da refração da luz intensa. Tinham vindo em abril as últimas águas da
época, por assim dizer, regulares. E as derradeiras trovoadas desabaram,
tremendas, nos fins de maio; já lá iam dois meses de sol duro e sem chover!
No
pino da calma, não se dava por um roçar de asa. Apenas o cantar irritadiço da
cigarra, atravessava o ar a estalar da canícula. E só trazia algum conforto a
pessoas e animais, a sombra revigorante de uma árvore; ou o recolhimento, às
horas de torpor, na frescura, dentro das paredes grossas de granito da casa ou
das lojas do gado.
Antes
que aumentasse mais a temperatura, estava na hora de deitar as cabras. O Zé
Inverno, rapaz próximo de casadoiro, antes de ir para a tropa era, em certos
dias, o pastor do rebanho; sempre arranjava dinheiro branco para ombrear com os
homens, ao domingo, no balcão na taberna da Viúva! Mas o rapaz tinha
compromisso com uns dias noutro patrão. Naquela manhã não lhe calhava fazer de zagal.
Tinha que ser o dono a tomar conta das cabras.
— Precisam de ir um bocado para o mato a afiar
os dentes! — congeminava Garrancho.
Se
assim o ajuizou melhor o executou. Mas, antes, precisava dejejuar. Pegou num
canjirão que se encontrava deborcado na cantareira da casa, foi direito à corte
e ordenhou três cabras que tinham sido as últimas a parir; ainda davam bom leite
para o almoço dos donos, para o biberão do neto e para renovar a queijaria; o
resto das cabras estavam secas! Despejou o leite da ordenha numa pichorra e
colocou-a ao lume, até ferver; deitou uma parte numa malga, migou-lhe um pedaço
de broa, juntou-lhe um pouco de mel das suas colmeias e comeu. A ti’ Maria
trataria do resto da refeição da manhã, tanto para si própria como para o neto;
iria também deitar de comer às galinhas e coelhos e dar a vianda da manhã aos
porcos; tudo ali ao pé da porta de casa.
Ele
é que já estava com a ligeireza toda! Tinha que ir para mais longe e, ala moço,
que se faz tarde! Deu os caneirões à burra, deitou a cabrada e lá foi atrás da
sinfonia das campainhas e chocalhos, de cajado na mão; um varapau de marmeleiro
de dois metros de comprimento com que mantinha em respeito todo o rebanho — que
ainda era coisa que se visse — auxiliado pelo Tejo, o cão, caso os caprinos
intentassem mordiscar os haveres alheios nas estremas com os vizinhos. Então, levantava
o bordão:
—
Ai o raio parta isto, mais as cabras! Quiá, quiá! Vá lá ver!
E
atiçava também o Tejo.
—
Tejo, volta, volta!
O
cão percebia que estava a ser útil ao dono e lançava-se num rodeio, cheio de
excitação, em corrida desordenada, trapalhona, a voltar o rebanho; mas, por
vezes, metia-se nas giestas, desarvorado, tonto de todo, orelha viva, a latir,
a latir! Tinha farejado o rasto de um coelho!
—
Deixa os coelhos, Tejo! O que é que te mandei fazer?! — gritava Garrancho para
o bicho, como se de pessoa se tratasse.
—
Ai, o raio do cão! Filha da puta parece que é doido! Valha-me Deus, valha,
valha…! Vamos lá! Volta, volta!
Finalmente,
as cabras, aparvalhadas e temerosas do ladrar do cão, lá regressavam a tosar os
rebentos do mato dentro dos limites do senhorio do dono. Só mais tarde, quando
chegasse o calor, voltariam à loja, como era hábito, para a função de remoer
durante a sesta, enquanto os donos comiam ao meio-dia e adormentavam um pouco.
No
entrementes, era a meio da manhã e, na casa, o menino acordara. Para adiantar o
jantar, a ti’ Maria tinha já começado a descascar algumas batatas, uma cebola e
a cortar couves para meter numa bacia de água e lavar. Tudo cozido com um
pedaço de toucinho da salgadeira com boa fêvera, era o jantar do dia. Sopa da
matação, uma fatia de broa, um tinto para o ti’ Bernardo, água da Mina Nova e
fruta variada, compunham o restante menu do repasto.
Mas
ao primeiro vagido do recém-nascido a avó foi buscá-lo. Deu-lhe banho numa
bacia de folha de zinco cintada no fundo, em água tépida tirada da panela
grande de ferro, sempre ao lume. Embrulhou-o em panos mais leves lavados na
pedra do tanque do leirão do meio. Deu-lhe o biberão de leite, já morno, que o
marido tirara às cabras pela manhã. Polvilhou a chucha com um pouco de açúcar amarelo
e colocou-lha na boca. O menino, de barriga cheia e ainda que de olhos vivos, sossegou
no seu berço.
Com
tanto que sempre havia que fazer nas fazendas, a ti’ Maria não podia tratar apenas
da criança! Enquanto o marido andava lá para o mato com as cabras, ela tinha
que ir fazer as regas; convinha que fosse de madrugada ou à noitinha para melhor
se conservar a frescura na terra; mas cuidar do neto não lhe permitia fazer as
tarefas às horas certas.
Precisava
de ir regar as hortícolas e leguminosas no leirão fundeiro ao pé da Piçarra Grande,
local da fazenda a que chamavam o Canchal. Só voltaria a casa lá para o
meio-dia novo para meter tudo na panela, pôr a cozer e jantar com o marido que,
entretanto, regressaria com o rebanho. Mas — neto, a quanto obrigas! — tinha
que levar o menino! Não estaria sossegada se o deixasse em casa, sozinho no
berço, sem o vigiar. Era assim que fazia, desde que tomara conta dele.
Alcofas
eram coisa de luxo, para quem vivia nas cidades; então, pegou nele, aconchegando-o
nas suas roupinhas, meteu-o com todo o cuidado, num cesto de verga de castanho
que tinha ali ao lado, forte e suficientemente largo, onde o bebé cabia
maneirinho. Pôs o cesto à cabeça e pegou no sacho da peta, leve, com um cabo
comprido, que lhe servia de amparo. Saiu de casa, fechou a porta atrás de si e
desceu a horta, passando pelos vários leirões onde se via tudo semeado;
aproveitava-se cada canto de terra com o que pudesse dar. Nada se desperdiçava!
Caminhava com cautela e apoiava-se com firmeza no cabo do sacho, porque carga
mais preciosa que a do cesto não havia no mundo!
Chegou
ao local da rega, escolheu uma oliveira ramuda e colocou o cesto à sombra com a
criança — que dormia — em cima de uma pedra larga e lisa; deu uma última olhada
ao neto antes de ir abanar a tranca da Mina do Meio.
—
Não há maior santidade que a inocência! — murmurou, observando-o. Depois, levantou-o,
beijou-o e foi, logo ali pertinho, ligeiríssima, buscar a água.
A
rega, feita rego a rego, demorou o seu tempo. Via-se que as plantas estavam com
sede e o terreno ressequido do calor que tinha feito nos últimos dois ou três
dias. Ocupava-se da horta com o mesmo carinho que cuidava dos canteiros ao pé
da casa. O trabalho é que era um poucochinho menos pesado; se, para os
canteiros tinha que carregar a água da Mina Nova, a regador, à força de braços,
aqui a regadia era feita pelo pé; a água da mina passava pelos chaboucos dos
leirões, como forma de controlar o caudal, até ao fundo da fazenda. E a ti’
Maria lá foi regando.
De
quando em vez, enquanto a água enchia cada rego do renovo, ia ao pé do cesto para
se certificar se tudo estava bem!
Estava
mesmo a finalizar o trabalho e, pela altura do sol, calculou que estaria na
hora de voltar à casa e pôr a panela ao lume com as batatas as couves e o
toucinho. O marido estaria ali também a rebentar para ambos comerem e dar o
biberão ao petiz.
O
jantar decorreu com a habitual tranquilidade da serra. Mas agora, depois de
tantos anos, desde que tinham tido a última filha, com a nota alegre de uma
criança — filho do filho como se deles filho fosse — a enriquecer-lhes o avanço
dos anos.
Às
vezes, no final das refeições, a ti’ Maria, depois de beber da água da Mina
Nova, fresquíssima, de fazer doer os dentes, dizia para o marido:
—
Ó Bernardo, põe-me aí um dedal de vinho num copo! Mas só um dedalzinho, homem!
Pões?
Queria
celebrar aqueles dias felizes! Quem estivesse de lado a contemplar a cena, via
duas pessoas no outono da idade — como se tivessem voltado a jovens — sem mais
mundo, a tomar as suas refeições na paz do lar; enquanto iam olhando,
embevecidos, o neto, lindo e tranquilo no seu berço improvisado, aconchegado a
um canto da casa.
Dava
a sensação que emanava da fronte perfeita e quase divinal do menino, toda a serenidade
do universo!
(a) Arlindo de Carvalho, Hortelã Mourisca
Nota: Neste texto podem ter sido usados
termos ou expressões regionais ou locais que não constam da ortografia ou dicionários
oficiais.
JOSÉ BARROSO