Enxidros era a antiga designação do espaço baldio da encosta da Gardunha acima da vila de São Vicente da Beira. A viver aqui ou lá longe, todos continuamos presos a este chão pelo cordão umbilical. Dos Enxidros é um espaço de divulgação das coisas da nossa freguesia. Visitem-nos e enviem a vossa colaboração para teodoroprata@gmail.com
quarta-feira, 24 de maio de 2023
sábado, 20 de maio de 2023
Gente Nossa
O jornal Público de 17 de maio publicou esta notícia da nossa Ana Rita Teodoro:
Ana Rita, André e João tropeçam (mas não caem) na língua portuguesa
Ão, em cena até sábado no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, é uma peça
musical, com os corpos metidos ao barulho, movida pela linguagem: tão sedutora
quanto traiçoeira.
17 de Maio de 2023, 20:14
Ana Rita Teodoro é uma das cúmplices por trás
desta abordagem a um dos mais carismáticos ditongos do português CARLOS PINTO
Não deve
existir canção em português que não inclua rimas em “ão”. Não deve existir
frase que nos saia da boca que não meta lá pelo meio um “ão”. O “ão”, como
escreve Fernando Venâncio num livro (Assim Nasceu Uma Língua) que André e.
Teodósio partilhou com os seus dois cúmplices em Ão, é um ditongo que se
comporta como uma “espécie invasora” na língua portuguesa. Está por todo o
lado, contamina todo o discurso, comporta-se como um monarca omnipotente,
regozija-se com o facto de não poder ser devidamente pronunciado por qualquer
cidadão nascido fora da lusofonia. Se, como se repete no espectáculo em cena no
Teatro do Bairro Alto (TBA), em Lisboa, até ao próximo sábado, tropeçamos
constantemente em sons que nos ficam colados e nos aprisionam, “ão” é, com toda
a certeza, um dos mais insistentes.
Ão tem vários inícios. André e. Teodósio queria “fazer um espectáculo
sobre a palavra”, conforme explica ao PÚBLICO. “A palavra não apenas dita, mas
também cantada, que fosse o tema da conversa. Da mesma forma que os
espectáculos da Praga [Teatro Praga, companhia de que é co-fundador], às
vezes, têm por protagonista a arquitectura, o linóleo, o computador ou a
própria palavra.”
Ao mesmo
tempo, vinha deixando fermentar a vontade de trabalhar com a coreógrafa e
bailarina Ana Rita Teodoro e o músico João Neves, reflexo
da admiração pelos percursos e pelos imaginários e referenciais dos dois. Era
uma vontade que havia de concretizar-se um dia, não necessariamente no mesmo
espectáculo. Só que, à medida que começou a pensar neste ditongo como algo
musical, e a convencer-se de que podia erguer-se um espectáculo em torno dessa
sugestão sonora, os nomes dos dois passaram a coabitar na sua cabeça.
Unidos por
“uma ideia de musicalidade”, os três fecharam-se vários dias numa sala a testar
os pontos de confluência musicais e a construir, aos poucos, os temas “à [Ryuichi] Sakamoto, à Laurie Anderson, à Meredith Monk, à Sparks, à Meira Asher” que pontuam o espectáculo. No fundo,
Ão é como uma investigação à relação de cada um/a com a palavra (dita ou
cantada), problematizando a linguagem. Ou seja, escarafunchando naquilo que a
linguagem tem de libertador, por permitir a expressão de cada indivíduo/a, mas
também de castrador, no que as palavras aprisionam e limitam.
"Ão",
o ditongo, é assim um pretexto, uma desculpa para um exercício lúdico em torno
da linguagem. Em que as várias línguas se cruzam, podendo escutar-se um “pain
au chocolat”, em que a dor é inglesa, mas o chocolate é francês, ou em que
se pode dizer, sem curto-circuito mental, “I stepped numa carta que me
foi enviada with that sound”.
Na verdade, e
dadas as muitas citações que atravessam Ão, de excertos musicais de
Björk e Chico Buarque ao “metal fundente” de Entre nós e as palavras de
Mário Cesariny, a peça vê-se também como uma homenagem à forma como as
palavras, vindas das mais diversas fontes, nos ocupam e nos compõem. Daí que
Ana Rita Teodoro refira “esta grande evidência, que aparece na peça, de o ‘ão’
estar tão presente no nosso dia-a-dia e nunca darmos de caras com ele de uma
forma tão concreta”. Porque não é apenas de um “ão” que se fala, claro, mas de
toda uma reflexão acerca “de estar, de pertença, de não pertença, uma junção de
referências”.
Bonito e traiçoeiro
Tropeça-se
muito no som e nas palavras em Ão. Tropeça-se não para cair, mas porque
avançar pela língua e pela construção identitária a isso obriga. O espectáculo
deixa-se atravessar por uma duplicidade que é possível sintetizar neste ditongo
pelo qual podemos apaixonar-nos ao mesmo tempo que ele nos aprisiona. A peça
constrói-se "também a partir dessa ideia, de que um ‘ão’ ou uma língua
podem ser tão bonitos quanto traiçoeiros”.
Se tanto se
fala em inglês como em português, as palavras coladas umas às outras, é porque
o pensamento de Teodósio, o autor do texto, alguém que cresceu nos Estados
Unidos antes de regressar a Portugal, funciona assim. Afinal, pelo meio desta
plasticidade musical com que o texto vai surgindo, reforçando ou contrariando o
que dizem os corpos dos três intérpretes, muitas vezes num estado quase
contemplativo de câmara lenta, emergem migalhas ficcionais, autobiográficas,
resultantes das leituras de cada um. Sem que haja vontade, em momento algum, de
transformar Ão numa “aula de português cantada”. Não há teses
linguísticas aqui; há sim, uma apropriação pessoal da língua, respeitando
apenas regras próprias.
Para André
Teodósio, esta é, no entanto, e apesar da dimensão corporal que Ão
também assume, “uma peça sonora”. “Não estamos, mas podíamos estar no escuro,
bastaria ouvir apenas ou sentir as frequências do som.” Porque os corpos,
conclui, “são estranhos naquele espaço”, naquele “tapete” de frases onde é
possível que qualquer um dos três intérpretes, a dado momento, possa tropeçar.
Mas há nestes movimentos em palco, que Ana Rita Teodoro compara à empatia que
se estabelece num concerto, em que os sons convidam a dançar e a cantar, uma
ideia de poderem ser reproduzidos. Afinal, a linguagem é uma ferramenta de
comunicação e de chegar ao outro. Falar sozinho é uma outra história. Em Ão,
só se tropeça porque os olhos não estão no chão, e sim naquele que se quer
alcançar.
terça-feira, 16 de maio de 2023
Gente Nossa
Lourdes Pedro
É muito humana a ambição de deixar por escrito um testemunho sobre a própria vida. Ora, a quem interessa a vidinha de Fulano ou Sicrana?
Acontece que há vidas e vidas; e há livros-testemunho,
digamos autobiográficos, que não se limitam à vidinha, que constituem janelas
sobre lugares, sobre uma sociedade, sobre um certo tempo. Já li desses.
Vem isto a propósito de Lourdes Pedro: um esteio na vida de Edmundo Pedro. O livro com este
título foi apresentado em 12 de Maio passado, na Associação 25 de Abril, na rua
da Misericórdia (antiga rua do Mundo), ao Chiado, em Lisboa, um evento que
juntou várias dezenas de pessoas.
Lourdes Ricardo Pedro é uma pessoa singular. A caminho
do centésimo aniversário, disse no acto que ainda há-de escrever a contar a
vida difícil que teve - ficamos à espera. Filha de João Ricardo e de Amélia de
Jesus, ambos nascidos em São Vicente, foi casada com Edmundo Pedro, um homem
que pagou um alto preço por se opor ao regime de Salazar. Um custo extensivo à
família mais chegada, Lourdes e Sónia, mulher e filha.
O livro lançado naquele dia é de facto uma janela
sobre um tempo, que se alarga aos anos pós 25 de Abril de 1974, o ambiente
social, a vida de (e com) um homem durante décadas na mira (e vítima) da
polícia política, a actividade e o sucesso profissional, pessoal e empresarial,
situações vividas e pessoas com quem se deu, com quem se defrontou, que amou ou
com quem simplesmente se cruzou. Lourdes Pedro, mulher generosa e lutadora, em
discurso directo.
Construído com os testemunhos da própria, recolhidos
em muitas horas de conversa, registados e organizados por Amílcar Faustino -
sanvicentino por adopção - o livro, de que tenho neste momento um exemplar à
minha frente, recomenda-se pela forma e pelo conteúdo. Lê-lo faz bem à saúde,
mormente à saúde da alma.
Pergunto-me, a finalizar, se não seria interessante uma apresentação pública do livro na nossa Biblioteca, em São Vicente. E recordo: Lourdes Pedro: um esteio na vida de Edmundo Pedro, ed. Âncora Editora, 2023 (167+3 pp.).
Lourdes Pedro
A mesa: António Baptista Lopes, o editor; Lourdes Pedro; Vasco Lourenço, presidente da Associação 25 de Abril; Elisio Summavielle, presidente do Centro Cultural de Belém, que fez a apresentação do livro; e Amílcar Faustino, autor-organizador da obra.
A assistência
J Miguel Teodoro
(O autor desta notícia escreve segundo a antiga grafia)
Foto do José Barroso, para ilustrar o seu comentário (ver caixa de comentários):
José Teodoro Prata, 17/05/1923
sábado, 13 de maio de 2023
O rancho vicentino
A crónica desta semana de João Lourenço Roque, no jornal Reconquista, faz referência às canções editadas há anos, em CD, pelo nosso rancho folclórico. Vem na parte final.
O autor da crónica, reformado da Universidade de Coimbra, onde foi meu professor de História Económica e Social na Idade Média, divide agora os seus dias entre Coimbra, Lisboa e sobretudo a freguesia das Sarzedas, de onde é natural. As suas crónicas têm sido publicadas periodicamente em livro.
José Teodoro Prata
sábado, 6 de maio de 2023
Guardo-te em mim
Lembro-te mãe:
Da
tua mão fresca na minha testa, engolia com esforço o remédio que me davas para melhorar.
Pedia-te
colo sempre que te apanhava distraída.
Bebia
o leite das cabrinhas com café e pão, que me preparavas antes de ir para a
escola.
Procurava-te à saída da missa, no emaranhado de saias a tocar o chão de terra batida, depois ia com as manas à taberna ou ao café da senhora Tomázia comprar rebuçados se tínhamos alguns tostões, era domingo.
Ouvia-te
chamar por mim e ignorava, em silêncio, empoleirada nas figueiras e
abrunheiros.
Davas-me
um puxão de orelhas quando era preciso; ficava a chorar quando era castigada e tinha
que parar por me ignorares, castigo é castigo.
Era
preciso ir à água, apanhar erva para os animais, abrir as águas para a rega -
levantem-se que vem lá o calor!
Aquecia-me
na lareira, com o cheiro das samarras de eucalipto, comia batatas fritas,
sentada no banco de madeira, os olhos no lume.
Rezava
contigo e com a família o terço e depois abençoavas todos antes de irmos para a
cama.
No dia da matança do porco dizias - hoje é a Tina que vai apular o sangue – não mãe por favor, escondia-me debaixo da cama, tu chamavas mas eu não ia, ias tu. E já tinhas o lume aceso com muitas panelas em volta, o pequeno almoço dos homens que estão a chegar e tinhas que ir, sempre tu para tudo. Daquelas panelas saía um almoço delicioso, que comíamos com toda a família reunida, a boa sopa de feijão, o arroz de frango, o feijão com vinagre, as ervas, o seventre com a batata cozida.
Depois
era o lavar das tripas no ribeiro que ia a transbordar, os enchidos feitos com
a ajuda das tias, tuas irmãs e cunhadas do casal, uma latada cheia por cima da
lareira, que cheirinho bom!
Ia
à mercearia do sr. Joaquim Boas Noites ao pé da praça, comprar o que me
mandavas, onde pagavas sempre ao final do mês, a mercearia empacotada nos
cartuchos de papel, a chaminé para o candeeiro embrulhada na folha de jornal -
às vezes chegava à Tapada já em cacos...mas também íamos às outras mercearias,
porque dizias que tínhamos que ajudar todos.
Íamos
comprar tecidos lindos para fazer os nossos vestidos à loja do sr. Manuel da
Silva, ele estava sempre muito bem vestido, mais a menina Nelita, que linda
loja: tinha as paredes cheias de prateleiras com peças de tecidos de todas as
cores, que depois de os medir com um metro no balcão, cortava com uma tesoura
grande e afiada.
Vestíamos
com vaidade os vestidos que nos fazias, o teu corpo debruçado na máquina de costura,
já tão cansado das tarefas do dia.
Caminhávamos
para as festas contigo, o teu ranchinho que era o teu orgulho; missas, procissões,
foguetes, alguma guloseima na feira, depois na praça, a foto de família para mandar
ao pai, que está longe.
Mostrava-te
o recado enviado pela professora: é preciso pagar a caixa escolar - tens o
paizinho em França - não sra. professora, a minha mãe só tem vinte e cinto
tostões em casa – ai filha, isso não era para dizer!
Desabafava
contigo as minhas preocupações de adulta, ouvias sem julgar, aconselhavas com palavras
sábias, só os teus olhos demonstravam preocupação.
O
teu corpo foi ficando mais cansado, precisavas de uma bengala, apoiavas-te a
nós a subir ou a descer as ruas e apontavas com a bengala: aqui morava fulano,
ali beltrano, todas as casas estavam cheias de gente, agora não se vê ninguém.
As
memórias eram recordadas e contadas no sofá, quando a casa estava cheia, ouvias
todos e confortavas os seus corações.
A
escuridão foi tomando conta dos teus dias, perdeste-te, tentámos ajudar-te a
encontrar o teu caminho que é longo e escuro...
No
teu silêncio, apenas os teus olhos falavam, perdidos no vazio...
Nos
teus momentos de aflição, os teus olhos tentavam dizer o que o teu corpo
sentia...
Pegava
na tua mão, que apertavas suavemente e colocavas no teu peito...
Deitava
a cabeça no teu regaço, na procura do teu afago de mãe...afagavas-me com a mão aberta
os meus cabelos e deslizavas os teus dedos numa carícia demorada.
E
sentia gratidão e compreensão no teu olhar...
Guardo-te
em mim, assim...
Maria Albertina Prata Teodoro
segunda-feira, 1 de maio de 2023
1.º de Maio
https://www.youtube.com/watch?v=pixJHb4WR5s
Um café no Primeiro de Maio
O trabalho
está quase todo escondido, para não perturbar a doçura do nosso prazer
(1 de Maio de 2023)
Não há prazer
sem trabalho. O prazer é seu. O trabalho é dos outros.
Hoje é dia do
trabalhador e o mínimo que pode fazer quem trabalha é pensar naqueles que
trabalham mais e por menos dinheiro do que nós.
Não há prazer
sem trabalho. O prazer é seu. O trabalho é dos outros.
O mínimo que
se pode fazer é pensar que se está a trocar o nosso trabalho, na forma do
dinheiro que pagamos por um serviço, pelo trabalho dos outros.
Mas quantos
minutos de trabalho lhe custou esse café? E quantos minutos tem de trabalhar o
empregado que lhe serviu esse café para ganhar a mesma quantia?
Quando bebemos
um café no dia 1 de Maio, a primeira coisa que procuramos saber é "o que é
que está aberto?" Ou, por outras palavras, "quem é que está a
trabalhar? Quem é que não teve direito a feriado, neste dia do
trabalhador?"
Os feriados
foram uma conquista sindical. Os fins-de-semana foram uma conquista sindical.
As semanas de 40 horas foram uma conquista sindical. E digo conquista no
sentido mais medieval: muitas pessoas morreram, muitas pessoas levaram pancada,
muitas pessoas passaram fome, muitas pessoas morreram desiludidas e fracassadas
para poder conquistar essas horas e esses dias, que hoje encaramos como se
fossem tão naturais como o nascer e o pôr-do-sol.
Quando bebemos
um café no 1 de Maio, o mínimo que podemos fazer é perguntar "quem apanhou
este café? Quanto receberam por esse trabalho? Em que país foi? Que protecção
têm os trabalhadores nesse país? Há trabalho infantil? Do preço que paguei pelo
café, quanto é que receberam as pessoas que apanharam, lavaram, secaram e
transportaram o café?
O problema é
que o trabalho está quase todo escondido, para não perturbar a doçura do nosso
prazer com o amargo da culpa: o lucro do café é quase todo dos países sem café
que importam o café por tuta-e-meia.
O trabalho
atrás do nosso prazer é repetitivo e chato, mal pago e mal-agradecido.
O mínimo que
podemos fazer é pensar nisso.
E
reconhecê-lo.
José Teodoro Prata