Quando andava no Seminário e queria comunicar com a minha família, uma das coisas mais complicadas era escrever a palavra vossemecê, termo com que eu tratara sempre a minha mãe e o meu pai, mas que nunca vira escrito. Envergonhava-me de usar a palavra, pois tinha medo de a escrever mal e achava-a tão impessoal, quando escrita, que não sabia se com ela conseguia mostrar-lhes o meu respeito.
Depois, não sei se no Seminário ou em casa, habituei-me a tratar os adultos por você, não os meus pais, que continuaram a merecer o vossemecê.
Já jovem, no Magistério Primário desta provinciana cidade de Castelo Branco, uma professora comentou com as minhas colegas, durante um debate entre alunos e vários professores: "É de admirar a maneira inocente como o Teodoro trata os professores por você!"
Contaram-me e só então soube que os albicastrenses consideravam ofensivo o tratamento por você. Esta história tem mais de 30 anos, mas há dias deparei-me com comentários de professores a considerar mal-educado um aluno que os tratava por você. Curiosamente, o adolescente é nosso vizinho da Gardunha.
Um dos meus colegas até lhe respondeu: "Você é estrebaria!" O mesmo é dizer que só se tratam por você as pessoas de baixa condição social, as que estão ao nível de tratar os cavalos da estrebaria.
Porque será que os albicastrenses sentem tanta repulsa pela palavra você? Porque você é a contracção da expressão Vossa Mercê e esta era a forma de tratamento a que tinha direito a burguesia, até finais do século XIX.
Considerarão que era um tratamento prestigioso e é verdade. Raros eram os homens do povo que a ele tinham direito. Só que estes desejavam ser tratados como os nobres, por Vossa Senhoria. Eram quase sempre mais ricos e mais cultos que os nobres, mas só tinham direito à forma de tratamento mais humilde. É que acima de Vossa Senhoria ainda havia o Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor com que eram tratados os membros mais importantes do clero, como os bispos.
Agora imaginem, há cerca de 150 anos, a elite albicastrense, formada por uma dúzia de famílias de grandes lavradores, comerciantes e letrados, ter de tratar por Vossa Senhoria os raros nobres que existiam na cidade e por Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor o bispo da diocese, mas só receber deles e de todos os pacóvios o tratamento de Vossa Mercê! Nasceu-lhes uma tal repulsa por essa forma de tratamento que ainda hoje é sentida pela classe média da cidade.
Como já devem ter percebido, o nosso vossemecê é a maneira do nosso povo dizer Vossa Mercê. Em São Vicente da Beira, esse tratamento agradava aos nossos pais, pois fora o tratamento dado às pessoas mais importantes com que os seus antepassados lidaram.
Os burgueses albicastrenses sentiam-se humilhados com o Vossa Mercê, mas o seu uso generalizado a todo o povo foi uma forma de democratizar um tratamento que até então fora de apenas uns poucos, de uma elite social. Certamente, também em Castelo Branco, o uso de vossemecê ou você foi e ainda é uma forma respeitável de tratamento, mas apenas para as camadas mais baixas da população, não para a classe média, herdeira da mentalidade burguesa dos séculos XVIII e XIX.
Um comentário:
Eu próprio já senti na pele esse desconforto após ter sido chamado à atenção pela minha professora de filosofia do 10º ano na escola secundária Amato Lusitano em CB. Na altura não tive coragem de perguntar como é que a professora queria ser tratada pois tinha ficado bastante envergonhado com a risota dos colegas e a sobranceria da docente "...você?!, veja lá...". Até hoje ninguém me tinha explicado, cabalmente, o porquê da repulsa em ser tratado desta forma "você". Também recordo que as pessoas mais velhas da minha terra, Casal da Serra, também exigiam ser tratados pelo "vossemecê".
Obrigado pelo esclarecimento.
Sérgio Candeias
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