O ser humano
pertence a uma espécie prodigiosa, disso não tenham dúvidas. A capacidade do
seu cérebro para criar associações de ideias e guardar memórias não se compara,
nem de perto nem de longe, com a de qualquer outra espécie à face da terra.
Vem a isto
propósito de um dia destes andar a dar uma vista de olhos neste nosso blog, que
o Zé Teodoro tem a bondade de manter e de reler o poema Gardunha, de um tal A. dos
Santos, que me leva sempre a pensar no Tó Mosca.
Isto, talvez por saber que o irmão Zé Manel, é um fazedor de versos de que alto
lá com ele. Versos esses que ainda não decidiu partilhar connosco, neste blog,
por exemplo, o que é de todo lamentável.
Ele que me
perdoe a revelação, (eu sei disto, porque ele é meu primo por afinidade) mas acho
que nós, que tanto tempo passamos a cortar na casaca uns dos outros, devíamos
inverter a tendência e dizer antes aquilo que as pessoas têm de bom, de realçar
os seus talentos (aqui para nós, que ninguém nos ouve: estou apenas a
candidatar-me a escrever os sermões do Pe. Manel, não acham?).
O certo é que
nesse poema se fala:.. da preta, a burra, presa pele trela…e
este simples trecho trouxe-me logo à ideia, a Preta, a burra fantástica do meu
avô Bernardo, que eu conheci em criança. Aliás, era mesmo fantástica, porque
forte como uma mula, elegante como uma égua e muito mansa.
E como é que
aparece uma burra assim? É isso que vamos ver. Há mais de 60 anos, havia uma
família cigana no Cimo de Vila, que morava numa casa que está hoje em ruínas,
que era a casa do Tonho Russo e portanto vizinhos do meu avô Bernardo.
Num Inverno
particularmente agreste, a vida não estaria a correr muito bem ao Chico Cigano que, com a casa cheia de filhos a
chiar de fome, lá se encheu de coragem e foi ao meu avô pedir um conto de réis
para relançar o negócio. Que lhe pagaria pelo S. Miguel. A minha avó Santa, a
entesar os olhos ao marido, para não ir na cantiga, mas o meu avô, que era um
homem mais de coração do que de razão, lá empresta o dinheiro ao Chico Cigano,
pensando que pior que perder o dinheiro seria ouvir os responsos da mulher.
Acontece que,
chegado o S. Miguel, o Chico bate à porta do meu avô, devolve o dinheiro e
diz-lhe: Ti Bernardo, para lhe agradecer
o favor, vou arranjar-lhe uma burrinha como o senhor nunca viu. E o certo é
que, algum tempo depois, a formidável burra aparece. Selecionada por um especialista de burros (como qualquer cigano da altura), com critérios mais
rigorosos do que os utilizados na inspecção, aquando da guerra no Ultramar, a
Preta tornou-se a burra mais prestigiada do cimo de Vila. O Zé e o Tó Passaraço que me desmintam, se não é
verdade.
E a gratidão da
família cigana não ficou por aqui. No Natal seguinte, a mulher do Chico bate à
porta da minha avó e diz-lhe: vizinha,
tenho aqui um presentinho para si. E dito isto, entrega-lhe uma filhó do
tamanho da caldeira, onde as fritava, que era a única maneira de ela as saber
fazer.
Recordo. Devia
ter os meus seis ou sete anos, quem é que aparece lá na Vila para passar uns
dias com os avós? Um primo meu e do Zé Barroso: o Bernardo, filho do “Ti 25” que morava em Azeitão. Sei que
passámos os três um dia de fim de Verão abrasador debaixo duma figueira de
lisboa branca (pingo mel) lá na serra e ao pardejar, quando o calor começava a
ceder, o meu avô aparelhou a Preta e com o Zé Barroso à frente, a comandar as
operações, por ser o mais velho, o Bernardo ao meio e eu atrás, começámos a
nossa aventura de viajar até à Vila, pela Cascalheira,
que sempre era um caminho melhor.
A técnica, por
causa do forte declive, era inclinarmo-nos todos para trás. Só relaxámos quando
chegámos aos Aldeões onde o caminho é
mais plano. Lá vínhamos nós felizes, como só as crianças o sabem ser, eis se
não quando, a Preta, que na altura já não era nada nova, tropeça numa pedra e
ajoelha subitamente ali ao pé dos Canavéis do Pe. Tomás.
O meu primo Zé,
apanhado desprevenido, voa-lhe por cima da cabeça e o Bernardo e eu, sem o seu
apoio, voámos logo atrás dele. Tirando umas esfoladelas, nada de grave. O resto
do caminho a pé. Que já estávamos perto. Fomos jantar à Ti Rosa, que já estava
em consultas com a demora.
Agora vejam como
tudo isto começou. Com um poema de alguém que nem sei quem é, que refere uma burra preta e, só por isso, me fez
reviver esta história que aqui partilhei convosco.
O nosso cérebro
é fantástico. É ou não é?
Janeiro de 2013.
4 comentários:
Este texto tem 3 expressões típicas de outros tempos e talvez alguma mesmo só desta região. Só conhecia a primeira, o que mostra que as falas variavam um pouco entre as várias famílias.
- ouvir os responsos
- estar em consultas
- pardejar
Como educador, este texto é notável pela lição de cidadania que nos dá: a bondade e a honra (tal como o seu inverso) encontram-se em todas as raças e etnias. Não conheci o Chico Cigano, mas tive um aluno de etnia cigana que era um exemplo de bondade e generosidade.
Mais uma história deliciosa que nos reporta para a nossa infância!
Como deve ter sido emocionante essa viagem e provavelmente muitas outras que
terão feito montados nessa ou noutra Preta qualquer! (Uma das muitas frustrações que
tenho é nunca ter conseguido equilibrar-me em cima de um burro). Mas, para além do
aspeto lúdico desta história, penso que devemos centrar-nos no aspecto pedagógico,
como refere o José Teodoro no comentário que fez. Como é que é possível que há
cerca de cinquenta anos uma família cigana estivesse completamente integrada numa
comunidade (como transparece da descrição feita pelo Francisco) e atualmente ainda
tenhamos tantos preconceitos relativamente a essa etnia e a todas as outras pessoas ou
grupos que são diferentes de nós? De facto, apesar de todo o trabalho que tem sido feito
ao longo dos anos pelas mais diversas instituições, continua a verifica-se uma enorme
intolerância relativamente a tudo o que ultrapassa os nossos padrões de normalidade,
quer se trate de diferenças de cor, religião, convicções políticas, tendências sexuais,
competências cognitivas ou funcionais, etc….
Como o mundo poderia ser melhor se houvesse um pouco mais de respeito e tolerância
por tudo o que é diferente!
M.L. Ferreira
P.S.Que bom haver um presidente Obama (negro) que, no discurso de tomada de posse
do segundo mandato, referiu como prioritária a defesa dos direitos dos homossexuais e
outros grupos minoritários descriminados!
Obrigada, Chico, por partilhares as tuas recordações. Lembraste-me a minha infância, de que falo tantas vezes quando a situação se proporciona, e da importância da transmissão de valores de pais para filhos. Durante a minha licenciatura em Serviço Social referi algumas vezes os meus pais e o que, através do exemolo, nos transmitiram. Como sabes vivíamos no Chão da Bica e ali apareciam pessoas de todas as condições, umas para negociar, outras para trabalhar e outras a pedir ajuda num tempo tão difícil. Recordo-me que os meus pais nunca fizeram distinçaõ com ciganos, pessoas portadoras de deficência ou pessoas de outras cores ou religiões. Foi imensamente enriquecedor para a minha vida e tentei sempre transmitir aos meus filhos esta forma de ESTAR na vida. Mais uma vez, obrigada pelas palavras.
Também sou protagonista da história, mas, por acaso, desta já não me lembrava. Mas é como diz o autor, a mente humana é extraordinária.
Às vezes através de um pequeno laivo de memória, discorremos sobre muitas outras coisas e factos. Acontece é que uma pessoa se lembra de certos episódios e outra lembrar-se-á de outros.
É mesmo assim, porque a memória seleciona de várias maneiras e em atenção a determinados pormenores. Sendo assim, digo o mesmo que ele diz de outros, atuais ou futuros intervenientes neste blogue: que se devem partilhar mais histórias, como esta, sobre a nossa vida comunitária (sejamos nós os protagonistas ou não), porque todos temos a ganhar com isso.
É para isso que servem as novas tecnologias. E o Zé Teodoro tem pedido colaboração. Bem sei que necessitamos de uma certa disponibilidade que muitas vezes não dispomos. Mas, mais importante que a escassez de tempo, é predispormos a mente para essa tarefa.
Uma coisa é certa: não acrescento nada à história, pela simples razão de que o Chico a soube contar de forma fantástica! Tanto do ponto de vista factual (como era hábito nas vivências da época), como do ponto de vista estético.
Um abraço, ó Chico.
Zé Barroso
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