A ti Francisca do Casal era do Casal da
Fraga, mas morava na vila, na rua da Misericórdia. O homem dela chamava-se
Francisco e juntos tratavam da fazenda do Aires, nas Vinhas, onde também tinham
casa e passavam algumas temporadas, quando os trabalhos agrícolas exigiam mais
cuidados.
Um dia, a ti Francisca veio cozer pão à
vila, no forno da Casa Conde. Acabou já perto da meia-noite e foi deixar o
tabuleiro a casa, para ainda ir despejar a água das Fontainhas. Nesse tempo a
vida era muito trabalhosa.
Tirou a tranca da presa e deixou-a
encostada por cima, na boca do boeiro, para não correr demasiado. Se a água
transbordasse do rego, não chegaria para o renovo todo. Virou os tornadouros
até à leira dos tomates e deixou a água espalhar-se pela terra sedenta. A seguir
conduziu-a pelo meio da leira, até ao fundo. Estava tão ocupada nestas lidas
que nem reparou numa senhora vestida de branco que lhe apareceu à frente.
“Vai imediatamente para casa, senão terás
um mau encontro esta noite.”
Disse ela. Depois virou-se e desapareceu
no escuro.
A ti Francisca nem abriu a boca, aterrada
com o susto. Nunca vira aquela mulher que a vinha avisar de um perigo. Seria a
Boa Hora? Mas que mal lhe podia acontecer? E ia deixar o renovo secar, agora
que o calor dava em apertar? Continuou a rega, mas sempre de olho no escuro,
para não ser apanhava desprevenida.
Regou as leiras de feijão e depois virou a
água para três valas de melancias que lá tinha. Entretanto soou a uma hora no
sino da torre da igreja. Olhou em redor apreensiva, mas nada aconteceu. Mudou
um tornadouro e quando levantou a cabeça viu uma mulher de negro vir em sua
direção. Sentiu-se gelada da cabeça aos pés, mas ainda teve reação para largar
o sacho e fugir para a quelha e depois correr para as ruas da vila. Não se via vivalma,
já todos dormiam. Dirigiu-se para casa tão depressa quanto pode e só descansou
ao rodar a chave na porta. Sentou-se num banco a pensar no que fazer.
O homem dela esperava-a na Quinta da Vela. A mulher de negro era de certeza a Má Hora, mas certamente nenhum mal
lhe faria agora que regressava a casa. Encheu-se de coragem, pôs o tabuleiro do
pão à cabeça e ala para as Vinhas. Não levava lanterna, pois precisava das mãos
para segurar o tabuleiro e conhecia o caminho como as palmas das mãos, mesmo no
escuro.
No alto da Fábrica decidiu atalhar por um
caminho, à esquerda, pelos pinheiros. Era bem mais perto do que seguir pela
fonte da Portela. Foi andando, sempre com passo rápido, na ânsia de chegar a casa. Quando estava a passar no alto, sentiu restolhar no mato em volta e
arrepiou-se toda. Nem olhou, quase corria. Mas um vulto atravessou-se-lhe no
caminho. Era um lobo. Ouviu rosnar atrás dela e virou-se. Havia mais dois.
Viu uma piçarra alta ao seu lado e
trepou-lhe para cima, sem largar o tabuleiro. Os lobos cercaram-na. Já os via
bem, a rangerem os dentes para ela. Saltavam e empinavam-se na pedra,
tentando alcançar-lhe as pernas.
Entretanto, em casa, o homem dela e o
criado, o Zé Ganhão, olhavam o escuro, calados, numa pausa da conversa sobre os
trabalhos dos dias seguintes. Estavam sentados numa pedra ao lado da porta, a aguardar a chegada da
ti Francisca.
“Ó ti Francisco, olhe que já passa a mais, a
patroa não costuma demorar-se tanto.”
“Ela vem sempre tarde. Não sabes como são
as mulheres? Deve ter-se demorado no forno, à conversa, e depois ainda queria ir
despejar a água das Fontainhas. Não há de haver novidade. Vou-me deitar, porque
já é outro dia, daqui a pouco amanhece e há muito trabalho para fazer.”
“O ti Francisco é um coração grande. Eu
não consigo dormir sem saber o que se passa. Vou até ali ao alto, a ver se já
lá vem.”
O Zé Ganhão entrou em casa e voltou com a
lanterna de azeite acesa. Depois seguiu caminho, apoiado no cajado, por via dos
maus encontros.
No alto dos pinheiros, os lobos estavam
cada vez mais assanhados. A ti Francisca já se sentia sem forças de tanto
saltar e se virar, para fugir às dentadas dos lobos. Escorria-lhes baba pelas
bocarras de dentes afiados. Um lobo saltou mais alto e ferrou-lhe os dentes na
saia. Ela quase se desequilibrou, mas sempre com as mãos no tabuleiro. Felizmente
o pano rasgou-se e o lobo caiu para trás.
Uma luz, berros, um homem a correr,
pancadas de cajado nos matos e pedras. Chamou por ela, disse-lhe para descer,
mas continuou hirta, com as mãos ferradas no tabuleiro. O homem pousou a
lanterna, subiu ao penedo e conseguiu desagarrar-lhe os dedos e tirar-lhe o
tabuleiro da cabeça. Veio pousá-lo no chão e voltou para a ajudar a descer. Mas
a ti Francisca continuou parada, sem dar sinais de compreensão, nem reação.
Teve de a descer ao colo e depois guiá-la, pela mão, até casa.
Perdeu a fala. Levaram-na ao médico e ele
explicou que tinham de deixar passar o tempo, para recuperar do susto. Só no
fim de três meses voltou a falar. Ele há horas mesmo más!
José Teodoro Prata
8 comentários:
Esta história lembrada pela minha sogra, e depois contada pela neta da D.Francisca, D Maria do Carmo Apolinária, atual dona da casa na rua da Misericordia.
A nossa cultura é muito rica em histórias como esta. Habituei-me a ouvi-las em criança, contadas como factos verídicos (muitas vezes como tendo acontecido ao próprio narrador) e deixavam-me completamente arrepiada de medo. Para mim, e penso que para a maior parte das pessoas da minha geração, elas cumpriram o papel das histórias tradicionais que agora contamos aos nossos filhos e netos.
Contudo, da mesma forma que tenho lutado por ver respeitadas as minhas crenças e opções, também tento respeitar as dos outros. É por isso que raramente consigo estabelecer com alguém a fronteira entre o certo e o errado ou o real e a fantasia.
É quase como dizia o outro: ”Eu não acredito em bruxas, mas que as há, há…”.
M. L. Ferreira
É como escreveu o Adelino:
A minha mãe contou-me este ataque dos lobos, na sequência da história do lobo branco. Também a contou ao Adelino, que quis tirar a coisa a limpo e foi falar com a Maria do Carmo, neta da ti Francisca. Ele é que me contou a história com todos os pormenores. A casa da família (ainda) é no número 27 da Rua da Misericórdia.
O Tonho da Sara, que morava na entrada da Rua Velha, era filho desta ti Francisca.
Nesta história, a única coisa irreal é(será?) o aparecimento da Boa Hora e da Má Hora.
Ainda hoje sinto algum receio pelo período das 0.30 às 3/4 horas. Sei que é irracional, mas a herança genética tem muita força. Por exemplo, quando tinha os filhos pequenos e ia de férias para o Algarve, fazia a viagem de noite por causa do calor, mas NUNCA partia antes das 3 horas.
Tal como a história do lobo branco e por coincidência ou não ambas foram passadas na zona da Fonte da Portela, um local a investigar, sobre os lobos em S. Vicente.
Viva! e muita saúde a quem sabe escrever assim.
jmt
Dantes, estas histórias povoavam o imaginário das comunidades do interior, mais isoladas; mas o Zé Teodoro tem um especial jeito para as colorir e, portanto, ganham um novo interesse para quem as lê.
Quanto ao mais, só queria dizer o seguinte: ainda conheci a Ti' 'Fecisca' do Casal (como lhe chamavam); era minha tia avó paterna (irmã da minha avó Maria do Espírito Santo). Lembro-me das duas, já com alguma idade, a conversar serenamente, enquanto temperavam a carne, no alguidar, para encher os chouriços na 'matação', em casa da segunda. E já agora: o Tonho da Sara não era filho da Ti' Francisca, mas da Ti' Sara (como se depreende). Era neto. Esta é que era casada com o Ti' João Duarte e este, sim, filho da Ti' Francisca.
Zé Barroso
Zé Barroso:
Eu não conheci a Ti Fecisca e por isso não arrisquei chamar-lhe assim, mas desconfiava que era essa a nossa maneira de a nomear.
E pensava que a Sara do Tonho era a mulher e não a mãe. Aliás, sempre julguei que a esposa dele se chamava Sara.
Adelino Costa:
A tia Maria José Rosa é que nasceu nas Vinhas do Poço, por onde passámos.
Quem, da família Teodoro, em 1901.1905, viveu na Quinta da Vela, também do Aires, foi João Teodoro, irmão do nosso bisavô António dos Santos, ambos filhos de Teodoro Matias dos Santos.
A Ti Francisca e o Ti Francisco moraram na Quinta da Vela, pois, caso contrário, teria seguido pela Fonte da Portela, o caminho direto para as Vinhas do Poço.
É verdade. a história dos lobos da Ti Fecisca do Casal faz parte do património imaterial da familia dos Barrosos. Porque se passou na familia e porque todos a ouviram contar várias vezes nas reuniões da matança do bácoro. E com a ajuda do primo Zé é que se acertou o parentesco.
F. Barroso
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