Desde que se lembra que acompanhava o pai na lavra das
terras que traziam à renda ou nas jeiras, em campos alheios. Primeiro à frente,
conduzindo as vacas, depois atrás, a guiar a charrua.
Um pouco mais velho começou a guardar as cabras na serra,
por cima da Senhora da Orada. Tempos de fartura porque, se a merenda minguava,
o leite corria direto das tetas do animal para a boca do pastor, fresquinho.
Ainda hoje lhe sente o gosto…
Às vezes ainda fazia uns dias aqui ou ali, mas os
tempos eram maus e, tirando a azeitona e a resina, pouco trabalho aparecia onde
um homem pudesse ganhar a vida…
Quando fez treze anos quis acompanhar o pai ao quinto.
O trabalho era duro, mas a paga sempre era um pouco melhor. A foice afiada, uma
panela de ferro enfiada num chamiço, meio quilo de açúcar, uma malga de esmalte
e um copo de alumínio no fundo duma bolsa, e lá vão eles a caminho dos Escalos!
Quando encarou com ele, o manageiro torceu o nariz,
mas o pai afiançou que era um bom braço de trabalho e já estava avezado à
foice; não se ia arrepender… Recomendado desta maneira, foi-lhe atribuída a
ração devida a um homem feito: um pão por dia, um queijo por semana, um litro
de azeite e meio litro de vinagre (se fosse mulher teria direito a metade da
ração, que as necessidades femininas eram outras …).
Os dias começavam ainda o Sol não espreitava lá para
os lados da raia. Saíam do curral onde uma braçada de palha lhes servia de
cama, comiam um naco de pão com queijo e por cima um ou dois copos de água que
ajudavam a encher a barriga e a enganar a fome.
Só a ceifar eram uns vinte, nesse ano. Cada homem
tinha à sua conta três leiras; punha-se na do meio e, ao ritmo de uma voz de
comando imaginária, começava a cortar da direita para a esquerda. Tinham que ir
todos ao mesmo ritmo e no mesmo sentido, porque se algum se atrasava a espiga
já não ficava a jeito para os que vinham atrás a enfaixar. Era descompostura
pela certa. Uma vergonha!...
Trabalhavam até o Sol já ir bem alto. Ao meio dia
enchiam a barriga com um prato de feijões pequenos temperados com um fio de
azeite, um naco de pão, e água para aconchegar. Se comessem depressa ainda
poderiam descansar o corpo a uma sombra, quando a havia por perto. À uma já
estavam outra vez de foice na mão para irem até que se visse, às vezes até para
lá das dez porque, nesta altura, os dias estendiam-se, pringueiros, muito para
além do Sol posto...
Quando largavam, já mal podiam com o corpo e com a
fome, mas a ceia era ainda mais minguada que o jantar: umas sopas de pão duro
migadas para a malga, amolecidas com água e adoçadas com uma colher de açúcar.
O cansaço era tanto que estavam a mastigar e os olhos a fecharem-se. Às vezes
nem chegavam a deitar-se no monte de palha que lhes servia de cama; tombavam
para o lado e dormiam ali mesmo, ao relento, vestidos com a roupa que traziam
durante o dia, ressequida pelo suor misturado com o pó da palha. Era trabalho
adiantado para o dia seguinte, daí a meia dúzia de horas.
E era assim, todos os dias, durante um mês e meio. Ao
fim, cada homem tinha direito a um quinto do que ceifava, o que, feitas as
contas, dava um alqueire de semente por dia, mais coisa menos coisa.
Quarenta e tal alqueires de trigo, pagos a quarenta
mil reis, rendiam uma boa maquia: o dobro do que ganhariam se andassem a trabalhar
por dia, quando havia trabalho… Mas também, pudera, em cada jorna de ceifa
cabiam muito para cima de doze horas…
Saía-lhes do corpo, mas graças a Deus que teriam
farinha para as filhoses no Natal, os bolos na Páscoa, e pão trigo para os dias
de festa! O resto era vendido para ajudar a pagar os avios da mercearia e
outros arranjos da casa.
Mas às vezes as dívidas já eram tantas que quando o
carro de bois chegava à Vila com o quinhão de cada um, as sacas nem chegavam a
atravessar a soleira da porta; iam direitinhas para os credores que tinham
adiantado o dinheiro para pagar as contas que iam crescendo ao longo do ano. E
aí era uma tristeza; era certo que não haveria filhoses no Natal nem bolos na
Páscoa; só broa ou centeio, mesmo nos dias de festa…
Felizmente que nesta comunidade quase medieval, havia
sempre alguém que dividia com os vizinhos o pouco que tinha!
M.
L. Ferreira
3 comentários:
Este texto da Libânia traz-me muitas recordações, embora eu já não seja do tempo de ir ao quinto.
1.O ti Zé Maria Prata era nosso vizinho na Tapada da Dona Úrsula (mas os meus pais foram viver para lá depois daquela história do Pistotira). Todos os anos ele ia ao quinto e todos os invernos comprávamos semente à ti Maria de Jesus, para mandar moer ao moleiro da Torre que por ali passava com dois cavalos carregados de taleigas.
2.Nas nossas ceifas, o meu pai contava-me que, no quinto, os ceifeiros urinavam nos pulsos abertos pelo esforço do trabalho, para aliviarem a dor.
3.Já adolescente e a viver no Seminário do Tortosendo, um dia fui com uns amigos à Ponte Pedrinha e encontrei um grupo de ceifeiros de São Vicente que andavam a trabalhar para a Casa Garret, ali onde agora há uns pomares. Fizeram-me uma festa. Um deles era o ti Manel Carrolino, recentemente falecido. Tal como conta a Libânia, não se ia ao quinto só para o Alentejo, mas também para os campos albicastrenses e da Idanha e para a Cova da Beira.
Não sei se foram os ares da Gardunha, mas que vila situada na sua encosta deu bons frutos...isto está-se a compor.
Gostei muito.
O que se passou com a pessoa da história, passou-se com muitos homens da vila.
O meu avô Bernardo, para aquela época, tinha muita terra: nos Aldeões, na Fonte da Portela e, especialmente, na Serra. Que eu saiba, nunca trabalhou um dia por conta de outrem. Vivia da agricultura e do gado caprino. Mas teve muitos filhos e estes tinham que tratar da vida. Que remédio! Por isso, o meu pai chegou a ir ao quinto. Sinceramente, não sei bem em que época. Seria ainda jovem solteiro ou casado há pouco tempo. Nunca falei com ele sobre isso, em pormenor. Mas, enfim, todos sabíamos mais ou menos como aquilo era, como muito bem notou a Libânia na sua narrativa: um inferno!
Ainda não há muitos anos que em S. Vicente da Beira se trabalhava de "sol a sol" na agricultura.
O que me trouxe à memória alguns textos impressionantes, que nunca mais esqueci, do Alexis de Tocqueville sobre o drama dos operários, antes da regulamentação do trabalho.
Uma outra coisa em que pensei, ao ler o texto, foi na partilha dos rendimentos dos trabalhos agrícolas. Os contratos eram ao "terço" ou ao "quinto" (para o trabalhador, já se vê). O resto era para o dono da terra. Hoje, o dono, dá a colheita dos produtos a "meio" ou ao "terço" (para ele); ou mesmo sem qualquer contrapartida, só em troca de ver a terra e as árvores tratadas. Muita coisa mudou e ainda bem. Mas, às vezes, com algum exagero.
Finalmente, queria dizer que, um certo dia, o Miguel Torga (que ainda conheci pessoalmente em Coimbra), entendeu que as histórias da terra dele, contadas em livro, talvez tivessem interesse para o público em geral. Assim apareceram, entre outras obras, os "Novos Contos da Montanha”.
Histórias como as que aqui se contam...por gente a escrever bem...
Zé Barroso
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