A invernia nas faldas da Gardunha, naquele ano, como de costume, era das antigas. E aquele dia não era diferente dos demais. O céu estava carregadíssimo de nuvens negras.
Anoitecera, tinham dado as cinco da tarde no relógio velhinho da torre. Já pouco se enxergava.
Chovia água, se Deus a dava!
O forte temporal que se abateu sobre o povoado enregelava os corpos e o vento soprava, assanhado, fazendo remoinho nos telhados, levantando a telha mourisca de algumas casas que metiam água como se fora a Fonte Velha, cuja nascente, mesmo diminuindo um pouco, não falece, nem nos anos de maior seca.
Havia necessidade de consertar os algerozes por fora, durante o dia, mesmo debaixo de chuva ou tirar as tchincas das telhas, por dentro, pelo forro, às apalpadelas, só com a candeia de azeite, de luz a tremelicar. Porque, no verão, o Ti’ Manel Ubre se encarregaria de correr o telhado, preparando-o para o inverno seguinte.
A chuva enchera ribeiros e regatos. Vinha tocada a vento!
Um homem acobertado atrás do casacão de surrobeco, mesmo que levasse por cima um guarda-chuva largo, de pastor, de pano grosso e ainda que vestisse safões de pele de cabra e polainas, não evitava que a água lhe entrasse pela véstia.
A termo de se ver tão abundantemente ensopado nos bragais mais chegados ao corpo, que começava a sentir aquela impressão desagradável da roupa molhada pegada ao pelo. Uma caminhada pela serra por mor de compromissos de negócio ou jornada no campo e era certo e sabido que se ficava alagado até aos fundilhos!
«Nossa Senhora! Tanta água! Estava tentada a dizer que isto aqui na Tapada é o inferno, se não rezassem os Santos Livros que o inferno é de fogo! Credo! Está uma noite de lobos! E eu sozinha, sem ter aqui vizinhos. Só com os meus meninos, prestes a dormir»!
Estava a Ti’ Mari’ de Jesus nestas cogitações e, nisto, ia jurar que tinha ouvido, lá fora, o barulho de pancadas na porta.
«Quem é»? Mouta!
«Quem é que lá está»? E não retornava resposta.
Teria sido uma saraivada mais forte de pedrisco e vento a matraquear na madeira?
Não!
Tinha a certeza que ouvira bater!
O Ti’ Zé Maria, o seu homem, não seria. É certo que ele não tinha chave, pois havia apenas uma e essa estava na fechadura. À noite, tinha que bater quando chegava a casa, porque a porta estava sempre fechada por dentro.
Mas, se fosse ele, à uma, batia à porta de uma forma que ela logo reconheceria pelo toque e pela intuição de mulher. E à outra, não era ainda a hora habitual do seu regresso.
Nos dias em que a intempérie não permitia afazeres no campo, costumava entreter-se, até mais tarde, com os amigos, na venda do Ti’ João Arrebotes,
na praça, por baixo da casa onde agora vive o Zé Coné.
Tirou-se de cuidados, levantou-se do banquinho em que estava sentada ao lume, onde fez o caldo, afoita, que ela ainda era nova e um pedaço de mulher!
Embrulhou o tronco e a cabeça num xaile para não ir diretamente do calor para o frio e evitar, assim, constipar-se. Agarrou na candeia e dirigiu-se ao corredor que dava para a porta da rua. Rodou a chave da fechadura para a esquerda, correu o trinco e abriu.
Surgiu-lhe pela frente, de alto abaixo, no recorte retangular das lajes de granito das ombreiras, uma sombra, com contorno de gente mal definido. A fraca luz da candeia e o negrume da noite, não deixavam perceber quaisquer feições. Dava apenas para ver que se tratava de um vulto de homem.
Fosse lá quem fosse o visitante, visto assim de repente, metia respeito! Mas como por ali tudo corria na paz do Senhor, a dona da casa, embora receosa, susteve a surpresa, sem apanhar grande cagaço.
Levantou a candeia com uma mão e pôs a outra à frente do vento para que não se apagasse a chama, aproximou-a daquela visão fantasmagórica que ali aparecera inopinadamente e já lhe pôde ver melhor a cara. Mas não o reconheceu. Nem de perto, nem de longe. Nunca o tinha visto!
Estava postado na moldura da porta, encharcado, e tiritava do gelo da noite.
Tinha barba e cabelos negros bastante compridos e em desalinho, com alguns laivos grisalhos. Homem dos seus 50 ou a passar, atarracado, mas espadaúdo.
Via-se que se encontrava fisicamente debilitado, certamente pela fome ou pelos trabalhos e agruras da vida. Apresentava um aspeto andrajoso, mais do que permitiam os costumes. Mas parecia ainda mais maltratado, porque saltava imediatamente à vista que não tinha quaisquer cuidados com a barba e os cabelos.
Apercebeu-se que só estava ali aquela mulher e, eventualmente, crianças dentro da casa e que, por ora, não havia qualquer presença de homem. Mas não fez qualquer gesto intimidatório. Pelo contrário. Procurou fazer um ar sereno e um tanto humilde, como convinha a um visitante.
Fosse porque era pessoa de bem, que se tivesse por ali perdido na serrania, a caminho da Charneca ou do Louriçal (mas isso estava por provar); fosse porque precisava de se enxugar e de uma mão amiga que lhe estendesse um pedaço de pão e um prato de sopa quente. Parecia esgalfado!
Perante a porta aberta de uma casa de família, com o aconchego, mesmo momentâneo, que isso podia representar para si, a sua voz era baixa, calma e vacilante, diante da mulher que lha abrira.
«Deixe-me enxugar no seu lume, por um bocado e dê-me um prato do seu caldo; seja por quem lá tem».
Tratando-se de um indivíduo estranho, mal apresentado, com ar de poucos amigos e, ainda por cima, aparecer ali àquela hora e com aquele tempo, tudo
isto tinha
posto a mulher, de início, em alerta.
Mas esta postura do homem, de falinhas mansas, que parecia que deitava a alma ali no chão de pedra do limiar da entrada, levou-o a ganhar alguma confiança.
Parecia apenas um pobre homem. Um ferrabrás. Um maltês, sem pau nem manta. Um faminto, sem eira nem beira, como tantos outros. Um pobre diabo; ou, quando muito, um fora da lei de pequenos delitos, de roubar para saciar a fome. Que bem podia ter pertencido à quadrilha do Zé do Telhado, se tivesse sido seu contemporâneo. Um herói mais romântico que sanguinário.
E, por aqui, já havia tempo sem notícia de assaltos a pessoas ou casas, por delinquentes de vário grau de gravidade. Que iam de pequenos furtos a ameaças com faca ou arma de fogo ou mesmo morte de homem, como se dizia à boca pequena, porque isso não era fácil de confirmar.
«O que é que o traz por aqui com este tempo, homem de Deus»?
«Perdi-me aqui na serra»…
«Entre, vá ali para o lume a aquecer-se, que eu já lhe arranjo uma tigela de sopa quente. E não faça muito barulho, que os meus filhos estão no quarto a dormir».
O
homem entrou. A dona da casa atiçou melhor o lume, com um abano e pôs mais dois
troncos de pinho até fazer uma valente boutcha que iluminava a pequena cozinha
até ao teto.
O
inesperado visitante despiu o velho casaco que trazia e pôs-se de pé diante da
ala, que atingia quase um metro de altura. Virava-se, alternadamente, de frente
e de costas e logo as suas roupas soltaram rolos de vapor para o ar, como se
fosse uma panela a ferver, tal era a quantidade de água que trazia em cima.
Mais
ou menos meia hora, esteve nesta espécie de rito gestual, a enxugar-se.
Foi
o tempo durante o qual teve ainda que suster a fome de lobo que trazia, antes
de sentir o sabor da sopa que lhe havia sido prometida.
Mas
era necessário. Já tinha feito tantos sacrifícios, era mais um! Não podia
sorver uma sopa quentinha das que aquecem a alma e ao mesmo tempo sentir a
roupa molhada em cima do corpo! Era como se fosse apenas meio prazer. Ao cabo,
sentou-se num banco em frente à lareira, bastante mais reconfortado.
“Há
lá lume como o seu, senhora Maria! Isso há ele! Ná! E para mim, nesta hora, é
como uma santa bênção”!
“Por
que jornada e por que trabalhos vem a estes sítios num dia como este e da
maneira que tem estado este ano, criatura do Senhor? Não o conheço por cá»!
“Sou
um homem das serranias acima do Fundão, onde estou acantonado. Tenho vida
errante e ando por caminhos tortuosos, porque preciso de comer. A fome e a
penúria empurraram-me, por minha culpa, para o abismo. Vejo-me forçado a
procurar alimento e a descer ao povoado, como os lobos».
E
mais não adiantou. Teria teto com soalho, na serra? Vivia da agricultura e
calcorreava a montanha em busca de oportunidade de negócio para algumas peles
ou para uma ou outra cabeça de gado? Como era e como não era a sua vida e como
angariava proventos para se alimentar?
A
Ti’ Mari’ de Jesus procurou uma malga na cantareira, onde tinha a loiça
deborcada e deitou o caldo para dar ao inusitado visitante, a fumegar,
apetitoso, ainda a escaldar, que a panela ainda fervia quando meteu nela a
concha para o tirar!
Estendeu-lha,
com um bocado de broa.
«Aqui
tem e que lhe faça bom proveito»!
«Bem
haja e que Deus lhe dê saúde, que a merece».
(Continua…)
José Barroso
Um comentário:
É de artista...Talentoso.
Apreciar a narrativa com uma linguagem tão rica e colorida como a de um Aquilino ou Camilo é um verdadeiro prazer.
Soube-me, na verdade, tão bém como o caldo terá sabido ao faminto Pistotira. Um pitéu...
Mal posso esperar pelo próximo prato...
Francisco Barroso
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