O salto que ficou para trás…
«A Romaria da
Senhora do Castelo tinha fama em toda a província, embora ninguém pudesse dizer
verdadeiramente que prendas lhe afiançavam a reputação. Não se contratavam mais
de duas bandas, o que era vulgar, pois uma banda, sem ter outra pela frente,
logo o sopro lhe desfalece com uma hora de reportório, e vinho, chouriço,
cantigas, danças de roda e adufes, se os havia à farta em Montalvo, também
nunca escasseavam em qualquer arraial da beira estremenha.
Talvez o segredo
estivesse na quadra do ano, quando o trigo é um ondular luxurioso em redor do
ilhéu sobre que assenta o burgo, e há giestas a bordearem os caminhos, e os
calores, mesmo com o sol berrando, ainda são macios. Talvez as pessoas se
empolgassem com o uso de se evocar o lance histórico, muito diluído no tempo, em
que, sitiadas as muralhas, os aldeões, já à beira da rendição, haviam engordado
o último vitelo com o último alqueire de cereal, lançando-o depois sobre as
ameias, num alarde de abundância que desenganaria o inimigo, levando-o a
desistir do cerco. (Em lugar do vitelo, fazia-se rolar da mais alta torre um
bojudo pote de barro com as entranhas prenhes de flores, que se despedaçava
contra as arestas das penadias, num fragor exaltante, logo secundado pelo
estrondo dos morteiros, pela gritaria dos ganapos e pelo excitado batuque dos
adufes.) Talvez, enfim, a tradicional presença das autoridades da vila, de papo
enfolado, quando não mesmo dos maiorais da cidade e do comando da guarnição
militar, crivadinho de medalhas, como competia a um sucessor dos heróis do
castelo, dessem à romaria, por entre aquela trovoada de galas, um lustre sempre
de cobiçar.
Era caso para
admiração que essa gente graúda se misturasse assim em tal balbúrdia labrega,
mas o certo é que eles vinham, vinham com a saboreada ironia de peraltas numa
feira de saltimbancos, embora lhes fosse incómodo trepar as ruelas quase a
pino, abrir clareiras por entre cordas de camponeses vestidos de serrobeco da
cor da terra quando alqueivada nas primeiras águas, até se chegar lá ao cimo,
onde o ar se limpava da poeira revolvida e do farum a suor e a fogaças. Vinham,
pois, com uns modos de fidalga benignidade, compensando a maçada pelo ensejo de
evidenciarem a sua importância, que era feita de nadas significativos como a
saudação quase muda, mas impositiva dos vilões – o chapéu erguido o tempo
preciso até a retribuírem nem que fosse com um aceno enjoado, enquanto as
mulheres sofreavam a traquinice dos fedelhos e lhes davam o exemplo de silêncio
reverencioso, no qual se incutia um vago temor.»
Fernando
Namora: Resposta a Matilde (O Rio)
Fui lá pela primeira vez, teria uns treze ou catorze
anos. Naquele tempo subia-se a pé, desde a Relva até lá acima, ao castelo. As
ruas, quase a pino, eram ainda um
empedrado feito de calhaus irregulares e traiçoeiros; mas as pessoas, muitas a
cantar ou a tocar adufe, outras com os cabazes da merenda à cabeça ou às
costas, eram como formigas, com pressa, por ali acima.
Em dias de festa cada um trajava o que tinha de melhor.
Não me lembro do vestido que levava, mas os sapatos eram pretos, biqueira
quadrada, meio salto. Os melhores que tinha (se calhar os únicos…).
Ainda não ia a metade do caminho e um dos saltos
prendeu-se numa pedra e soltou-se. Fiquei tão aflita que até me deu vontade
chorar! Não tanto por não saber como é que ia chegar lá acima, a mancar, mas
mais pela vergonha e medo que alguém tivesse visto. Olhei á volta, à socapa, e
baixei-me para apanhar o salto, às escondidas. Quando me pus de pé estava um homem
parado à minha frente, a olhar para mim. Destoava da maior parte de nós, gente
da aldeia, pelo ar e pelo fato, à moda da cidade. Fiz-me de todas as cores, mas
ele pousou-me a mão no ombro, fixou-me o olhar e, quase em surdina, disse-me
assim: «Pois é, menina; na vida de uma pessoa há sempre um salto que fica para
trás!...».
Fiquei a cismar nas palavras e também naquela cara que
não me era estranha. Só à noite, já na terra, é que deslindei o caso. Era o
homem do retrato na capa do livro que andava a ler. Chamava-se A Casa da Malta e tinha-o requisitado da última vez que a Biblioteca da Gulbenkian
tinha estado na Praça. Quanto às palavras, são para ir deslindando ao longo do
tempo. A vida é mesmo assim: cheia de avanços e recuos, mas se calhar é por isso
que gostamos tanto dela!...
M.
L. Ferreira
Nota:
Encontrei
há dias, no Google, uma página sobre festas e romarias de todo o país. Fiquei
um pouco desiludida porque na lista do distrito de Castelo Branco não há
qualquer referência nem à Senhora da Orada, nem à festa do Senhor Santo Cristo,
tão importantes para nós. Encontrei depois uma lista do concelho onde já são
referidas, mas ainda diz que a festa do Santo Cristo se realiza na terceira
segunda feira de Setembro. Há que tempos que isso foi! Nem sei se já havia
internet…