Há vários meses que tenho este texto mais ou
menos aldravado, mas, como o Zé Teodoro gosta de apresentar estas
coisas na altura certa, só hoje o envio. Além disso, acaba de passar à
minha porta a Ladainha de Todos os Santos.
Não me vou referir à ladainha que se efetua hoje
em dia, a fim de não ferir suscetibilidades. Só vou dizer que no ano passado,
ao passar à minha porta, o Zé Pasteleiro, então o “Mandamás” da ladainha
cantou: - Sancté Ernesto!!! Todos responderam: - Ora pro nobis.
Nas longas horas vagas que passei no Seminário, dei
volta a um monte de livros e, para meu desgosto na altura, nunca consegui
encontrar um santo com o meu nome. Hoje, já muito maduro, sei que nunca
poderia haver um santo com o nome Ernesto. No capítulo dos pecadores já seria
bem mais fácil.
Não sabendo dizer quando começou esta tradição, sei
que é mais antiga que a casa do Coronel! (desculpem lá!). Tenho em minha posse
três documentos manuscritos que são os livrinhos com que antigamente se
fazia a ladainha. Destes, os dois mais recentes têm data de 17 de Fevereiro de
1918 e 18 de Fevereiro de 1918. O primeiro está assinado por Ernesto de Jesus
Hipólito e o segundo por José Gregório Hipólito. Eram os irmãos mais velhos da
minha avó Maria do Carmo, eram meus tios avós.
O terceiro documento parece ser muito mais antigo e
também muito mais usado. Os pingos de chuva de muitas quaresmas fizeram dele um
monumento. Não se preocupem que está guardado.
Uma das perguntas que me vêm nestas alturas é porquê,
sendo esta ladainha uma cerimónia religiosa, nunca é realizada por um clérigo?
Esta cerimónia quaresmal era composta por duas
orações que se interligavam. Numa procissão em que se percorriam os sete passos
que ainda hoje se encontram espalhados pela Vila, a Via Sacra, e em que em cada
passo se celebrava a passagem de Jesus por esse lugar e o que ali tinha
acontecido. Ao percorrer o caminho entre esses passos, cantava-se a Ladainha de
Todos os Santos. Era assim a ladainha. Ainda hoje é, só que naquele tempo esta
cerimónia estava vedada às mulheres.
Realizava-se todos os Domingos da Quaresma, já à
noitinha. Num tempo em que não havia televisão e as tardes de domingo eram
passadas nas tabernas a virar latas de vinho, quando os homens iam para a ladainha,
por vezes aconteciam cenas fora do vulgar.
O meu pai contou-me algumas situações que aconteceram e que ele presenciou, que no fundo podemos apelidar de engraçadas.
Os primeiros nomes que se cantavam na ladainha
eram:
- Sancta Maria
- Sancta Dei Génetrix (Geradora de Deus).
- Sancta Virgo Virginum (Virgem
das Virgens)
- Sancté Michael. E por aí adiante.
A cada nome que era cantado, os acompanhantes
respondiam:
- Ora pro nobis.
Como o cantor de serviço raramente sabia Latim e por
vezes lá para o meio da viagem já lhe começavam a faltar os nomes de santos,
tinha que usar a imaginação. Era então que as partes gagas começavam a
acontecer:
Uma vez em que o cantor não se lembrava dum nome
cantou de lá:
- Sancté é é é.
- Ora pro nobis. Ninguém reparou!
Também o Sr. Estanislau, marido da Sra. Eulália do
Café, uma vez aproveitou para se elevar a santo. Quando o cantor começou com o
Sancté e hesitou um pouquinho, logo o Estanislau o ajudou lá do fundo
cantando o seu próprio nome. Foi uma risota.
Chegou-se ao ponto de
ao passar à porta de uma mulher de vida fácil, que naquela altura
assistia cá em S. Vicente, um malandro se adiantar e cantar o nome dela
como santa.
Mas a história mais engraçada que me contaram sobre a
ladainha foi protagonizada pelo Sr. António da Marta e o filho, o Jaquim da
Marta. O Jaquim sempre foi um grande sacanita, que Deus o lá tenha.
Numa das muitas vezes em que o Sr. António fez a Ladainha,
o filho Joaquim estava à espera no quintal, por cima do Passo que
fica mesmo ao lado da casa deles, ali na Rua Velha. Quando a Ladainha
chegou ao Passo, o Sr. António abre o livrinho e começa a cantar. O filho, que
já tinha uma pedra na mão, deixou-a cair mesmo no centro do livro, que
lhe fugiu das mãos, caindo no chão. O Sr. António olhou para cima e, vendo
que tinha sido o Joaquim, diz-lhe cá de baixo em tom ameaçador:
- Anda mê filha da puta que, quando chegar a casa,
dou-te uma carga de porrada nos cornos!
Agarrou no livro e meteu rua abaixo a cantar. Sancté…
E.H.
4 comentários:
A distância entre o sonho e a realidade por vezes é enorme, mas a fé do Zé Pasteleiro é tão grande que ainda acredita na conversão do Ernesto, e por isso chama-lhe santo. Uma boa gestão de expetativas!
Eu também acredito. Para o ajudar deixo-lhe esta oração que, dizem, leva à salvação de quem a disser, principalmente agora na Quaresma:
Ave Maria Dolorosa
Tão perfeita como a rosa.
Quando Deus nasceu
Todo o mundo esclareceu.
Pastorinhos, bom dia!
Vistes por aqui passar a Virgem Maria?
A Virgem Maria por aqui passou
Com o seu livrinho na mão
Dizendo a sua oração,
Oração dos pelegrinos.
Quando Deus era menino
Andava de mar em mar
As três Marias a visitar
Com três paninhos de seda na mão
Para as cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo alimpar.
Não te deixes arrasar
Que estas são as cinco chagas
Por onde nós havemos de passar.
No alto daquela serra está um mouro,
Pergunta-lhe se ele é cristão
Se ele disser que não
Puxa pelo teu punhal
E atravessa-lhe o coração.
Oh! que talo tão pesado,
Tão rico perdão
Ter a minha alma tão limpa
Como as estrelinhas do céu.
Quem esta oração disser
Sete vezes no Encarnário
Outras sete na Quaresma
Quem a souber que a diga
Quem não a souber que a aprenda
Lá vem o dia do juízo
Que a sua alma se arrependa.
Esta oração foi-me dita por uma tia minha. Diz que a aprendeu com a dona Ludovina que tinha um livro com orações muito lindas.
Quanto aos santos invocados na ladainha, não sei se são os mesmos em todo o lado, mas numa publicação da C. M. da Idanha sobre as cerimónias pascais, encontrei o nome de todos. São quarenta e seis ao todo:
Santa Maria, Santa Madalena, Santa Isabel, Santa Teresa, Santa Rita, Santa Filomena, Santa Lúcia, Santa Josefa, Santa Anastácia, Santa Micaela, Santa Beselissa, Santa Martinha, Santa Verónica, Santa Inês, Santa Brígida, Santa Doroteia, Santa Margarida, Santa Perpétua, Santa Franciscana, Santa Tecla, Santa Catarina, Santa Mónica, Santa Joana, Santa Ângela, Santa Juliana, Santa Pulguésia, Santa Marinha, Santa Cristina, Santa Ana, Santa Marta, Santa Clara, Santa Rosa, Santa Eufémia, Santa Libânia, Santa Regina, Santa Eurélia, Santa Rafaela, Santa Gertrudes, Santa Cecília, Santa Bebiana, Santa Bárbara, Santa Leocádia, Santa Luzia, Santa Adelaide, Santa Fausta e Santa Francisca.
Estranhamente, são só mulheres. Haverá alguma razão?
M. L. Ferreira
Ernesto:
E quais são os santos (as santas) de São Vicente da Beira (dos teus livros)?
Mais uma bonita e bem contada recordação das nossas vivências.
Há dias vi, à noite, numa cidade, os Passos da Via Sacra (com Padre). É claro que a maioria das cidades tem a sua parte antiga (o velho burgo) e também as novas e modernas urbanizações. Mas a Via Sacra que presenciei foi numa freguesia (dessa cidade), de ruas largas e grandes edifícios. Improvisando-se os Passos em qualquer esquina de betão! É também evidente que o valor da oração nestas grandes ruas é o mesmo em qualquer lado. Não é isso que está em causa. Porém, foi então que me lembrei daquelas velhas e estreitas ruas medievais de S. V icente da Beira e das Ladainhass (sem Padre) que lá se realizam desde tempos imemoriais! Pensei e quase me emocionei!
Estive a ver um pequeno livrinho que tenho (edição moderna), creio que muito usado. Está escrito em Português, com tradução para Latim, onde consta o 'Ordinário da Missa' e muitas orações. Lá está também a Ladaínha. O livro tem numa das contra-capas o chamado 'Imprimatur', a que se segue o nome e cargo eclesiástico de quem o autorizou. Portanto, é a lista oficial, digamos assim, dos santos, cujos nomes podem ser nomeados na Ladainha.
Claro que o Santo Ernesto não está lá. Mas existem um santo com este nome.
Directamente de um 'site':
There is very little known about St. Ernest; ... Ernest was the Abbot of the Benedictine Abbey of Zwiefalten in Germany.
Tradução (meu inglês macarrónico):
'Sabe-se muito pouco acerca de Santo Ernesto... Ernesto foi um Abade da Abadia Beneditina de Zwiefalten, na Alemanha.'
Verifiquei ainda que morreu em 1148 e a Igreja Católica celebra-o a 7 de novembro. E esta, ó 'Arnesto' ??!! Agora não comeces a festejar os teus anos 4 dias antes...Hã, hã...
E não vale a pena comparares os teus livros de há 50 anos com o Sr. Google!
Abraços.
ZB
Também na minha terra há essa procissão mas na quinta feira santa e nem sendo orientada pelo pároco deixa de haver as peripécias de quem bebe um como a mais e se põe escondido a um canto a gritar a plenos pulmões o Ora per nobis ou a ralhar connosco de não respondermos suficientemente alto ou com o padre por espaçar muito os nomes dos santos na ladainha.
Lá serão efeitos de Baco mas não o santo que esse venera-se lá mais para sul, para os lados de benavente.
Postar um comentário