sábado, 11 de julho de 2015

Memórias da Grande Guerra - 100 anos depois

Antonio Matias dos Santos

Foram tempos do diabo, filha, que a guerra é a coisa mais feia que pode haver à face da terra! A gente ouvia dizer coisas, mas nem entendíamos muito bem o que aquilo era. Dizia-se à boca pequena que morria por lá muito homem; que quem ia, não sabia se tornava. Nós éramos rapazes novos, queríamos lá morrer na flor da idade? E ainda por cima numa terra que não era a nossa e ficava lá no quinto dos infernos.
Fiquei órfão de pai e mãe, era ainda cachopo, e sempre disse que havia de me casar cedo. A verdade é que quando assentei praça, já falava para a tua mãe. Estimava-a muito e ela também gostava de mim; até já tínhamos acordado o casamento, assim que eu acabasse a tropa. Quando fui mobilizado para a guerra ainda cheguei a pensar que o mais certo era que nunca chegaríamos a casar, mas depois jurei para mim mesmo que havia de a receber, desse o mundo as voltas desse. Falei com ela, e acordámos tratar dos papéis e casarmos antes de eu abalar para a França.
Convidámos para padrinhos uns irmãos da tua mãe que nessa altura eram sapateiros afamados em Lisboa (diz que até chegaram a fazer sapatos para a rainha D. Amélia) e acertámos o dia com o padre. Eu estava a fazer a recruta em Castelo Branco, no Regimento de Cavalaria e pedi ordem ao comandante para vir à terra. Deram-me vinte e quatro horas, e avisaram-me que se não me apresentasse a tempo era dado como desertor e ia preso. Nesse tempo não havia transportes nem dinheiro e, para virmos de Castelo Branco à terra, só a pé; de modos que na véspera do dia marcado saí do quartel já depois do sol-posto, e foi a noite toda a andar. Quando cá cheguei vinha estafado e cheio de fome, mas até parece que o coração me saltava do peito, de tanto contentamento.
Passei pelo ribeiro para me lavar, e depois passei por casa de um parente a pedir umas botas e um fato emprestados porque os padrinhos não chegaram a tempo e não tinha que vestir nem que calçar. Depois fui chamar o padre e casámos ainda de manhã, na nossa igreja. Mal tive tempo de dar um beijo de despedida à tua mãe porque foi só largar o fato e as botas, comer uma bucha e voltar logo a correr para Castelo Branco. Mas ia feliz! Por um lado, porque tinha realizado o desejo de casar com a mulher que tanto estimava, por outro, porque a deixava amparada: é que, se eu por lá morresse, ela podia herdar a sorte que me coube por morte dos meus pais, e já não tinha precisão de ficar para aí aos caídos deste e daquele.
Antes de embarcar ainda tornei à terra para ver se dormíamos ao menos uma noite juntos, mas ela não quis, e eu respeitei-a. Por causa disto, enquanto por lá andei, mangavam com ela:
- Olha lá, ó Palmira, mas tu és solteira, és casada ou és viúva?
Ela não tinha papas na língua, e respondia assim:
- Eu cá não sou solteira, que já me recebi na igreja; também não sou casada, que não conheci ainda homem nenhum, e viúva muito menos porque, que eu saiba, ele não morreu.
Cá da terra éramos uma mão cheia, os que embarcámos para a França. Fui eu, o Alberto Inês, o Luís Gonzaga e o António Batista que eram irmãos, o Aires da Ti Justa, o António Pelado, o Zé Catrino que era dos Pereiros, o Manuel da Silva, o Fernando Diogo e o Zé Cipriano. Olha, não sei se me está a faltar algum, mas creio que não.
Fizemos a viagem para a França de barco; homens e cavalos, tudo junto. A maior parte de nós nunca tinha andado de barco, nem sequer visto o mar, e íamos agoniados e cheios de medo que aquilo fosse ao fundo. Os cavalos também não iam melhor. Um deles adoeceu e deitaram-no à água; ninguém disse uma palavra, mas todos pensámos que se algum de nós calhasse a adoecer ou a morrer, era também a sorte que nos davam…
Quando chegámos ao destino, ao cabo de mais de uma semana, íamos cansados da viagem e esganados com fome. Ainda cuidámos que à chegada nos dessem alguma coisa que nos consolasse, mas estávamos bem enganados. Aquilo por lá não era melhor do que cá, e o comer era uma miséria. O mais das vezes davam-nos umas bolachas que até parecia que eram feitas de palha, e só as comíamos para não morrer de fome. Um dia fui dar com o Alberto lavado em lágrimas, quase a desfalecer. Perguntei-lhe o que é que ele tinha, e ele tornou-me:
- O que é que eu hei de ter, Antonho? Dói-me tanto o estômado, da fome que tenho, que nem vejo nada em redor!
Parti com ele metade da minha ração e lá se acalmou um bocado. 
A França é uma terra dos diabos. O céu sempre cinzento, só de raro em raro é que víamos o sol. No inverno o frio e a neve eram tantos que a gente enregelava até aos ossos. Os dedos mal os podíamos mexer, sempre engadanhados e cheios de frieiras; às vezes até o bafo parece que gelava. No sítio onde andávamos já não havia nada a que atear fogo para nos aquecermos, e ainda chegámos a roubar carvão dos vagões dos comboios, mas sempre com medo que nos apanhassem e nos dessem algum castigo. Eram o damonho, aqueles comandantes! Sempre inchados, a valerem-se dos galões, não perdoavam nada. Às vezes o desânimo era tanto que nos dava vontade de fazer uma asneira.
Um dia, estávamos a cear, e dabanão vimos o António Batista pôr-se de pé, agarrar na malga do caldo e aventar com ela para o chão. Depois pegou na arma e virou-se para nós com os olhos esbugalhados, a berrar:
- Hoje, quem manda aqui sou eu!
Dizem que estava bêbado, com alguma coisa que lhe tinham dado a beber, mas, cá para mim, foi a guerra que lhe transtornou a cabeça. A verdade é que agarraram logo nele e levaram-no preso. Encafuaram-no numa enxovia que era só lama e formigas; pior do que se fosse um bácoro. Chegavam-lhe qualquer coisa de comer e de beber por uma fisga, e nunca mais viu a luz do dia. Quando receberam a notícia, os pais dele ainda foram ter com o Major da Casa Cunha para ver se podia fazer alguma coisa, mas pelos vistos não mostrou muito empenho em ajudá-los e não mexeu uma palha. Desesperados, empenharam tudo quanto tinham e puseram-se a caminho da França para ver se ainda o encontravam com vida, mas a meio da viagem voltaram para trás, desenganados, porque lhes disseram que o filho já tinha morrido. Bom cachopo, e amigo do seu amigo…
O Zé Cipriano era um dos mais instruídos cá da terra. Os pais tinham alguma coisa de seu e, como só tinham aquele filho, mandaram-no educar pelo padre José Antunes que lhe deu a escola e o ensinou a falar línguas estrangeiras. Por causa disso andava quase sempre ao pé do comandante para servir de intérprete quando tinham que interrogar os prisioneiros. Um dia estavam todos na tenda, o comandante e mais uns oficiais, e cai lá uma granada que mata uma tormenta deles. Os que não morreram fugiram como puderam, e foi o Zé Lopes, que por Deus se salvou, que teve mão nas tropas. Aquilo foi considerado um ato de bravura e promoveram-no a 2º sargento. Quando a guerra acabou fizeram um desfile por uma grande avenida de Paris abaixo, e ele estava na primeira fila; quando cá chegou deram-lhe a medalha da Cruz de Guerra.
Mas morreu por lá muito homem. Diz que ao todo foram algumas duas ou três vezes o povo inteiro de Portugal. Aquilo às vezes até parecia o fim do mundo, com tanto fogo a cair-nos em cima que até ficávamos atordoados. Os que não morriam varados com uma bala, morriam de doenças malignas ou eram eles mesmos que punham termo à vida; e, dos que voltaram, muitos vinham entrevados, sem pernas ou sem braços; outros vinham esgazeadinhos de todo.  
O nosso maior medo era morrer e ficarmos enterrados por lá, nas valas que nós mesmos éramos obrigados a abrir. Sempre que víamos tombar alguém, pensávamos logo que a seguir podia ser um de nós, e os que éramos mandados a abrir as valas dizíamos muitas vezes que podíamos estar a cavar a nossa própria sepultura; às vezes era verdade… 
Como se não bastasse o resto, as saudades da família apertavam cada vez mais, à medida que o tempo passava. As notícias da terra eram poucas, e nos dias asselanados fartava-se a gente de chorar, especialmente no Natal e na festa do Senhor Santo Cristo. Quando o António Pelado nos via assim, voltava-se para nós e punha-se a cantar:

Soldado que vais p’ra guerra,
Vais deixar a tua terra,
O cantinho do teu lar;
Tantas mágoas te consomem,
Mas não choras porque és homem,
E é feio um homem chorar.

Mas ele também chorava, que a gente bem lhe via os olhos a arrasarem-se-lhe de água…
Uma vez, nas vésperas do Natal, o Luís Gonzaga apareceu-nos lá com uma pouca de farinha e uns ovos. Fizemos filhós. Não ficaram como as que estávamos avezados a comer na nossa terra, mas foi como se estivéssemos a comer a melhor coisa do mundo. À falta do madeiro para a fogueira apanhámos um braçado de carapeteiro bravo, que havia por lá muito, ateámos-lhe fogo e cantámos O Meu Menino Jesus. Foi só um arremedo do Natal da nossa terra, mas sentimo-nos um pouco mais aconchegados, apesar do caramelo da noite.
Um dia, já andávamos desacorçoadinhos de todo, chegou lá a notícia de que a Nossa Senhora tinha aparecido em Fátima e que tinha dito que a guerra ia acabar. Até chorámos de alegria e rezámos ao Senhor Santo Cristo a pedir que nos deixasse regressar todos, sãos e salvos, a casa. Ele ouviu-nos e, fora o infeliz do António Batista, voltámos todos ao nosso cantinho.
Como agradecimento, quando cá chegámos, juntámo-nos todos e oferecemos-lhe um pálio, todo bordado a ouro, comprado com o dinheiro dos fios e dos brincos que as mães duns e as mulheres doutros venderam. Tinha seis varas e foi o mais lindo que o Santo Cristo alguma vez teve!
Também pude, finalmente, fazer da tua mãe uma mulher casada como é dado, e tu nasceste ao cabo de um ano. A coisa mais linda que Deus pôs à face da terra!

Nota: Esta história foi escrita com base nas memórias que a Ti Lurdes Barroso guarda do que ouvia contar ao pai, o senhor António Matias dos Santos, sobre a Grande Guerra. A Ti Felicidade, o Ti Albino e a Zulmira (Fadista) também deram alguma ajuda.
A lista dos soldados mobilizados para França pode não estar completa, porque me referiram outros nomes que não pude confirmar.
Para além dos soldados que combateram em França, houve outros que foram mobilizados para África. Foi o caso de Agostinho Miguel (o Sargento) e Francisco Candeias que estiveram em Moçambique. O Ti Albino, filho do Senhor Agostinho, contou-me que o pai também tinha sido educado pelo padre José Antunes. Chegou a sargento e tinha vontade de seguir a carreira militar, mas teve que desistir porque o comandante da companhia tinha enganado a criada e queria que ele casasse com ela. Ele, que já namorava uma rapariga (a mais linda cá da terra), negou-se e, por causa disso, começou a ser perseguido pelo superior. Com medo, abandonou a tropa e, como vingança, o comandante fez com que não lhe fosse atribuída a pensão a que tinha direito. Só começou a recebê-la já quase no fim da vida.
Quanto ao pálio oferecido pelos soldados ao Senhor Santo Cristo, parece que desapareceu da Igreja da Misericórdia, passados alguns anos.
Teria sido interessante apresentar alguns documentos dessa época, mas parece que resta pouca coisa e o que existe está na posse de familiares dispersos pelo mundo. Disseram-me que o GEGA também tem algumas fotografias e outra documentação desses tempos, mas, apesar da insistência, não consegui ter acesso a eles. Valeram-me a Ti Lurdes Barroso e a Maria José Agostinho, neta do senhor Alberto Inês, que, generosamente, me cederam tudo o que tinham.

M. L. Ferreira

5 comentários:

Anônimo disse...

O meu bisavô do Ninho também foi para a Flandres e o meu bisavô do Mourelo para Moçambique. No meu caso ambos regressaram para contar a sua história!
Cumprimentos

José Teodoro Prata disse...

Ainda não sabia quem fora António Matias dos Santos e já adivinhava que era o avô do Tó Barroso (António Barroso Inês), pois o neto é a cara chapada do avô.
Excelente memória a da ti Lurdes e magnífico texto da Libânia!
Já li muitos testemunhos destes, escritos pelos meus alunos do 9.º ano, mas este tem tal quantidade e qualidade de informações que o torna uma preciosidade histórica, não só para os descendentes do visado, mas também de outros soldados.
Que dizer das filhós de Natal, com a farinha que o ti Luís Gonzaga Arranjou, sabe-se lá como? E do soldado que enlouqueceu com o stress da guerra e acabou os seus dias nas masmorras? Ou do romantismo do soldado que casa antes de partir, mas não chega a consumar o casamento?
E a fogueira de Natal, com ramos de carapeteiro? Sabemos agora que o nosso "Ó meu Menino Jesus" foi entoado nas trincheiras da Flandres, no Natal de 1917!!!
Foi um grande orgulho, para mim, poder publicar esta história.

José Teodoro Prata disse...

E a cantiguinha do Tonho Pelado? Meu Deus...

Anônimo disse...

Uma beleza...triste
F. Barroso

Anônimo disse...

-Isso é que era amor...
São Paulo na carta aos romanos; capítulo 1-versículo 17, diz:- "O justo viverá da fé"
Eram assim nossos avós "agarravam-se" ao Senhor Santo Cristo porque tinham fé.
Os que por lá andaram lutando, só o António Batista não voltou, não morreu em combate; não.Depois de muitos tormentos, a saudade, a fome, o frio... as autoridades em vez de o ajudarem,"encafuaram-no numa enxovia"
Um dia entrei no cemitério de Richebourg que fica perto da cidade de Lille, é um memorial ao soldado português, ali repousam cerca de 2000 bravos que pereceram na grande batalha de La Lys, ao fundo em granito as armas de Portugal, a bandeira portuguesa asteada permanentemente, quem sabe se não é neste "monumental" cemitério que repousam as cinzas do vicentino António Batista
As trincheiras (valas) recordam os horrores daquela guerra sangrenta, que suplicio Deus meu; lama, água, neve...
-Graças aos enxidros a nossa memória colectiva vai perdurando para além da morte. Cada vez que morre um (a) idoso(a) é uma biblioteca que desaparece também
...E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando...
Os Lusiadas; canto primeiro-2.
J.M.S