Antonio Matias dos Santos
Foram
tempos do diabo, filha, que a guerra é a coisa mais feia que pode haver à face
da terra! A gente ouvia dizer coisas, mas nem entendíamos muito bem o que
aquilo era. Dizia-se à boca pequena que morria por lá muito homem; que quem ia,
não sabia se tornava. Nós éramos rapazes novos, queríamos lá morrer na flor da
idade? E ainda por cima numa terra que não era a nossa e ficava lá no quinto
dos infernos.
Fiquei
órfão de pai e mãe, era ainda cachopo, e sempre disse que havia de me casar
cedo. A verdade é que quando assentei praça, já falava para a tua mãe. Estimava-a
muito e ela também gostava de mim; até já tínhamos acordado o casamento, assim
que eu acabasse a tropa. Quando fui mobilizado para a guerra ainda cheguei a
pensar que o mais certo era que nunca chegaríamos a casar, mas depois jurei para
mim mesmo que havia de a receber, desse o mundo as voltas desse. Falei com ela,
e acordámos tratar dos papéis e casarmos antes de eu abalar para a França.
Convidámos
para padrinhos uns irmãos da tua mãe que nessa altura eram sapateiros afamados
em Lisboa (diz que até chegaram a fazer sapatos para a rainha D. Amélia) e
acertámos o dia com o padre. Eu estava a fazer a recruta em Castelo Branco, no
Regimento de Cavalaria e pedi ordem ao comandante para vir à terra. Deram-me vinte
e quatro horas, e avisaram-me que se não me apresentasse a tempo era dado como
desertor e ia preso. Nesse tempo não havia transportes nem dinheiro e, para
virmos de Castelo Branco à terra, só a pé; de modos que na véspera do dia
marcado saí do quartel já depois do sol-posto, e foi a noite toda a andar.
Quando cá cheguei vinha estafado e cheio de fome, mas até parece que o coração
me saltava do peito, de tanto contentamento.
Passei pelo
ribeiro para me lavar, e depois passei por casa de um parente a pedir umas
botas e um fato emprestados porque os padrinhos não chegaram a tempo e não
tinha que vestir nem que calçar. Depois fui chamar o padre e casámos ainda de
manhã, na nossa igreja. Mal tive tempo de dar um beijo de despedida à tua mãe
porque foi só largar o fato e as botas, comer uma bucha e voltar logo a correr
para Castelo Branco. Mas ia feliz! Por um lado, porque tinha realizado o desejo
de casar com a mulher que tanto estimava, por outro, porque a deixava amparada:
é que, se eu por lá morresse, ela podia herdar a sorte que me coube por morte
dos meus pais, e já não tinha precisão de ficar para aí aos caídos deste e
daquele.
Antes de
embarcar ainda tornei à terra para ver se dormíamos ao menos uma noite juntos,
mas ela não quis, e eu respeitei-a. Por causa disto, enquanto por lá andei, mangavam
com ela:
- Olha lá,
ó Palmira, mas tu és solteira, és casada ou és viúva?
Ela não tinha papas na língua, e respondia
assim:
- Eu cá não
sou solteira, que já me recebi na igreja; também não sou casada, que não
conheci ainda homem nenhum, e viúva muito menos porque, que eu saiba, ele não
morreu.
Cá da terra
éramos uma mão cheia, os que embarcámos para a França. Fui eu, o Alberto Inês,
o Luís Gonzaga e o António Batista que eram irmãos, o Aires da Ti Justa, o
António Pelado, o Zé Catrino que era dos Pereiros, o Manuel da Silva, o
Fernando Diogo e o Zé Cipriano. Olha, não sei se me está a faltar algum, mas
creio que não.
Fizemos a
viagem para a França de barco; homens e cavalos, tudo junto. A maior parte de
nós nunca tinha andado de barco, nem sequer visto o mar, e íamos agoniados e cheios
de medo que aquilo fosse ao fundo. Os cavalos também não iam melhor. Um deles
adoeceu e deitaram-no à água; ninguém disse uma palavra, mas todos pensámos que
se algum de nós calhasse a adoecer ou a morrer, era também a sorte que nos
davam…
Quando
chegámos ao destino, ao cabo de mais de uma semana, íamos cansados da viagem e
esganados com fome. Ainda cuidámos que à chegada nos dessem alguma coisa que
nos consolasse, mas estávamos bem enganados. Aquilo por lá não era melhor do
que cá, e o comer era uma miséria. O mais das vezes davam-nos umas bolachas que
até parecia que eram feitas de palha, e só as comíamos para não morrer de fome.
Um dia fui dar com o Alberto lavado em lágrimas, quase a desfalecer.
Perguntei-lhe o que é que ele tinha, e ele tornou-me:
- O que é
que eu hei de ter, Antonho? Dói-me tanto o estômado,
da fome que tenho, que nem vejo nada em redor!
Parti com
ele metade da minha ração e lá se acalmou um bocado.
A França é uma
terra dos diabos. O céu sempre cinzento, só de raro em raro é que víamos o sol.
No inverno o frio e a neve eram tantos que a gente enregelava até aos ossos. Os
dedos mal os podíamos mexer, sempre engadanhados e cheios de frieiras; às vezes
até o bafo parece que gelava. No sítio onde andávamos já não havia nada a que
atear fogo para nos aquecermos, e ainda chegámos a roubar carvão dos vagões dos
comboios, mas sempre com medo que nos apanhassem e nos dessem algum castigo. Eram
o damonho, aqueles comandantes! Sempre
inchados, a valerem-se dos galões, não perdoavam nada. Às vezes o desânimo era
tanto que nos dava vontade de fazer uma asneira.
Um dia,
estávamos a cear, e dabanão vimos o António Batista pôr-se de pé, agarrar na
malga do caldo e aventar com ela para o chão. Depois pegou na arma e virou-se
para nós com os olhos esbugalhados, a berrar:
- Hoje,
quem manda aqui sou eu!
Dizem que
estava bêbado, com alguma coisa que lhe tinham dado a beber, mas, cá para mim,
foi a guerra que lhe transtornou a cabeça. A verdade é que agarraram logo nele
e levaram-no preso. Encafuaram-no numa enxovia que era só lama e formigas; pior
do que se fosse um bácoro. Chegavam-lhe qualquer coisa de comer e de beber por
uma fisga, e nunca mais viu a luz do dia. Quando receberam a notícia, os pais
dele ainda foram ter com o Major da Casa Cunha para ver se podia fazer alguma
coisa, mas pelos vistos não mostrou muito empenho em ajudá-los e não mexeu uma
palha. Desesperados, empenharam tudo quanto tinham e puseram-se a caminho da
França para ver se ainda o encontravam com vida, mas a meio da viagem voltaram
para trás, desenganados, porque lhes disseram que o filho já tinha morrido. Bom
cachopo, e amigo do seu amigo…
O Zé
Cipriano era um dos mais instruídos cá da terra. Os pais tinham alguma coisa de
seu e, como só tinham aquele filho, mandaram-no educar pelo padre José Antunes
que lhe deu a escola e o ensinou a falar línguas estrangeiras. Por causa disso
andava quase sempre ao pé do comandante para servir de intérprete quando tinham
que interrogar os prisioneiros. Um dia estavam todos na tenda, o comandante e
mais uns oficiais, e cai lá uma granada que mata uma tormenta deles. Os que não
morreram fugiram como puderam, e foi o Zé Lopes, que por Deus se salvou, que teve
mão nas tropas. Aquilo foi considerado um ato de bravura e promoveram-no a 2º
sargento. Quando a guerra acabou fizeram um desfile por uma grande avenida de
Paris abaixo, e ele estava na primeira fila; quando cá chegou deram-lhe a
medalha da Cruz de Guerra.
Mas morreu
por lá muito homem. Diz que ao todo foram algumas duas ou três vezes o povo
inteiro de Portugal. Aquilo às vezes até parecia o fim do mundo, com tanto fogo
a cair-nos em cima que até ficávamos atordoados. Os que não morriam varados com
uma bala, morriam de doenças malignas ou eram eles mesmos que punham termo à
vida; e, dos que voltaram, muitos vinham entrevados, sem pernas ou sem braços;
outros vinham esgazeadinhos de todo.
O nosso
maior medo era morrer e ficarmos enterrados por lá, nas valas que nós mesmos
éramos obrigados a abrir. Sempre que víamos tombar alguém, pensávamos logo que
a seguir podia ser um de nós, e os que éramos mandados a abrir as valas
dizíamos muitas vezes que podíamos estar a cavar a nossa própria sepultura; às
vezes era verdade…
Como se não
bastasse o resto, as saudades da família apertavam cada vez mais, à medida que
o tempo passava. As notícias da terra eram poucas, e nos dias asselanados fartava-se a gente de chorar,
especialmente no Natal e na festa do Senhor Santo Cristo. Quando o António
Pelado nos via assim, voltava-se para nós e punha-se a cantar:
Soldado que
vais p’ra guerra,
Vais deixar
a tua terra,
O cantinho
do teu lar;
Tantas
mágoas te consomem,
Mas não choras
porque és homem,
E é feio um
homem chorar.
Mas ele
também chorava, que a gente bem lhe via os olhos a arrasarem-se-lhe de água…
Uma vez,
nas vésperas do Natal, o Luís Gonzaga apareceu-nos lá com uma pouca de farinha
e uns ovos. Fizemos filhós. Não ficaram como as que estávamos avezados a comer
na nossa terra, mas foi como se estivéssemos a comer a melhor coisa do mundo. À
falta do madeiro para a fogueira apanhámos um braçado de carapeteiro bravo, que
havia por lá muito, ateámos-lhe fogo e cantámos O Meu Menino Jesus. Foi só um
arremedo do Natal da nossa terra, mas sentimo-nos um pouco mais aconchegados,
apesar do caramelo da noite.
Um dia, já
andávamos desacorçoadinhos de todo,
chegou lá a notícia de que a Nossa Senhora tinha aparecido em Fátima e que
tinha dito que a guerra ia acabar. Até chorámos de alegria e rezámos ao Senhor
Santo Cristo a pedir que nos deixasse regressar todos, sãos e salvos, a casa.
Ele ouviu-nos e, fora o infeliz do António Batista, voltámos todos ao nosso
cantinho.
Como agradecimento,
quando cá chegámos, juntámo-nos todos e oferecemos-lhe um pálio, todo bordado a
ouro, comprado com o dinheiro dos fios e dos brincos que as mães duns e as
mulheres doutros venderam. Tinha seis varas e foi o mais lindo que o Santo
Cristo alguma vez teve!
Também pude,
finalmente, fazer da tua mãe uma mulher casada como é dado, e tu nasceste ao
cabo de um ano. A coisa mais linda que Deus pôs à face da terra!
Nota: Esta história foi escrita com base nas memórias que a Ti Lurdes Barroso
guarda do que ouvia contar ao pai, o senhor António Matias dos Santos, sobre a
Grande Guerra. A Ti Felicidade, o Ti Albino e a Zulmira (Fadista) também deram
alguma ajuda.
A
lista dos soldados mobilizados para França pode não estar completa, porque me
referiram outros nomes que não pude confirmar.
Para
além dos soldados que combateram em França, houve outros que foram mobilizados
para África. Foi o caso de Agostinho Miguel (o Sargento) e Francisco Candeias
que estiveram em Moçambique. O Ti Albino, filho do Senhor Agostinho, contou-me que
o pai também tinha sido educado pelo padre José Antunes. Chegou a sargento e
tinha vontade de seguir a carreira militar, mas teve que desistir porque o
comandante da companhia tinha enganado a criada e queria que ele casasse com
ela. Ele, que já namorava uma rapariga (a mais linda cá da terra), negou-se e,
por causa disso, começou a ser perseguido pelo superior. Com medo, abandonou a
tropa e, como vingança, o comandante fez com que não lhe fosse atribuída a
pensão a que tinha direito. Só começou a recebê-la já quase no fim da vida.
Quanto
ao pálio oferecido pelos soldados ao Senhor Santo Cristo, parece que
desapareceu da Igreja da Misericórdia, passados alguns anos.
Teria
sido interessante apresentar alguns documentos dessa época, mas parece que
resta pouca coisa e o que existe está na posse de familiares dispersos pelo
mundo. Disseram-me que o GEGA também tem algumas fotografias e outra
documentação desses tempos, mas, apesar da insistência, não consegui ter acesso
a eles. Valeram-me a Ti Lurdes Barroso e a Maria José Agostinho, neta do senhor
Alberto Inês, que, generosamente, me cederam tudo o que tinham.
M. L. Ferreira
5 comentários:
O meu bisavô do Ninho também foi para a Flandres e o meu bisavô do Mourelo para Moçambique. No meu caso ambos regressaram para contar a sua história!
Cumprimentos
Ainda não sabia quem fora António Matias dos Santos e já adivinhava que era o avô do Tó Barroso (António Barroso Inês), pois o neto é a cara chapada do avô.
Excelente memória a da ti Lurdes e magnífico texto da Libânia!
Já li muitos testemunhos destes, escritos pelos meus alunos do 9.º ano, mas este tem tal quantidade e qualidade de informações que o torna uma preciosidade histórica, não só para os descendentes do visado, mas também de outros soldados.
Que dizer das filhós de Natal, com a farinha que o ti Luís Gonzaga Arranjou, sabe-se lá como? E do soldado que enlouqueceu com o stress da guerra e acabou os seus dias nas masmorras? Ou do romantismo do soldado que casa antes de partir, mas não chega a consumar o casamento?
E a fogueira de Natal, com ramos de carapeteiro? Sabemos agora que o nosso "Ó meu Menino Jesus" foi entoado nas trincheiras da Flandres, no Natal de 1917!!!
Foi um grande orgulho, para mim, poder publicar esta história.
E a cantiguinha do Tonho Pelado? Meu Deus...
Uma beleza...triste
F. Barroso
-Isso é que era amor...
São Paulo na carta aos romanos; capítulo 1-versículo 17, diz:- "O justo viverá da fé"
Eram assim nossos avós "agarravam-se" ao Senhor Santo Cristo porque tinham fé.
Os que por lá andaram lutando, só o António Batista não voltou, não morreu em combate; não.Depois de muitos tormentos, a saudade, a fome, o frio... as autoridades em vez de o ajudarem,"encafuaram-no numa enxovia"
Um dia entrei no cemitério de Richebourg que fica perto da cidade de Lille, é um memorial ao soldado português, ali repousam cerca de 2000 bravos que pereceram na grande batalha de La Lys, ao fundo em granito as armas de Portugal, a bandeira portuguesa asteada permanentemente, quem sabe se não é neste "monumental" cemitério que repousam as cinzas do vicentino António Batista
As trincheiras (valas) recordam os horrores daquela guerra sangrenta, que suplicio Deus meu; lama, água, neve...
-Graças aos enxidros a nossa memória colectiva vai perdurando para além da morte. Cada vez que morre um (a) idoso(a) é uma biblioteca que desaparece também
...E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando...
Os Lusiadas; canto primeiro-2.
J.M.S
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