Nem bom vento, nem bom casamento
“[Um
dos elementos fundamentais na estratégia de desenvolvimento passa pelo]
aprofundamento e melhoria das relações transfronteiriças…cimentando a
convivência com Espanha.» (in Estratégia
de desenvolvimento do concelho de Castelo Branco, 2015).
Sebastião
Baldaque, como nós todos, arreava nos espanhóis forte e feio. Depois, ficou
diferente, por causa duma santa, dizia ele. É um caso de perversidade, mais uma
malfeitoria que eles nos fizeram.
Sobre
não gostarmos deles, todos sabemos as razões. Dois ou três exemplos, só para
sinalizar a atitude: primeiro, aquela vergonha do conde Fernão Peres, metido na
cama da dona Tareja, a viúva do nosso conde Henrique, e o D. Afonso VI a dar
guerra ao nosso rei fundador, negando-lhe a nossa independência; uns séculos
passados, foi Atoleiros, foi Aljubarrota, foi a descendência espanhola do
imperador Carlos V, que nos deu uma dinastia de Filipes, a nossa terceira, foi Olivença,
perdida na episódica Guerra das Laranjas, e, já no nosso tempo, salvo seja, no
limiar da Segunda Guerra, a invasão de Portugal pelos falangistas do Franco,
que esteve a pontos de acontecer. Não basta? Então, o que nos veio de bom daquele
lado, hein? Os cemitérios cheios de mortos pela gripe espanhola?
O
Cantinflas e o Joselito não nos mudaram, mesmo se parece o contrário. Pois, davam
na televisão os filmes do Cantinflas (afinal, mexicano, que é uma espécie de espanhol,
para pior), mas nós não lhes achávamos graça nenhuma; do Joselito, era mais as
canções, os miúdos às vezes punham-se a cantá-las, mas a gente “assoava-os”, e a
coisa ficava resolvida.
Houve
ainda a invasão dos calendários. Era raro, mas houve quem o fizesse – uma
fugida a Piedras Albas, com variante a Zarza La Mayor, a comprar loiça de pirex.
Na altura ainda se deitavam gatos em pratos e caçoilas partidos. Funcionava de
uma forma simples: metiam-se os três ou quatro num carro, à saída da missa, em
São Vicente, e ala para a fronteira; em geral a coisa corria bem, a Guardia
Civil, na presunção de se tratar de cristãos, fechava os olhos; do lado de cá,
o santo e a senha era o nome do agente Fr…., da brigada móvel da Pide,
conhecido, ou da família, por sinal cá da terra. À volta, traziam pirexes: pratos,
copos, jarros para água e para o vinho, transparentes, em verde ou castanho – e
calendários de pendurar na parede, cada um trazendo quantos quisesse. Todas as
casas tinham um, às vezes mais.
Mas
sofriam, os pobres que se metiam em tais aventuras. Fome, quero dizer. Em tais
terras, logo que se passa a fronteira, não se consegue comer nada de jeito –
falo pelo que ouvi dizer. Comida de garfo, não sabe uma pessoa como há-de
perguntá-la, pede-se uma sandes de presunto e eles não sabem o que é; acaba por
se comer, sempre, umas sandes de queijo, que é a única palavra, de conduto, que
eles entendem, que, a tudo o que se diz, quando topam que somos portugueses, é
só “não entiendo! não entiendo!”, a gente tentando explicar, e aqueles filhos
da mãe sem quererem perceber.» Um pobre lusitano que ponha o pé em terra do
lado de lá, arrisca-se a morrer de fome.
Bem
o desafiaram, mas Sebastião nunca quis ir. Não obstante, em casa dele, a data
do dia conferia-se pelo calendário da Casa Pantrigo, de Zarza La Mayor, por
sinal pendurado na cozinha.
Sebastião
Baldaque apareceu-nos um dia bastante variado, assim como se tivesse abandonado
a religião dos pais, convertendo-se a uma outra. Na altura, ainda a missa era
em latim. Primeiro veio com aquela do Viriato – dizia ele que, sendo um herói
português, era também (calculem!) um herói espanhol; um tempo depois, que tinha
lido uns versos de Lorca, que até não era mau poeta, e Os prazeres e as sombras, do Ballester, que era um dos grandes
romances do século XX. O homem estava mal, concluímos, e a doença não era
passageira.
Nós
não entendíamos a grande volta que dera o tio Sebastião. Percebendo a nossa
desorientação, Baldaque deixava escapar que tudo era obra da santa de Málaga – que,
assim de repente, não sabíamos que santa fosse. Eu, por mim, achei que era uma
figura de estilo, mas havia outras interpretações (o Patanucho, que já tinha
estado em Lisboa, diria, um tempo depois: «Santa? De Málaga? É a Marisol,
aqueles olhos viram a cabeça a qualquer um!»). Enfim, opiniões, cada um ficou no
que lhe pareceu.
Fosse
como fosse, o que o virou era espanhol ou tinha vindo de Espanha. E, em boa
verdade, se poderíamos – até – fazer tábua rasa da história e esquecer a
tradição, passar um pano sobre as ofensas que deles recebemos, e darmo-nos com
eles, mais que não fosse, por caridade cristã, isso deixara de ser possível. Entenda-se:
Sebastião Baldaque era para nós uma referência, a sua opinião era a nossa
opinião; provavelmente era o único sanvicentino que não nos importaríamos de
ver em estátua, na praça de São Vicente – com o pelourinho ao lado, ou mesmo
sem ele. Terem virado um homem assim, como fizeram, é inultrapassável,
atingindo-nos no que temos de fundamental. Isso não se perdoa.
Agora
que andam por aí outras modas, fique o registo. Já somos
menos do que noutro tempo, os que não gostamos dos espanhóis, mas resistimos.
Somos gente simples e honrada. Também por isso, como no passado, quando as
trovoadas vêm mais fortes, batidas a vento do lado da serra, queimamos folhas
de loureiro e rezamos a Santa Bárbara, enquanto ensinamos aos filhos que “de
Espanha, nem bom vento, nem bom casamento”.
José Miguel
Teodoro
2 comentários:
Fosse qual fosse a santa que lhe deu a volta, o certo é que este Sebastião Baldaque era um visionário! Hoje, apesar das ofensas que encheram tantas páginas nos livros de História e nos deixaram tantas mágoas, já quase todos temos o provérbio como um mito.
Extraordinárias, as memórias daquele tempo! Os serviços de pirex e pequenos eletrodomésticos (o maior desejo de qualquer dona de casa ou moça casadoura); as gorras, as alpergatas e os caramelos; mais tarde as calças Lois, com que todos sonhávamos; e muitas outras banalidades, raras por cá, que faziam tanta gente desafiar a autoridade e a sorte.
Hoje mal damos pelo atravessar da fronteira e o esforço para nos entendermos é quase igual dos dois lados. Só quanto ao comer é que ainda tem que se lhe diga…
M. L. Ferreira
No meu Ensino Secundário, o padre prefeito, um raiano de Aldeia da Ponte, oferecia a todos caramelos espanhóis, no aniversário de algum de nós.
Foram eles os culpados de me apodrecerem os primeiros dentes definitivos. Aquilo cola-se nos dentes e não sai!).
Somos diferentes na comida e nos modos, sobretudo estes castelhanos que são muito imperialistas/dominadores (mesmo para as outras regiões de Espanha).
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