quinta-feira, 28 de julho de 2016

Partida - estrutura social


1 – Vestígios de organização comunitária

a)  – Generalidades:

Ao observador menos atento poderia parecer não existirem na população da Partida quaisquer manifestações de comunitarismo, dado não existirem terras comuns, antes se encontrando a propriedade muitíssimo dividida e ser a exploração feita individualmente.
Porém, e como não podia deixar de ser num meio onde cada um depende do seu vizinho para a realização de múltiplas tarefas e suprimento das mais diversas dificuldades, são muitas e variadas as formas como as pessoas aqui se agregam para, em conjunto, realizarem o que a cada um seria impossível. 

– Fornos públicos

Existem os da Barroca, da Barreira, do Cabeço, do Esteval e o do Cordágua.




Fornos do Esteval e da Barreira, na atualidade.

O único verdadeiramente de todo o povo é o da Barroca, que é também o mais antigo. Os restantes já foram construídos pelos moradores das proximidades do local onde se situam, aos quais se restringe geralmente a sua utilização. Não há, no entanto, qualquer registo de propriedade e a posse é meramente costumeira. A utilização por um não-dono é sempre por empréstimo, nunca dando lugar ao pagamento de qualquer aluguer.
Não existe a profissão de forneiro ou forneira. Cada mulher que deseja utilizar um forno começa por colocar nele um sinal (pequena porção de lenha colocada na boca do forno). Se já houver nele outro sinal tem que procurar saber a quem pertence, para saber o dia e a hora que convém à primeira, e se a quantidade de pão de ambas couber numa fornada e a hora de uma convém à outra, combinarem cozer juntas.
Acontece quase sempre juntarem-se duas, três ou mais vizinhas para uma cozedura, por cada uma cozer pequenas quantidades de pão e ser assim necessária menos quantidade de lenha de cada uma para aquecer o forno.
Por meio dos sinais colocados no forno é estabelecido um calendário cujo cumprimento decorre quase sempre na melhor ordem. Se uma vez por outra surgem discussões entre as vizinhas interessadas, são resolvidos sem recurso a qualquer autoridade pública, embora não deixem de ser aproveitadas para cada uma apontar à outra os defeitos que supõe ter.
Terminada a cozedura, cada uma leva o seu pão, não havendo qualquer poia ou maquia, pois como já se disse não há forneiro ou forneira, sendo os fornos utilizados directamente pelos interessados.

b)  – Moinhos, lagares e azenhas

Aqui verifica-se uma propriedade colectiva, mas não pública. Cada lagar, moinho ou azenha tem os seus donos e os vizinhos que deles se quiserem servir terão que pagar uma poia ou maquia.

I – Lagares:

Existem três lagares para fabrico de azeite. O Cimeiro, o Novo ou do Portabeira e o Fundeiro, cada um com duas varas.

        

Parte do engenho da moagem da azeitona do lagar Cimeiro. 
A roda foi reutilizada como escultura no Parque Natural da Ribeirinha

O quinhão base é o oitavo, o que não quer dizer que o número de condóminos seja rigorosamente de oito. Pode um só dono possuir mais do que um oitavo, ou um mesmo oitavo pertencer a mais que um dono. Isto acontece sobretudo por motivo de herança, pois, não raro, vários herdeiros mostram interesse em ficar com uma fracção de um quinhão a herdar. É que todos os lagares têm também azenhas para moagem de cereais que funcionam fora do período de fabrico de azeite e enquanto as ribeiras levam água suficiente para o efeito.
Quanto ao fabrico do azeite, cada ano há um avinhador a quem compete fornecer a primeira módura e contratar os 2 lagareiros, bem como o fornecedor de lenha. Os lagareiros tiram uma poia proporcional ao azeite produzido por cada módura (são dez partes para o dono e uma para o lagar) e vão-na despejando no pote da poia. Desta é tirado um litro por módura para o ganhão que transporta a azeitona para o lagar. Do azeite produzido por cada módura é ainda tirado um litro para o fornecedor de lenha.
Finda a campanha e depois de retirado o azeite para os ganhões e fornecedor da lenha, e entregue aos lagareiros a quantidade de azeite devida pelo serviço, é o azeite vendido pelo avinhador que convoca os outros condóminos para um determinado dia e hora, para fazerem as contas.
As contas são normalmente feitas em casa do avinhador que apresenta as despesas feitas durante o ano, assim como os respectivos rendimentos. É um acto revestido de certa solenidade, findo o qual os sócios bebem uma boa quantidade de vinho. No mesmo acto é a chave entregue ao avinhador do ano seguinte.

II – Azenhas:

Quanto ás azenhas que funcionam em cada um dos lagares, o seu uso limita-se quase exclusivamente aos respectivos proprietários, moendo cada um o seu próprio cereal e portanto sem que lhes seja retirada qualquer maquia. A utilização por não-donos é excepcional e só pode ser feita na vez de um dos donos. É que se azenha fosse utilizada com fins lucrativos seria considerada uma indústria e teria que pagar a respectiva contribuição.
Não se verifica normalmente uma rígida limitação do tempo de utilização da azenha por cada dono.
Embora, logicamente, o tempo de utilização deva ser proporcional ao quinhão, é dado a cada um o tempo suficiente para moer todo o cereal de que necessita. O critério da proporcionalidade apenas é utilizado em ocasiões de escassez de água ou quando vários donos querem moer ao mesmo tempo.

III – Moinhos:

Existem vários pequenos moinhos de roda exterior horizontal, pertencendo cada um a uma sociedade.


Moinho (azenha?) das Fragoeiras, na Ribeirinha.

A capacidade destes moinhos é bastante menor que a das azenhas dos lagares e, por esse motivo, há maior necessidade de limitar o tempo de utilização do moinho por cada um dos donos, de acordo com a quota parte de cada um. Cada um é moleiro do seu próprio cereal

c)– Extinção de incêndios

À semelhança do que se verifica na maior parte das aldeias portuguesas, também aqui não há qualquer organização de bombeiros voluntários.
Ora, dado que os incêndios ocorrem quer em construções quer em pinhais e que o recurso aos bombeiros voluntários da sede de concelho não é viável, a não ser para incêndios de grandes proporções, o que felizmente se não tem verificado, era natural que se criasse o costume de serem os próprios moradores da povoação a extingui-los, ajudando-se mutuamente. Este costume verifica-se de facto e constitui uma das mais belas manifestações de solidariedade a que é dado assistir.
Logo que se espalha a notícia de um incêndio, a pessoa que primeiro consegue chegar ao sino da capela de S. Sebastião começa a tocá-lo a rebate. Imediatamente toda a população válida se dirige para o local do incêndio, assinalado pelo fumo ou indicado pelo tocador do sino, levando logo cheias de água as vasilhas que tiver à mão. (…) Enquanto as mulheres e as crianças transportam a água, os homens procuram lançá-la sobre as chamas, muitas vezes com risco da própria vida. Cada um faz o máximo que pode e o trabalho só termina depois de o fogo estar completamente extinto.
É necessário salientar aqui que muito raramente alguém deixa de acorrer a ajudar a extinguir um incêndio por motivo de inimizade com o dono do prédio sinistrado. Ao contrário, é frequente as pessoas ajudarem nestas circunstâncias até mesmo os próprios inimigos. Impõe não só a consciência de cada um, mas também o senso comum da população que reprova a falta de colaboração, independentemente das relações existentes entre os interessados. 

e) – Rebanhos de cabras pertencentes a vários donos ou meeiros

(…) a propriedade encontra-se excessivamente fragmentada, sendo poucos os proprietários que trabalham exclusivamente nos seus próprios terrenos e não havendo nenhum que possa dar-se ao luxo de não trabalhar no campo.
A exploração pecuária torna-se difícil e daí o agrupamento de pequenos rebanhos de dois ou mais donos, chamados meeiros, num único rebanho à guarda de um só pastor, o que permite não só uma melhor utilização das pastagens, como também o mais fácil pagamento da soldada do pastor.
O pastor é alimentado às semanas pelos meeiros e é-lhe dada a possibilidade de escolher uma cabra merendeira. O leite desta é utilizado pelo pastor como complemento da merenda levada de casa. A soldada anual consta de uma soma em dinheiro – de 300 a 1000 escudos - e de algumas peças de vestuário e calçado. Um fato e meio, três camisas, três pares de ceroulas, umas botas e um gavão. Por vezes recebe também uma cria (chiba), escolhida pelo pastor entre as de cada ano.

f)– Arranjo dos caminhos pelo Carnaval

Este é um costume que se vai perdendo (….).
Para o arranjo a que nos estamos referindo era mais uma vez o sino da povoação que chamava as pessoas ao trabalho. No dia de Carnaval, logo pela manhã, o cabo de ordens ou alguém por si mandado, dava umas badaladas no sino, após o que vários homens isolados ou em pequenos grupos e munidos das necessárias ferramentas, se dirigiam para os locais onde os caminhos necessitavam de reparação, procurando cada um reparar aqueles que mais directamente lhes interessavam. Este trabalho prolongava-se apenas pela parte da manhã porque a tarde, essa era reservada para os folguedos tradicionais.

         g) – Arranjo de «encanamentos» e «presas» colectivas no princípio do Verão:

         Existem várias regadias interessando simultaneamente maior ou menos número de agricultores, por vezes dezenas.
         Dado o vigoroso acidentado do terreno e o acentuado declive do leito dos ribeiros, todos os anos os encanamentos ou captações de água para as levadas são danificados pelas cheias, pelo que têm que ser reparados ou construídos.
         Interessando estes «encanamentos» a todas as pessoas que beneficiam da respectiva rega, juntam-se as mesmas em dia previamente combinado e vão meter a água à regadia.
        
         h) – Águas públicas (aduas):

         (…)
         Se a água abunda e nem todos os agricultores da regadia estão interessados em regar, a conjugação de interesses não é difícil de conseguir e basta que se vá seguindo na rega a mesma ordem por que os prédios se encontram na regadia.
         Quando a água escasseia o procedimento é diferente, conforme a regadia tem adua ou não.
         Se tem adua, o que quer dizer que há um número de horas de rega para cada prédio, constante da própria matriz, a água é aduada e começa no cimo da regadia a utilização dela por cada proprietário durante as horas que lhe competem.
         Cada interessado vai-se informando onde é que anda a água, procurando tomar conta dela no momento exacto em que passa a pertencer-lhe. Chegada ao fim da regadia, volta novamente ao princípio.
         Nas regadias que não têm adua, o princípio orientador é o da água passar sucessivamente de um proprietário para outro até dar a volta a toda a regadia. Como não há um número de horas estabelecido, cada um procura regar o seu terreno de uma só vez. Assim, frequentemente os direitos de uns são atropelados e os prejudicados são normalmente os situados no fundo da regadia. É fácil aos que estão mais acima abrir os tornadouros e regar, ainda que não seja a sua vez.
As desavenças são aqui mais frequentes, mas não têm passado de simples toca de palavras. Com efeito não há notícia de qualquer questão de regas ter levado a ofensas corporais de qualquer natureza.

i)– Contribuição espontânea para obras de interesse colectivo:

Pode afirmar-se que, dentro das suas possibilidades, os habitantes da Partida se mostram muito generosos sempre que são chamados a colaborar com dinheiro, trabalho ou outros meios para obras de interesse colectivo. A atestar este espírito de cooperação estão a igreja, a casa paroquias, a capela de S. Sebastião, a capela de S. Tiago, os troços de calçada das ruas e alguns pontões de madeira para passagem de peões, tudo construído ou reconstruído sem ajuda oficial.
Porém, também aqui tem sentido o ditado que diz que «Santos da casa não fazem milagres». Embora nunca desmentida, a aludida generosidade mostrou-se no entanto mais claramente quando o Reverendo Padre Manuel de Oliveira Campos, natural do Souto da Casa, aqui exerceu o seu ministério há alguns anos. Homem dinâmico e conhecedor da natureza humana, facilmente obtinha a adesão dos habitantes aos empreendimentos a que metia ombros. Naturalmente generosa e superiormente orientada, contribuiu a população da Partida naquele período com mais de duas centenas de contos e muitos dias de trabalho para várias obras de interesse geral.

Retirado de «PARTIDA -  COMUNIDADE DA ZONA DO PINHAL NA BEIRA BAIXA», de Luís Leitão -  Composto e impresso nas Oficinas Gráficas do Jornal do Fundão, 1991.

Nota. As fotografias são atuais e foram acrescentadas ao texto original.
Para além dos fornos referidos, os autores falam ainda de outro que existe num local ermo, chamado Forno dos Mouros, que poderá provar o período da fundação da Partida.
Falaram-me também de um lagar que existe na ribeira entre a Partida e o Vale de Figueira onde se podem ver ainda vestígios de uma mão moura. Parece é que está comido pelas silvas… 

M. L. Ferreira

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